Em março de 2018,
o escritor Valêncio Xavier estaria fazendo 85 anos. Ao invés de lamentarmos os
exatos dez anos de sua morte, celebremos a vida de uma das mentes mais
criativas da literatura brasileira contemporânea, que escreveu, por exemplo,
“Curitiba, de Nós” (1975), “O Mez da Grippe” (1981), Maciste no Inferno (1983),
“O Minotauro” (1985), “A Propósito de Figurinhas” (1986), “Minha Mãe Morrendo e
o Menino Mentindo” (2001), “Remembranças da Menina Morta de Rua e Outros
Livros”, etc.
Valêncio Xavier,
paulistano radicado na capital paranaense, explorou com maestria um diálogo
entre a literatura, o cinema, o jornalismo e a fotografia. Seus livros se
constituem quase sempre como montagens criativas nas quais a relação entre
textos e imagens (compostas por fotogramas cinematográficos, fotografias,
rótulos, manchetes, colagens em geral) é o princípio constitutivo de uma
experiência artística bastante singular. As imagens em sua obra não apenas
ilustram os textos, mas são também por eles iluminadas. E a “fricção” entre
ambos faz surgir um novo signo literário. Sua literatura é, nesse sentido,
intersemiótica.
Valêncio Xavier
Com suas montagens
o escritor contou histórias que tiveram como pano de fundo o universo da
memória, do erotismo, da tragédia, da morte e do mal. Em boa parte de seus
livros, a abjeção aparece como sintoma de uma literatura interessada em
retratar a degradação humana, a baixeza do mundo. Tomemos como exemplo seu
penúltimo livro, “Crimes à moda antiga” (2004), no qual podemos perceber a
violência como eixo temático a nortear os enredos apresentados. A publicação é
composta por uma série de “contos verdade”, que partiram de assassinatos
praticados no Brasil no início do século XX. A obra, editada pela Publifolha,
contou com ilustrações do próprio autor, bem como de Sérgio Niculitcheff. Valêncio
pesquisou amplamente cada um dos crimes e os transformou em matéria literária,
sem alterar, no entanto, a veracidade dos fatos.
No conto “Os
Estranguladores da Fé em Deus”, o autor relembra o caso dos irmãos Paulino e
Carlo Fuoco. Os jovens, que trabalhavam na joalheria do tio, foram barbaramente
assassinados em outubro de 1906, no Rio de Janeiro, por Eugênio Rocca e
Carletto. Em outro conto, “A noiva não manchada de sangue”, Valêncio
reconstitui o assassinato de Arthur Malheiros no quarto de um hotel situado na
Galeria Cristal, no centro de São Paulo, pelas mãos de sua ex-namorada
Albertina Barbosa Bonilha, em conluio com seu marido Elisário Bonilha, nos idos
de 1909. As motivações do crime nunca foram completamente esclarecidas. “A
Morte do Tenente Galinha” apresenta o fim inglório de um famoso caçador de
bandidos na cidade de São Paulo, em 1913, que teve como estopim um adultério. O
famoso crime de Cravinhos, no qual uma rica fazendeira - a rainha do café -
encomenda a morte de seu genro, também é registrado no livro. São apresentados
também dois contos sobre os chocantes crimes da mala - em que os corpos das
vítimas são brutalmente esquartejados -, como é o caso da morte de Maria Féa
pelo italiano José Pistone, e de Elias Farhat por seu empregado Miguel Trad, um
imigrante sírio. O último texto da obra revisita o assassinato, nos anos 30, de
dois curitibanos e de dois gaúchos cometido por uma mesma dupla de assaltantes
facínoras.
Febrônio
O conto baseado
em um crime mais clássico talvez seja aquele que reconstitui a vida do bandido
Febrônio e as crueldades por ele praticadas no Rio de Janeiro nos anos 20. Este
é um dois bandidos mais famosos do século XX, tendo morrido em um manicômio em
1984. A sua história envolve crimes sexuais, homicídios e misticismo religioso.
O personagem é tema de um ensaio de Raúl Antelo (Suplemento Literário, 2009,
n.1321), que analisa a monstruosidade de Febrônio à luz de reflexões sobre o
mal na obra, por exemplo, de Georges Bataille.
Giuseppe Pistone e Maria Féa a bordo do navio Conte Biacamano
O baú de madeira com o corpo de Maria Féa chegou a embarcar no navio Massilia, mas chamou a atenção pelo cheiro fétido
Para Bataille, o
mal e a literatura são inseparáveis. A literatura não nos permite “viver sem ver
a natureza separada dos aspectos existenciais mais violentos”. Ela nos
possibilita “perceber o pior e aprender como confrontá-lo, como superá-lo”.
Talvez se justifique aí a importância da arte ao materializar ou representar o
mal, fazendo dele tema de tantos textos cruéis. Não é fortuito que Valêncio
Xavier tenha escrito um conto como “No meio do mato matou a mulher índia e
depois comeu”, publicado no jornal Nicolau (ano 1, n. 3). No conto, o assassino
depois de esfaquear a vítima, corta seu corpo e retira dele os órgãos para
comê-los: “Mordeu e enfiou pela boca adentro úmidos pedaços de algum órgão,
fígado ou rins, não sei”. Os detalhes da cena são cruéis e minuciosamente
descritos. O conto traz a fotografia de uma índia semelhante à vítima, o
desenho de um corpo dissecado, algumas inscrições verbais e a representação de
uma onça, que aparece no conto se alimentando também da jovem. Há uma dimensão
erótica em todo o conto, e a questão sexual motiva o crime. Em todos os
elementos que constituem o seu enredo percebe-se a presença do Mal, descrito
por Bataille e tematizado tantas vezes por Valêncio. É a monstruosidade do
mundo gritando na literatura. Ela nos perturba ao passo que nos convida a
confrontá-la.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR, em 10 de março de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário