sábado, 3 de março de 2018

A ficção literária e as cicatrizes do leitor e do mundo: apontamentos sobre “O senhor das moscas”, de William Golding




O escritor, jornalista e crítico literário José Castello escreveu certa vez que a literatura é uma “máquina de perfuração do espírito”. Ela deixa no leitor marcas que nunca cicatrizam completamente: “A melhor forma de tratá-las é transformá-las em novos textos, que geram novas leituras, em um desdobramento infinito de escritores e de leitores que dialogam e se misturam”. Depois de travar contato com um bom livro, nunca saímos ilesos, nem os mesmos. Impossível não ficarmos marcados e feridos ao lermos, por exemplo, “A metamorfose”, de Kafka, “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, ou “Angústia”, de Graciliano Ramos. São obras que nos perturbam, que nos tiram da zona de conforto. Não nos trazem segurança e nos lançam no abismo da vida e das incertezas, causando-nos um certo mal-estar e até mesmo o horror. Como aqueles filmes que depois de serem vistos perturbam o sono. Se toco nesse assunto é para dividir com os leitores a inquietação provocada em mim pelo romance “O Senhor das Moscas” (Alfaguara, 2014), de William Golding, autor que ganhou o prêmio Nobel em 1983.  

William Golding

O romance em questão, lançado em 1954, conta a história de um grupo de meninos que sobrevive a uma queda de avião em uma ilha deserta durante a Segunda Guerra. As crianças ficam isoladas e são obrigadas a se organizarem para sobreviver no inóspito lugar, que lembra por vezes o cenário de “Robson Crusoé”. O ambiente aparentemente paradisíaco (as descrições da paisagem são lindas) vai, no entanto, dando lugar a uma transformação radical em seus personagens. A disputa pelo poder faz com que as crianças se dividam em dois grupos, cuja liderança fica a cargo de Ralph, o protagonista, e Jack, uma espécie de antagonista que será responsável pelo início da barbárie entre os jovens. Ralph, com ares civilizados, valoriza o diálogo e o bom senso, defendendo constantemente a manutenção de uma fogueira que poderá sinalizar aos navios a presença dos jovens na ilha. Jack, responsável pela caça, quebra o contrato social com Ralph, criando e liderando um grupo paralelo que cometerá uma série de atrocidades, que vão desde o roubo dos óculos de Porquinho, fundamentais para que a fogueira seja acesa, até a abolição total da ordem que incluirá mortes e torturas.

Cena do filme Senhor das Moscas, de 1990
personagens em primeiro plano: Ralph e Porquinho

O livro vai ganhando ares de terror. Porquinho, inteligente e organizado, é um personagem que sofrerá “bullying” ao longo de quase toda a narrativa, por ser gordo e desajeitado. O apelido é típico e os jovens quando querem são cruéis. Não é à toa que o escritor paranaense Wilson Bueno, em seu “Manual de Zoofilia” (UEPG, 1997), tenha incluído, ao lado de uma série de bichos, as crianças: “Terríveis pelos domingos, não as queiram, não nunca, riscando a caco de vidro a lataria dos automóveis, exímias caçadoras impiedosas no rastro de gatos e lagartixas”.   
Ao contrário da premissa rousseauniana de que o ser humano nasce puro e a sociedade o corrompe, o livro de Golding parece apontar para o extremo oposto já que à medida que os meninos se afastam da sociedade, ao invés de encontrarem um estágio mais elevado para uma vida plena em meio à natureza, tornam-se carrascos uns para os outros.
Segundo Fabio Silvestre Cardoso, em um ensaio sobre o livro, publicado no jornal Rascunho (edição n°162), “a marca da maldade ganha força exatamente quando as crianças, que no imaginário coletivo representam a bondade por natureza, cometem as maiores atrocidades na medida em que tentam estabelecer as próprias regras de convivência”. O romance, nesse sentido, é um “tipo de manual de sobrevivência porque mostra que, mesmo nas situações mais improváveis, a dominação dos mais frágeis pelos mais fortes pode, e vai, acontecer”.

Cena da adaptação cinematográfica do romance de Golding

O livro poderia ser lido como uma alegoria do mundo pós-guerra dividido em dois grandes blocos. Lembremos que a publicação é de 1954. Ao lado de George Orwell, em clássicos como “A Revolução dos Bichos” e “1984”, a obra de Golding parece funcionar como uma metáfora política do mundo contemporâneo. Mas não se esgota nisso. Caso contrário, perderia potência ao longo dos anos. Não é o que parece acontecer com a obra, que continua atual, apontando para uma política mais profunda que diz respeito às relações humanas e aos jogos de interesse e poder ao longo dos tempos. Não é à toa que o escritor Cristóvão Tezza, em um recente artigo publicado na “Folha de São Paulo” (22/10/2017), tenha sustentado que “O Senhor das Moscas”, em muitos aspectos parece uma “fábula sobre o Brasil contemporâneo”. Ele faz uma breve análise do livro, mas não esmiúça a comparação. Mas a relação é bem possível. Poderíamos pensar no Brasil como uma grande ilha dominada por seres imaturos que brincam de comandar. E da civilidade democrática vamos passando ao despotismo bárbaro e nada esclarecido. São feridas da realidade que a ficção nos mostra. E que ficam marcadas como cicatriz no corpo e no espírito do leitor. Resta saber como essa história termina.  

 Publicado originalmente no dia 03 de março de 2018, no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR

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