sábado, 17 de março de 2018

Literatura: substantivo feminino





Na semana passada, no dia 08 de março, comemorou-se o Dia Internacional da Mulher. Tive o prazer de participar, com as professoras Lorena Lima e Gisele Schnorr, no IFPR (Instituto Federal do Paraná), campus de União da Vitória, de uma mesa-redonda, que teve como foco a presença da mulher na literatura. O debate integrou uma semana de atividades relacionadas ao tema. Senti-me lisonjeado e ao mesmo tempo apreensivo por ser o único sujeito masculino a participar dos debates. As mulheres, com todo o merecimento, têm conquistado espaços significativos em todos os setores da sociedade, superando uma condição social que, ao longo da história, não foi generosa e justa com elas. No entanto, falta ainda um reconhecimento maior no que se refere, por exemplo, à remunerações mais honestas e ao pleno respeito a seus direitos, superando formas de assédio e outros tipos de violência que ferem a sua dignidade.
A mesa-redonda tratou das representações da mulher na literatura ao longo dos tempos, da participação de escritoras na produção literária, bem como das polêmicas envolvendo a existência ou não de uma poética propriamente feminina. Poderíamos considerar como literatura feminina apenas aquela produzida por mulheres? Ou também aquela cujos temas estão relacionados ao seu universo? Ou ainda, seria feminina uma poética na qual o narrador ou o eu-lírico são predominantemente femininos independente do sexo do autor?
Arrisco dizer que toda a literatura é feminina, mesmo aquela produzida por homens. Isso porque a intuição e a sensibilidade necessárias à prática da arte literária, em especial à da poesia, são elementos, por excelência, femininos (talvez devêssemos estudar melhor a relação entre o hemisfério direito do cérebro, as mulheres e o texto poético). Sempre acreditei que a arte nos ensina a ver a vida de forma feminina. E o interesse pelo universo feminino certamente me aproximou da arte. A poesia, aliás, é o grande útero da linguagem e ao mesmo tempo o leite que nutre e fortifica um idioma. Se o mundo fosse comandado por mulheres dificilmente assistiríamos a tantas guerras e outras barbáries. As mulheres são mesmo as engenheiras e arquitetas do mundo.
Oswald de Andrade defendeu em seus ensaios a importância da mulher na vida social. Para ele, o mundo se divide na sua longa história em Patriarcado e Matriarcado. Sua tese “Crise da Filosofia Messiânica” argumenta que um novo Matriarcado se anuncia com tudo aquilo que vem junto dele: o filho de direito materno, a propriedade comum do solo e o Estado sem Classes, ou mesmo a ausência de Estado. Sob essa ótica, só quando o mundo voltasse a ser dominado pelas mulheres alcançaríamos o verdadeiro estágio de liberdade, igualdade e fraternidade (ou melhor “sororidade”, para usar uma expressão que me foi apresentada pela professora Giselle Schnorr). A visão anarco-socialista de Oswald é muito bonita e transcende seu pensamento literário.

Oswald de Andrade e Pagu

Até o século XX a participação das mulheres na literatura foi praticamente nula. A maior parte das escritoras produzia uma obra que sequer era divulgada. Em muitos casos, elas adotavam pseudônimos masculinos como condição para a publicação, circulação e valorização de suas obras. É o caso por exemplo de Emily Brontë, que escreveu “O Morro dos Ventos Uivantes”, publicado com o pseudônimo Ellis Bell. No Brasil, nos últimos 50 anos, as mulheres começaram a conquistar espaços mais significativos no cânone literário. Se na primeira metade do século encontramos poucos nomes, como Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Pagu (Patrícia Galvão) e Gilka Machado, na segunda metade proliferam-se os nomes: Clarice Lispector, Hilda Hilst, Adélia Prado, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Cora Coralina, Helena Kolody, Carolina Maria de Jesus, Marina Colasanti, Zélia Gattai, Ana Cristina Cesar, entre outras. A lista das contemporâneas é grande e vai de Josely Vianna Baptista à Carol Bensimon. 



Veronica Stigger, por exemplo, em “Gran Cabaret Demenzial”, discute questões que aludem, não apenas ao universo feminino, mas também aos dilemas da vida, abordando de forma poética - mas ao mesmo tempo filosófica e política -, o grotesco de um mundo que cada vez mais tem se tornado insuportável. Angélica de Freitas, por sua vez, no livro de poemas “Um útero é do tamanho de um punho”, reflete criticamente sobre preconceitos e estigmas vivenciados pelas mulheres. Em um dos poemas, “Mulher de vermelho”, a poeta assume um eu-lírico masculino para problematizar a voz social que vê na sensualidade da mulher um elemento de promiscuidade: “O que será que ela quer / essa mulher de vermelho / alguma coisa ela quer / pra ter posto esse vestido / não pode ser apenas / uma escolha casual / (...) / o que ela quer sou euzinho / sou euzinho o que ela quer / só pode ser euzinho / o que mais podia ser”. Observe-se que o que se problematiza aqui é discurso que, por vezes, se materializa a partir de casos de estupro: “Que roupa ela estava usando?”. Como se a vestimenta justificasse o crime. As mulheres têm produzido uma arte poética muito rica e significativa na contemporaneidade. Desejo que elas possam cada vez mais ocupar na literatura - e em todos os outros lugares - um espaço que sempre foi seu de direito.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória PR, 17 de março de 2018.

Nenhum comentário: