terça-feira, 10 de abril de 2018

Os bons ares de César Aira




César Aira é um dos mais interessantes e produtivos escritores da literatura argentina contemporânea, tendo publicado até agora quase uma centena de livros. Ele escreve pelo menos uma página por dia, o que lhe rende a criação de duas ou três novelas (até quatro) em média por ano – somando-se a essa cifra, às vezes, um livro de ensaios. Ele é assim uma espécie de máquina alucinada de produzir ficção.
Certa vez, o autor defendeu a ideia de que um artista contemporâneo não é aquele que produz obras, mas aquele que inventa procedimentos para que as obras se façam sozinhas. É dessa forma que Aira se constituiu como escritor, inventando um procedimento que se repete com diferença a cada livro, geralmente tencionando os limites do realismo, e acrescentando a esse realismo uma boa dose de “nonsense” que lhe vem de uma certa inventividade vanguardista mais preocupada com a invenção e com a quantidade do que com as tradicionais categorias literárias de qualidade e genialidade. E é talvez por estar despreocupado com a qualidade que o argentino produza uma das obras mais significativas da atual literatura de língua espanhola. Escreve sem medo, distraído vence, arriscando acerta. Talvez essa despretensão seja apenas um jogo também.
Cada livro de Aira é um universo esperado e comemorado pelos leitores. Seus enredos começam geralmente de uma forma bastante banal e vão aos poucos investindo na loucura e no inusitado, encaminhando a história, não raro, para algum cataclismo ou para o apocalipse. O fim do mundo aparece, então, com recorrência em sua obra. Seus personagens, inicialmente banais, vão se revelando muito diferentes do que os leitores esperavam. Seres comuns vão se transformando em robôs, travestis, monstros, ou títeres medonhos. O verossímil e o inverossímil para o argentino não são elementos opostos, e a sua escrita vai, dessa forma, passando de um a outro com desenvoltura.  


Pouco traduzido ainda no Brasil, César Aira tem sido o escritor argentino mais cotado para o Nobel de Literatura. Mas ele não está preocupado com isso. Aira parece não levar a sério a literatura, mas isso pode ser apenas uma ilusão. Seus ensaios assemelham-se, geralmente, a fábulas ou são construídos criativamente como sua ficção. Suas novelas, por sua vez, produzem teorias (tome-se como exemplo seu livro “Nouvelles Impressions du Petit Maroc” editado pela Cultura e Barbárie, em 2011) ou assemelham-se, por vezes, a ensaios que nos convidam ao filosofar. Tudo isso a partir de hábeis jogos de ideias que divertem e fazem pensar. E se esse texto sobre Aira não explica nada é porque a obra desse autor parece produzir não apenas a suspensão do sentido, mas também uma crise no comentário. O melhor jeito de (des)conhecer um escritor é lendo-o.
Sergio Pitol escreveu certa vez que Aira é um dos poucos autores que fazem da escritura uma celebração. Sinto que sua obra me reconcilia com a literatura, porque ler é uma forma de se divertir e mergulho em seus livrinhos justamente em busca de diversão. Abro suas páginas também para passar o tempo. Aliás, o próprio escritor anotou em seu livro “Continuación de ideas diversas” (Universidad Diego Portales, 2014) que ler é um modo de ocupar o tempo assim como as práticas artísticas – todas elas – têm como finalidade principal ocupar o nosso tempo.
Relembremos brevemente, a título de curiosidade, o enredo de algumas novelas aireanas. Em “Um acontecimento na vida do pintor viajante” - publicado em 2000 e editado no Brasil pela Nova Fronteira em 2006 -, o autor recupera a viagem do pintor alemão Rugendas pela Argentina, no século XIX (o pintor veio também para o Brasil com a expedição chefiada pelo Barão de Langsdorff). O livro é pretexto para Aira falar sobre a relação entre arte, história e vida. Em “Congresso de Literatura” (Ula, 1997), somos apresentados a uma série de clones do escritor Carlos Fuentes dispostos a dominar o mundo. Em “Os mistérios de Rosário” (Emecé, 2012), deparamo-nos com o fim do mundo iniciado em uma cidade do interior da Argentina depois que um grupo de professores de uma universidade se vê envolvido em uma manobra de alteração climática.
Em “As noites de Flores” (Nova Fronteira, 2004), o autor imagina a rotina de um casal de aposentados, Aldo e Rosa, que se vê obrigado, depois da crise que assolou a Argentina, no início do século XXI, a trabalhar durante a noite, entregando pizzas a pé no bairro de Flores, nos arredores de Buenos Aires. Mas a história é apenas pretexto para Aira enlouquecer o enredo, produzindo seus volteios esquizofrênicos.  


Em “O Mago” (Mondadori, 2002), Aira retrata um mágico que não possui imaginação. Ou seja, tem o talento, mas não consegue tirar proveito dele. Ao longo do livro, depois de concluir que a magia é a sua realidade e de suspeitar de que, por isso, a sua realidade é uma invenção, o mágico encontra um grupo de editores que o motivam a escrever livros em série. Se ele era mágico, poderia tirar da cartola muitas e muitas obras. Seria um escritor reconhecido e produtivo. Mas, ao contrário do mago, Aira parece possuir não apenas o talento, mas também a imaginação. De que vale uma arte sem ela?   

Publicado originalmente no dia 07 de abril no jornal Caiçara, em União da Vitória (PR)

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