sexta-feira, 29 de junho de 2018

Entre a felicidade e a infelicidade: Apontamentos sobre “Literatura à Margem”, de Cristovão Tezza




Acaba de sair pela editora Dublinense, de Porto Alegre, “Literatura à Margem”, uma coletânea de conferências do escritor Cristovão Tezza apresentadas inicialmente em eventos literários, congressos universitários e na Academia Brasileira de Letras. Os textos revelam o pensamento inquieto de uma mente prodigiosamente reflexiva e poética. Os leitores do autor, acostumados com seus romances, naturalmente terão agora a oportunidade de conhecer melhor as concepções estéticas que norteiam seu trabalho de criação, bem como o pano de fundo de sua inserção no mundo da ficção.
Integrado a uma obra bastante fértil, que vai se ampliando desde os primeiros escritos dos anos 60 até os romances que conquistaram seu lugar no cânone da literatura brasileira contemporânea - e que levaram o escritor a figurar como uma personalidade do mundo das letras - , o material reunido em “Literatura à Margem” parece dialogar com o livro “O espírito da prosa” (2012), no qual Tezza apresentou uma reflexão ensaística sobre seu fazer literário desde o amadorismo artístico da juventude até a consagração da obra na maturidade. 
As conferências que vêm agora à lume, registradas em livro, podem ser lidas como capítulos de uma espécie de “uma autobiografia literária”, expressão que, aliás, é apresentada como subtítulo do já citado “O espírito da prosa”. Isso porque, independente dos assuntos tratados pelo romancista, sua história de vida é trazida à baila em vários momentos, o que permite aos leitores não apenas comungarem com ele de uma série de reflexões teóricas, mas também vivenciarem o depoimento de uma vida dedicada às venturas e desventuras do que chamamos de “arte literária”.

Na ABL, na conferência História de Leitor

Em uma das conferências, por exemplo, Tezza aborda a sua vida íntima e privada, apresentada paralelamente a uma reconstituição de fatos sociais, econômicos, culturais e políticos do Brasil nos últimos 50 anos, com o objetivo de demonstrar como a literatura brota da infelicidade. Trata-se do texto “História de Leitor”, apresentado na Academia Brasileira de Letras, em 2014. Uma série de fatores contribuíram para o ingresso do autor no mundo da literatura. Desde a perda precoce do pai até a sua mudança do interior de Santa Catarina para Curitiba, na juventude. Para Tezza, a verdadeira origem de um escritor está na infelicidade. A infelicidade produz literatura: “Pessoas felizes, eu gosto de brincar com esta imagem, não escrevem. Os felizes vão à praia, namoram sem conflito, assistem televisão, viajam com alegria, sofrem aqui e ali com parcimônia e compreensão, curtem as delícias da família, respeitam a realidade e os fatos – por que diabos iriam se trancar num quarto para escrever?”. No entanto, mais adiante, ainda na mesma conferência, o autor de “O Filho Eterno” considera que, assim como a infelicidade produz literatura, a literatura produz também felicidade. Na boa literatura, observa o escritor, os finais felizes costumam ser, paradoxalmente, “desmancha-prazeres”. Segundo esse ponto de vista, o bom leitor não suporta “água com açúcar”, preferindo a desgraça, os desdobramentos pesados, “a dura poesia de tudo que não tem solução”. Isso porque “queremos partilhar o que é irredimivelmente incompleto para confirmar que não estamos sozinhos”. Talvez também pela nossa inegável vocação para o trágico, bem como pela necessidade que temos de vivenciar a catarse.

Retrato da Folha de São Paulo

Na conferência que dá nome ao livro, “Literatura à Margem”, proferida na abertura do VII Festival Literário de Mantiqueira, em 2014, Tezza explora o conceito de marginalidade da arte literária para concluir que mesmo sendo quase sempre fruto de um sentimento de solidão, a literatura “nos tira da tábula rasa e oferece-nos a prospecção do passado e a experiência do presente, na comunhão solidária entre autor e leitor”. Nesse sentido, a palavra margem evoca não apenas a consciência da singularidade da literatura – o seu olhar particular sobre as coisas -, mas também o imperativo ético do escritor que escolhe a solidão do risco de fazer o que faz. Alude também à própria condição da literatura como atividade artística não valorizada em meio a tantas outras linguagens, bem como a marginalidade da literatura brasileira em relação àquela praticada em outros países. No entanto, penso que é exatamente essa condição de ser margem que permite a ela olhar com mais distanciamento e, portanto, com mais clareza para a vida (Padre Vieira Certa vez escreveu: “Há de estar apartado dos olhos para se poder ver”). Foi pensando também nessa questão que certa vez rabisquei os seguintes versos: “Nunca sei ao certo / o que vai no centro / se o ponto é o começo do fim / ou apenas o fim do começo / tudo depende da hora / tudo depende do meio // da margem melhor se olha / aquilo que nem sei direito”.
Nas outras conferências que integram a publicação, Cristovão Tezza aborda o fenômeno da criação literária e seus descaminhos, assim como a relação entre a literatura e os domínios da psicanálise, da autorrepresentação e da biografia. Em cada um dos textos a acuidade das ideias e o cuidado de uma escrita sofisticada que não se rende à banalidade nem à complexidade vazia. Em muitos momentos, as reflexões do autor nos conduzem a conclusões muito pertinentes sobre o universo da literatura. Pérolas como estas: “(...) escrever será sempre duplicar o mundo para torná-lo mais habitável”; “(...) o narrador que escreve o livro é, em alguma medida, o psicanalista distante que recompõe e dá sentido aos fragmentos disparatados do evento da vida”; “Numa obra bem-sucedida, partilhamos a utopia de um mundo possível que, sem ocupar lugar real no espaço, será sempre uma chave generosa para que encontremos, narradores e leitores, nosso próprio espaço no espaço real”. Esse é mais um aspecto que aponta para a literatura como uma máquina que nos ajuda a viver melhor.   

Publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 30 de junho de 2018

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