domingo, 17 de junho de 2018

O que o leitor quis ler? Notas sobre a estranha prosa de Mário Bellatin



Um escritor que tira sua perna mecânica toda vez que vai entrar em uma mesquita para rezar; um treinador de cães, intitulado Homem Imóvel, que não tem os movimentos dos membros inferiores e superiores e, mesmo assim, treina pastores belgas malinois, contando com a ajuda de seu enfermeiro; o judeu Jacobo Pliniak que, por ser mutante, se transforma, ao longo da trama, em uma anciã, a piedosa dama Rosa Plinianson; o artista Antonio, cuja morte é transformada em obra de arte; o cientista Olaf Zumfelde que descobriu em um remédio a causa da má formação de fetos. Eis algumas das estranhas personagens que povoam os textos de Mario Bellatin, um dos mais produtivos e inovadores escritores da literatura latino-americana contemporânea.



Lembrando por vezes o desfile de grotescos do livro “As Tentações de Santo Antão”, de Flaubert, ou as bizarras atrações circenses do filme “Freaks”, de Tod Browning, os seres imaginados pelo autor mexicano, geralmente mutilados ou sofrendo de algum tipo de anomalia genética, aparecem em livros como “Efecto Invernadero”, “Jacobo el mutante”, “Los fantasmas del masajista”, “Biografía ilustrada de Mishima”, “La mirada del pájaro transparente”, entre outros. Perto da vasta produção de Bellatin, as suas traduções para o português ainda são escassas, mas quem gosta de se aventurar no original pode ler a quase totalidade de seus livros nos volumosos “Obra Reunida” e “Obra Reunida 2”, editados pela Alfaguara espanhola. As duas antologias trazem compiladas quase quarenta novelas do escritor.



No Brasil, saíram, por exemplo, “Salão de Beleza” (Leitura XXI), “Cães Heróis” e “Flores” (Cosac-Naify).
Em “Salão de Beleza”, uma das primeiras e mais conhecidas novelas do autor, encontramos a estranha história de um cabeleireiro que transforma seu salão de beleza em um abrigo para homens em estado terminal, todos vítimas de uma misteriosa epidemia (lembre-se que o livro é publicado nos anos 90, período em que o vírus do HIV apavorava a todos por seus efeitos e causas ainda não bem conhecidos até então). O narrador-protagonista, que antes era fascinado por aquários e peixes ornamentais com a finalidade de embelezar o antigo salão, se transforma sem motivo aparente numa espécie de enfermeiro que assiste uma série de doentes sem lar e que estão próximos da morte: “Pode parecer difícil acreditar nisso, mas quase já não individualizo os hóspedes. Cheguei a um estado em que todos são iguais para mim. No início, eu os reconhecia. Inclusive, uma vez ou outra, cheguei a sentir carinho por algum deles. Mas agora não são mais que corpos em transe rumo ao desaparecimento”. À medida que a narrativa se expande, o leitor fica sabendo do passado do narrador, antes um travesti que se aventurava com seus amigos pelas ruas e saunas da cidade. Boa parte da narrativa é gasta tratando de comentários sobre peixes e seus modos de vida. Estranho e confuso, não?


Em “Cães Heróis”, encontramos episódios não menos inquietantes. A começar pela inscrição que acompanha o título já na primeira página: “Tratado sobre el futuro de América Latina visto a través de un hombre inmóvil y sus treinta pastor belga malinois”. Que tipo de relação se estabelece entre a história do homem imóvel e que é treinador de cães com o futuro de nossa América? O escritor não esclarece. O enredo relata apenas os acontecimentos banais que envolvem a vida cotidiana deste treinador e suas necessidades especiais. Então, de que maneira o livro pode ser lido como uma alegoria das condições futuras da América Latina? A questão nos leva até algumas entrevistas e depoimentos nos quais Mario Bellatin declara seu interesse em produzir não apenas enigmas, mas também uma narrativa que fuja das maneiras tradicionais de representação, maneiras que, segundo ele, estão gastas, principalmente na América Latina. O que o mexicano deseja, assim, é estabelecer uma cumplicidade entre autor e leitores, convidando-nos a produzir o enredo junto com ele, ou pelo menos imaginando para além do escritor possibilidades de leitura para a obra. Trata-se de levar o leitor a transitar por um universo construído a “partir de sua própria lógica”, “a partir de sua própria retórica”. Ou seja, após a leitura de um livro de Bellatin, ao invés de perguntarmos a nós mesmos “o que o autor quis dizer com isso?”, talvez fosse mais interessante lançarmos: “O que nós, leitores, podemos ler com isso?”, ou ainda “O que nós, leitores, podemos inventar com isso?”. Trata-se de uma concepção de leitura pautada pela liberdade nas mais variadas dimensões que um livro possibilita. Se por um lado a prosa de Bellatin é movida pelo “non sense”, complicando a vida do leitor, por outro, é essa mesma complexidade que nos convida a inventar sentidos para os textos que lemos. Para compreender com eficiência o que estou dizendo, os leitores devem se aventurar na leitura de sua obra. Gostando ou não, vale a pena conferir.


Em “Flores”, elaborado em um período no qual o autor ficou hospedado em uma Residência de Escritores, nos Estados Unidos, encontramos um livro-montagem, pautado por um trabalho de artesania que partiu da reunião de textos e notas literárias previamente elaborados. Os fragmentos, escritos separadamente e fora de um projeto de livro, apesar de na maior parte das vezes não terem nada em comum, foram sendo aproximados e editados, até formarem a novela. Ou seja, o trabalho do autor estaria mais em recortar, montar e colar – como numa ilha de edição cinematográfica – do que propriamente em escrever. Vem daí seu ímpeto vanguardista. Isto tem a ver com os interesses do autor, que chegou a estudar cinema.


Assim como em outras novelas, a prosa dispersiva de “Flores” aponta para personagens mutilados, vítimas de anomalias, e outros sujeitos estranhos que, conscientemente ou não, estão atravessados por uma reflexão sobre a identidade em tempos atuais, líquidos. Seres a nos lembrar constantemente que a realidade é uma coisa bem estranha.

Publicado originalmente no jornal Caiçara,  de União da Vitória - PR, em 16 de junho de 2017.

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