O escritor,
jornalista e crítico literário José Castello escreveu certa vez que a
literatura é uma “máquina de perfuração do espírito”. Ela deixa no leitor
marcas que nunca cicatrizam completamente: “A melhor forma de tratá-las é
transformá-las em novos textos, que geram novas leituras, em um desdobramento
infinito de escritores e de leitores que dialogam e se misturam”. Depois de travar
contato com um bom livro, nunca saímos ilesos, nem os mesmos. Impossível não
ficarmos marcados e feridos ao lermos, por exemplo, “A metamorfose”, de Kafka,
“Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, ou “Angústia”, de Graciliano
Ramos. São obras que nos perturbam, que nos tiram da zona de conforto. Não nos
trazem segurança e nos lançam no abismo da vida e das incertezas, causando-nos
um certo mal-estar e até mesmo o horror. Como aqueles filmes que depois de
serem vistos perturbam o sono. Se toco nesse assunto é para dividir com os
leitores a inquietação provocada em mim pelo romance “O Senhor das Moscas”
(Alfaguara, 2014), de William Golding, autor que ganhou o prêmio Nobel em 1983.
William Golding
O romance em
questão, lançado em 1954, conta a história de um grupo de meninos que sobrevive
a uma queda de avião em uma ilha deserta durante a Segunda Guerra. As crianças
ficam isoladas e são obrigadas a se organizarem para sobreviver no inóspito
lugar, que lembra por vezes o cenário de “Robson Crusoé”. O ambiente aparentemente
paradisíaco (as descrições da paisagem são lindas) vai, no entanto, dando lugar
a uma transformação radical em seus personagens. A disputa pelo poder faz com
que as crianças se dividam em dois grupos, cuja liderança fica a cargo de
Ralph, o protagonista, e Jack, uma espécie de antagonista que será responsável
pelo início da barbárie entre os jovens. Ralph, com ares civilizados, valoriza
o diálogo e o bom senso, defendendo constantemente a manutenção de uma fogueira
que poderá sinalizar aos navios a presença dos jovens na ilha. Jack,
responsável pela caça, quebra o contrato social com Ralph, criando e liderando
um grupo paralelo que cometerá uma série de atrocidades, que vão desde o roubo
dos óculos de Porquinho, fundamentais para que a fogueira seja acesa, até a
abolição total da ordem que incluirá mortes e torturas.
Cena do filme Senhor das Moscas, de 1990
personagens em primeiro plano: Ralph e Porquinho
O livro vai
ganhando ares de terror. Porquinho, inteligente e organizado, é um personagem
que sofrerá “bullying” ao longo de quase toda a narrativa, por ser gordo e
desajeitado. O apelido é típico e os jovens quando querem são cruéis. Não é à
toa que o escritor paranaense Wilson Bueno, em seu “Manual de Zoofilia” (UEPG,
1997), tenha incluído, ao lado de uma série de bichos, as crianças: “Terríveis
pelos domingos, não as queiram, não nunca, riscando a caco de vidro a lataria
dos automóveis, exímias caçadoras impiedosas no rastro de gatos e
lagartixas”.
Ao contrário da
premissa rousseauniana de que o ser humano nasce puro e a sociedade o corrompe,
o livro de Golding parece apontar para o extremo oposto já que à medida que os
meninos se afastam da sociedade, ao invés de encontrarem um estágio mais
elevado para uma vida plena em meio à natureza, tornam-se carrascos uns para os
outros.
Segundo Fabio
Silvestre Cardoso, em um ensaio sobre o livro, publicado no jornal Rascunho
(edição n°162), “a marca da maldade ganha força
exatamente quando as crianças, que no imaginário coletivo representam a bondade
por natureza, cometem as maiores atrocidades na medida em que tentam
estabelecer as próprias regras de convivência”. O romance, nesse sentido, é um “tipo
de manual de sobrevivência porque mostra que, mesmo nas situações mais
improváveis, a dominação dos mais frágeis pelos mais fortes pode, e vai,
acontecer”.
Cena da adaptação cinematográfica do romance de Golding
O
livro poderia ser lido como uma alegoria do mundo pós-guerra dividido em dois
grandes blocos. Lembremos que a publicação é de 1954. Ao lado de George Orwell,
em clássicos como “A Revolução dos Bichos” e “1984”, a obra de Golding parece
funcionar como uma metáfora política do mundo contemporâneo. Mas não se esgota
nisso. Caso contrário, perderia potência ao longo dos anos. Não é o que parece
acontecer com a obra, que continua atual, apontando para uma política mais
profunda que diz respeito às relações humanas e aos jogos de interesse e poder
ao longo dos tempos. Não é à toa que o escritor Cristóvão Tezza, em um recente
artigo publicado na “Folha de São Paulo” (22/10/2017), tenha sustentado que “O
Senhor das Moscas”, em muitos aspectos parece uma “fábula sobre o Brasil
contemporâneo”. Ele faz uma breve análise do livro, mas não esmiúça a
comparação. Mas a relação é bem possível. Poderíamos pensar no Brasil como uma
grande ilha dominada por seres imaturos que brincam de comandar. E da
civilidade democrática vamos passando ao despotismo bárbaro e nada esclarecido.
São feridas da realidade que a ficção nos mostra. E que ficam marcadas como
cicatriz no corpo e no espírito do leitor. Resta saber como essa história
termina.
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