Depois de sofrer
um grave acidente que o deixou paraplégico, Marcelo Rubens Paiva escreveu um
dos romances mais populares do Brasil nos anos 80, “Feliz Ano Velho”, não só um
depoimento jovial e coloquial de seu processo de adaptação à nova realidade,
mas também um testemunho da geração que crescera em meio aos “anos de chumbo” e
que se preparava, entre o som do rock and roll e as incertezas do futuro, para
o processo de redemocratização do país. Depois do sucesso do livro, o escritor
mergulhou fundo na literatura e no jornalismo.
Em 2015, Paiva
publicou um dos seus livros mais delicados e profundos, “Ainda estou aqui”, uma
autoficção na qual revisitou o sinistro episódio familiar envolvendo o
desaparecimento de seu pai, o então deputado Rubens Paiva - na ditadura militar
-, cujo paradeiro é desconhecido até hoje. Mais do que uma homenagem ao
progenitor, o livro é também e principalmente sobre a mãe, Eunice Paiva,
uma guerreira que, naqueles tempos, assumiu sozinha as responsabilidades frente
ao lar e que, hoje, sofre do Mal de Alzheimer. O romance, poético e político,
trata então de dois dilemas, o do pai que nunca foi encontrado – pairando,
assim, como fantasma sobre a família - e o da mãe, transformada dia após dia
pela doença. Em tempos de revisão histórica, e de um aprofundamento em doenças
degenerativas, “Ainda estou aqui” - cujo título vale para tanto para a mãe
quanto para o pai - é um dos mais fortes e bonitos livros da literatura
brasileira contemporânea.
Agora, Marcelo
Rubens Paiva acaba de lançar “O Orangotango Marxista” (2018), que saiu pela
Alfaguara. Seria apenas mais um livro entre tantos outros preocupados com nossa
crise política e social não fosse a sagacidade narrativa do autor. A começar
pelo narrador, um orangotango que desfia em sua zoológica narrativa uma espécie
de fábula sem moral sobre os seres humanos e suas contradições.
O romance - ou
melhor, a novela - conta a inusitada história de um símio capturado em Bornéu,
que cresceu no laboratório de uma universidade do interior de São Paulo. Lá,
aprendeu sozinho a ler e quando todos os funcionários iam para casa, ele
passava horas estudando na biblioteca. Virou cristão ao ler trechos do Novo
Testamento, mas com o tempo passou por um desapontamento metafísico ao perceber
que “tudo era uma questão de explorados e exploradores, ou melhor de divisão de
classes (espécies)”. Cada vez mais, o narrador vai se interessando pela obra de
Darwin, com quem descobriu a proximidade entre macacos e humanos. Encantou-se
pela filosofia, conhecendo em profundidade textos de Hegel, Kant e Marx,
tomando, então, consciência de sua condição de explorado, o que mudaria a sua
forma de encarar o mundo. Depois de se apaixonar pela sua pesquisadora, o
orangotango é levado para um zoológico, deixando de ser objeto de estudo para
virar uma peça na engrenagem da indústria do entretenimento, na sociedade do
espetáculo. A partir de então, ele passa a observar o comportamento dos
visitantes, invertendo a lógica natural dos fatos. O homem é seu opressor, mas
também sua atração.
Para o
orangotango, aqueles que nasceram em cativeiro só conhecem o mundo do opressor
e do oprimido: “Mas a maioria, com eu, caçada e aprisionada, arrastada em
navios, colocada em containers à força, deve ter, nem que reprimido, o
verdadeiro sentido da vida, em contraste com o efeito absurdo que nasce da
dominação de um grupo sobre o outro: a liberdade”.
Aos poucos,
durante a noite, a personagem começa a incursionar pela cidade, depois de
descobrir uma forma de sair do parque. Isso com o objetivo de investigar a vida
dos humanos e encontrar uma forma de se libertar de sua condição de explorada.
Nessa, que é uma das partes mais interessantes do livro, o orangotango, depois
de muito observar o cotidiano das pessoas, acaba concluindo que a vida dos
humanos não é tão interessante quanto poderia parecer: “No final de contas, a
liberdade que poderia trazer alegria, felicidade e alívio àquelas pessoas
mostrava que eram todas escravas de um sistema alienante que impedia de admitir
que, no fundo, aquele estilo de vida era triste, deprimente, vazio, entediante
e sem sentido”. O primata letrado questiona também a alienação das pessoas por
meio dos aparelhos de celular, que fazem com que os macacos nus (homens) deixem
de olhar para o mundo, concentrados que estão apenas nas telas da máquina: “Os
humanos chegaram num estágio tão elevado de conhecimento e tecnologia que
acabarão aprisionados por ela. Já começou”. Isso sem contar nas contradições
sociais apontadas pelo símio, que demonstram a incapacidade do homem de viver
em sociedade sem subjugar seu semelhante. Lembremos que estamos diante de um
narrador marxista.
Inspirado por um
rebelde gorila chamado Fidel, que vivia isolado em uma ilha do zoológico, o
orangotango desenvolve seus planos de ação revolucionária. E paro por aqui para
não “entregar o ouro ao bandido/leitor”.
Vale observar que o
livro de Marcelo Rubens Paiva, em um momento de intensa conturbação política,
lança um curioso olhar sobre os dilemas do homem contemporâneo. Faz isso com
qualidade alegórica ao propor que vejamos a nós mesmos pela ótica do outro,
neste caso a do orangotango. Naturalmente, há uma ironia neste quesito, pois a
racionalidade, no livro e talvez fora dele, parece estar mais ao lado dos
macacos do que dos homens. Vivemos como os bichos presos em um zoológico. Aliás,
segundo uma lógica perspectivista, poderíamos dizer que para o orangotango
somos nós os macacos.
Publicado originalmente no jornal Caiçara,
de União da Vitória (PR), em 19 de maio de 2018.
Um comentário:
Esse é o meu autor preferido. Ele é o melhor escritor da literatura mundial contemporânea, já poderia ganhar um Nobel.
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