Acaba de sair
pela editora Dublinense, de Porto Alegre, “Literatura à Margem”, uma coletânea
de conferências do escritor Cristovão Tezza apresentadas inicialmente em
eventos literários, congressos universitários e na Academia Brasileira de
Letras. Os textos revelam o pensamento inquieto de uma mente prodigiosamente
reflexiva e poética. Os leitores do autor, acostumados com seus romances,
naturalmente terão agora a oportunidade de conhecer melhor as concepções
estéticas que norteiam seu trabalho de criação, bem como o pano de fundo de sua
inserção no mundo da ficção.
Integrado a uma
obra bastante fértil, que vai se ampliando desde os primeiros escritos dos anos
60 até os romances que conquistaram seu lugar no cânone da literatura
brasileira contemporânea - e que levaram o escritor a figurar como uma personalidade
do mundo das letras - , o material reunido em “Literatura à Margem” parece
dialogar com o livro “O espírito da prosa” (2012), no qual Tezza apresentou uma
reflexão ensaística sobre seu fazer literário desde o amadorismo artístico da
juventude até a consagração da obra na maturidade.
As conferências
que vêm agora à lume, registradas em livro, podem ser lidas como capítulos de
uma espécie de “uma autobiografia literária”, expressão que, aliás, é
apresentada como subtítulo do já citado “O espírito da prosa”. Isso porque,
independente dos assuntos tratados pelo romancista, sua história de vida é trazida
à baila em vários momentos, o que permite aos leitores não apenas comungarem
com ele de uma série de reflexões teóricas, mas também vivenciarem o depoimento
de uma vida dedicada às venturas e desventuras do que chamamos de “arte
literária”.
Na ABL, na conferência História de Leitor
Em uma das
conferências, por exemplo, Tezza aborda a sua vida íntima e privada,
apresentada paralelamente a uma reconstituição de fatos sociais, econômicos,
culturais e políticos do Brasil nos últimos 50 anos, com o objetivo de
demonstrar como a literatura brota da infelicidade. Trata-se do texto “História
de Leitor”, apresentado na Academia Brasileira de Letras, em 2014. Uma série de
fatores contribuíram para o ingresso do autor no mundo da literatura. Desde a
perda precoce do pai até a sua mudança do interior de Santa Catarina para
Curitiba, na juventude. Para Tezza, a verdadeira origem de um escritor está na
infelicidade. A infelicidade produz literatura: “Pessoas felizes, eu gosto de
brincar com esta imagem, não escrevem. Os felizes vão à praia, namoram sem conflito,
assistem televisão, viajam com alegria, sofrem aqui e ali com parcimônia e
compreensão, curtem as delícias da família, respeitam a realidade e os fatos –
por que diabos iriam se trancar num quarto para escrever?”. No entanto, mais
adiante, ainda na mesma conferência, o autor de “O Filho Eterno” considera que,
assim como a infelicidade produz literatura, a literatura produz também
felicidade. Na boa literatura, observa o escritor, os finais felizes costumam
ser, paradoxalmente, “desmancha-prazeres”. Segundo esse ponto de vista, o bom
leitor não suporta “água com açúcar”, preferindo a desgraça, os desdobramentos
pesados, “a dura poesia de tudo que não tem solução”. Isso porque “queremos
partilhar o que é irredimivelmente incompleto para confirmar que não estamos
sozinhos”. Talvez também pela nossa inegável vocação para o trágico, bem como
pela necessidade que temos de vivenciar a catarse.
Retrato da Folha de São Paulo
Na conferência
que dá nome ao livro, “Literatura à Margem”, proferida na abertura do VII
Festival Literário de Mantiqueira, em 2014, Tezza explora o conceito de
marginalidade da arte literária para concluir que mesmo sendo quase sempre
fruto de um sentimento de solidão, a literatura “nos tira da tábula rasa e
oferece-nos a prospecção do passado e a experiência do presente, na comunhão
solidária entre autor e leitor”. Nesse sentido, a palavra margem evoca não
apenas a consciência da singularidade da literatura – o seu olhar particular
sobre as coisas -, mas também o imperativo ético do escritor que escolhe a
solidão do risco de fazer o que faz. Alude também à própria condição da
literatura como atividade artística não valorizada em meio a tantas outras
linguagens, bem como a marginalidade da literatura brasileira em relação àquela
praticada em outros países. No entanto, penso que é exatamente essa condição de
ser margem que permite a ela olhar com mais distanciamento e, portanto, com
mais clareza para a vida (Padre Vieira Certa vez escreveu: “Há de estar
apartado dos olhos para se poder ver”). Foi pensando também nessa questão que
certa vez rabisquei os seguintes versos: “Nunca sei ao certo / o que vai no
centro / se o ponto é o começo do fim / ou apenas o fim do começo / tudo
depende da hora / tudo depende do meio // da margem melhor se olha / aquilo que
nem sei direito”.
Nas outras
conferências que integram a publicação, Cristovão Tezza aborda o fenômeno da
criação literária e seus descaminhos, assim como a relação entre a literatura e
os domínios da psicanálise, da autorrepresentação e da biografia. Em cada um
dos textos a acuidade das ideias e o cuidado de uma escrita sofisticada que não
se rende à banalidade nem à complexidade vazia. Em muitos momentos, as
reflexões do autor nos conduzem a conclusões muito pertinentes sobre o universo
da literatura. Pérolas como estas: “(...) escrever será sempre duplicar o mundo
para torná-lo mais habitável”; “(...) o narrador que escreve o livro é, em
alguma medida, o psicanalista distante que recompõe e dá sentido aos fragmentos
disparatados do evento da vida”; “Numa obra bem-sucedida, partilhamos a utopia
de um mundo possível que, sem ocupar lugar real no espaço, será sempre uma
chave generosa para que encontremos, narradores e leitores, nosso próprio
espaço no espaço real”. Esse é mais um aspecto que aponta para a literatura
como uma máquina que nos ajuda a viver melhor.
Publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 30 de junho de 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário