César Aira é um
dos mais interessantes e produtivos escritores da literatura argentina
contemporânea, tendo publicado até agora quase uma centena de livros. Ele
escreve pelo menos uma página por dia, o que lhe rende a criação de duas ou
três novelas (até quatro) em média por ano – somando-se a essa cifra, às vezes,
um livro de ensaios. Ele é assim uma espécie de máquina alucinada de produzir
ficção.
Certa vez, o autor
defendeu a ideia de que um artista contemporâneo não é aquele que produz obras,
mas aquele que inventa procedimentos para que as obras se façam sozinhas. É
dessa forma que Aira se constituiu como escritor, inventando um procedimento
que se repete com diferença a cada livro, geralmente tencionando os limites do
realismo, e acrescentando a esse realismo uma boa dose de “nonsense” que lhe
vem de uma certa inventividade vanguardista mais preocupada com a invenção e
com a quantidade do que com as tradicionais categorias literárias de qualidade
e genialidade. E é talvez por estar despreocupado com a qualidade que o
argentino produza uma das obras mais significativas da atual literatura de
língua espanhola. Escreve sem medo, distraído vence, arriscando acerta. Talvez
essa despretensão seja apenas um jogo também.
Cada livro de
Aira é um universo esperado e comemorado pelos leitores. Seus enredos começam
geralmente de uma forma bastante banal e vão aos poucos investindo na loucura e
no inusitado, encaminhando a história, não raro, para algum cataclismo ou para
o apocalipse. O fim do mundo aparece, então, com recorrência em sua obra. Seus
personagens, inicialmente banais, vão se revelando muito diferentes do que os
leitores esperavam. Seres comuns vão se transformando em robôs, travestis,
monstros, ou títeres medonhos. O verossímil e o inverossímil para o argentino
não são elementos opostos, e a sua escrita vai, dessa forma, passando de um a
outro com desenvoltura.
Pouco traduzido
ainda no Brasil, César Aira tem sido o escritor argentino mais cotado para o
Nobel de Literatura. Mas ele não está preocupado com isso. Aira parece não levar
a sério a literatura, mas isso pode ser apenas uma ilusão. Seus ensaios
assemelham-se, geralmente, a fábulas ou são construídos criativamente como sua
ficção. Suas novelas, por sua vez, produzem teorias (tome-se como exemplo seu
livro “Nouvelles Impressions du Petit Maroc” editado pela Cultura e Barbárie,
em 2011) ou assemelham-se, por vezes, a ensaios que nos convidam ao filosofar.
Tudo isso a partir de hábeis jogos de ideias que divertem e fazem pensar. E se
esse texto sobre Aira não explica nada é porque a obra desse autor parece
produzir não apenas a suspensão do sentido, mas também uma crise no comentário.
O melhor jeito de (des)conhecer um escritor é lendo-o.
Sergio Pitol
escreveu certa vez que Aira é um dos poucos autores que fazem da escritura uma
celebração. Sinto que sua obra me reconcilia com a literatura, porque ler é uma
forma de se divertir e mergulho em seus livrinhos justamente em busca de
diversão. Abro suas páginas também para passar o tempo. Aliás, o próprio
escritor anotou em seu livro “Continuación de ideas diversas” (Universidad
Diego Portales, 2014) que ler é um modo de ocupar o tempo assim como as
práticas artísticas – todas elas – têm como finalidade principal ocupar o nosso
tempo.
Relembremos brevemente, a título de
curiosidade, o enredo de algumas novelas aireanas. Em “Um acontecimento na vida
do pintor viajante” - publicado em 2000 e editado no Brasil pela Nova
Fronteira em 2006 -, o autor recupera a viagem do pintor alemão Rugendas pela
Argentina, no século XIX (o pintor veio também para o Brasil com a expedição
chefiada pelo Barão de Langsdorff). O livro é pretexto para Aira falar sobre a
relação entre arte, história e vida. Em “Congresso de Literatura” (Ula, 1997),
somos apresentados a uma série de clones do escritor Carlos Fuentes dispostos a
dominar o mundo. Em “Os mistérios de Rosário” (Emecé, 2012), deparamo-nos com o
fim do mundo iniciado em uma cidade do interior da Argentina depois que um
grupo de professores de uma universidade se vê envolvido em uma manobra de
alteração climática.
Em “As noites de Flores” (Nova
Fronteira, 2004), o autor imagina a rotina de um casal de aposentados, Aldo e
Rosa, que se vê obrigado, depois da crise que assolou a Argentina, no início do
século XXI, a trabalhar durante a noite, entregando pizzas a pé no bairro de
Flores, nos arredores de Buenos Aires. Mas a história é apenas pretexto para
Aira enlouquecer o enredo, produzindo seus volteios esquizofrênicos.
Em “O Mago”
(Mondadori, 2002), Aira retrata um mágico que não possui imaginação. Ou seja,
tem o talento, mas não consegue tirar proveito dele. Ao longo do livro, depois
de concluir que a magia é a sua realidade e de suspeitar de que, por isso, a
sua realidade é uma invenção, o mágico encontra um grupo de editores que o
motivam a escrever livros em série. Se ele era mágico, poderia tirar da cartola
muitas e muitas obras. Seria um escritor reconhecido e produtivo. Mas, ao contrário
do mago, Aira parece possuir não apenas o talento, mas também a imaginação. De
que vale uma arte sem ela?
Publicado originalmente no dia 07 de abril no jornal Caiçara, em União da Vitória (PR)
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