No último 21 de
maio, recebi com imensa tristeza a notícia da morte da escritora e colega
Assionara Souza. A sua perda é irreparável, não apenas pelo que ela escreveu e
pelo que viria a escrever, mas também pela sua pessoa, que fez da literatura um
modo de encarar a vida e de vivê-la em plenitude. Autora de livros como
“Cecília não é um cachimbo” (2005), “Os hábitos e os monges” (2011),
“Alquimista na chuva” (2017), entre outros, Assionara se destacou na atual
literatura brasileira, chegando a ter sua obra divulgada para além de nossas
fronteiras.
Quando a conheci
pessoalmente em 2010, chamou-me a atenção a sua inteligência aliada a uma
sensibilidade e doçura propositadamente poéticas. A beleza e elegância que se
depreendiam de suas palavras me remeteram de imediato a escritoras misteriosas
como Clarice Lispector e Hilda Hilst. Percebi desde o primeiro contato uma
certa serenidade na voz que lhe conferia um ar nobre e curitibano temperado
pelo sutil sotaque nordestino de alguém que nascera em Caicó, no Rio Grande do
Norte. Debati com ela em um encontro do Sesc Literário sobre Raquel de Queiroz
e tão logo nos conhecemos melhor, naquela mesma noite, ela foi me presenteando
com seu livro de contos “Amanhã, Com Sorvete!” (2010), editado pela 7Letras.
Reencontrei-a alguns anos depois em um outro evento literário, onde conversamos
sobre Valêncio Xavier, e onde a ouvi falar com propriedade e inteligência sobre
o escritor pernambucano Osman Lins.
Os contos de Assionara ganham agora para mim outro sentido. Impossível
lê-los sem ser tocado pela experiência da precoce despedida a seguir seus passos
na escritura. Impossível também não sentir a presença/ausência da escritora em seus
textos, num jogo de aparecer e desaparecer que inevitavelmente - como em toda boa literatura - caminha para o
artifício, para o truque. Um leitor que procure a pessoa de um escritor em um texto literário está fadado a buscá-lo onde ele não mais está (talvez Assionara tenha terminado de escrever um livro para agora começar outro). Por isso, assim como em qualquer outro escritor, não se trata de ler biograficamente a obra
de Assionara - já que a literatura é sempre uma construção na qual o escritor se
despersonaliza para que nasça a escritura. Trata-se de perceber nessa máquina de artifícios - que é a literatura – a fonte das verdades tecidas por meio da ficção. Ali Assionara está inteira. Tudo faz parte do jogo e, sendo o escritor um falso mentiroso (evocando aqui Silviano Santiago), ele, então, só fala
verdades e tudo é mentira também. Assionara, assim, está e não está no texto que teceu. É com esse impasse que nós leitores temos que conviver. No entanto, mais do que a ausência ou a despedida, Assionara,
em seus livros, celebra a vida e a força das palavras, dos instantes e dos
encontros.
A escritora tem um modo de dizer que é a pura
busca da quarta dimensão, um tocar as palavras pelo avesso, galáxias de música
e dança, “a aparência das coisas por trás das coisas”, como sugeriu em um de
seus contos. Daqui a muitos anos alguém vai achar em meio a outros livros um
exemplar velho e surrado de “Amanhã, com sorvete!”. E dali jorrará com alegria
tudo o que agora vejo e sinto, seus fragmentos de um discurso amoroso. E
Assionara estará todinha ali, viva e em palavra, porque é todo o livro ela
mesma: “Constrói do verbo um mundo todo fragmento. Fissura. Costura. Do que foi
dito e não feito. Escrito”. A palavra lhe conservará viva.
Lembrando por
vezes a profundidade e o ritmo de Caio Fernando Abreu, sem ser piegas na
influência, quase todas as frases dos textos de Assionara evocam todo um
universo pela amplitude de suas imagens e beleza de seus tons: “entre a sombra
e o sol, eu era quase um personagem principal de alguma coisa”, “para
desconforto do mímico, antes que entrasse em seu show alguém lhe cochichou ao
ouvido que todos os que estavam na plateia eram cegos”. Como não lembrar de
Clarice Lispector em tais linhas: “Música no modo como os moços andam. Música
no inusitado de corpos se esbarrando. Música diluindo tudo o quanto é sólido. É
quando há dança. Fecho os olhos e deixo (...) Estamos dentro da coisa. E a
coisa é a paixão. Objeto inquebrável. Objeto que pulsa”. A literatura de
Assionara voa no Altíssimo “para não esbarrar em rochedos”. Fico me perguntando
por que nunca procurei Assionara pra dizer o quanto seu texto me encantava.
Ao invés da
morte, penso aqui nas duas vidas da autora. A que ela viveu (e que vive ainda
em alguma esfera de nosso grandioso universo) e aquela que pervive no texto que
escreveu. Ela está fadada a ressuscitar a cada vez que um leitor abrir seus
livros e se encantar com suas palavras cheias de sabor de amanhã e sorvete. No
conto “Órbita dos Silêncios” ela escreve: “O som mudo do silêncio é o que está
por baixo da pele”. Para ela o som mudo do silêncio está colado às coisas. Com
ele a vida acontece intensa. Talvez esse som mudo seja sua própria palavra,
fadada a soar para além da vida. No texto. Assionara vive!
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, 02 de junho de 2018.
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