Cristovão Tezza,
certamente, figura entre os melhores prosadores da literatura brasileira
contemporânea. Tenho acompanhado com interesse seu trabalho desde há alguns
anos quando o escritor ainda não era muito conhecido do grande público.
Embarquei com ele nas aventuras teatrais com toques fantásticos que povoam seu
romance “Ensaio da Paixão”, encantei-me com o poeta marginal “Trapo” e suas
incursões literárias pela cidade de Curitiba, aventurei-me pelo universo da
arte em seu “Breve espaço entre cor e sombra”, emocionei-me com o premiado “O
filho eterno” - no qual Tezza ofereceu aos leitores uma comovente autoficção
inspirada no seu contato por meio do filho com o universo da síndrome de down -,
passeei pelos registros de “O fotógrafo”, conheci um pouco de sua jornada como
escritor na autobiografia literária “O espírito da prosa”, li alguns de seus
contos e crônicas, e na semana passada escrevi aqui sobre a publicação de suas
conferências literárias, reunidas no livro “Literatura à Margem”, publicado em
junho de 2018, no mesmo ano em que o escritor lançou seu novo romance, “A
tirania do amor”. Ambos saindo do forno.
Tezza vinha nos
últimos anos trabalhando com protagonistas oriundos do universo das letras ou
do magistério. Tomem-se como exemplo personagens emblemáticos como a tradutora
que dá nome a um de seus mais recentes livros, ou o professor Heliseu, sobre o
qual o também professor aposentado Tezza se debruça em um romance publicado em
2014. Aliás, a figura do professor já havia aparecido em “O filho eterno”, e
também em “Uma noite em Curitiba”.
Agora, no seu
mais recente romance, “A tirania do amor”, o protagonista Otávio Espinhosa é um
renomado economista que se relaciona com o mundo por meio de números. Ele é
capaz de extrair raízes quadradas complexas em segundos e de solucionar
cálculos variados sem qualquer esforço aparente. A todo momento, o protagonista
opera suas contas, mas é incapaz de resolver problemas pessoais básicos que
envolvem um casamento falido, a relação difícil com o filho revoltado, o
abandono da vida acadêmica, bem como o emprego no escritório (prestes a ser
incluído em uma operação investigativa pela denúncia de desvio de dinheiro).
Some-se a isso uma relação difícil com seu passado, a saber uma convivência
complexa com o pai e uma breve carreira como escritor de literatura de
autoajuda, em uma obra cujo título sugestivo de “A matemática do amor” foi
publicada com o pseudônimo Kelvin Oliva. Depois de descobrir que está sendo
traído pela mulher, Otávio toma uma decisão radical: abdicar do sexo. Este é um
dia difícil, porque é nele que o protagonista será também despedido do seu
emprego.
A ruína
profissional e a falência do amor são retratadas em meio às crises políticas do
Brasil contemporâneo. À medida que Otávio Espinhosa vai mergulhando no caos
afetivo e profissional, o leitor assiste no livro à decadência social e
econômica do país. Qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência.
Isso porque Tezza capta com absoluta eficiência os dramas políticos do
presente, refletindo sobre os dilemas enfrentados por uma sociedade que vem a
cada dia se sentindo deslocada e abandonada por seus dirigentes.
Em vários
momentos da narrativa, Otávio Espinhosa alude à “Ética”, de Spinoza, produzindo
conexões com a filosofia para tentar entender a sua vida. Aliás, o filósofo
renascentista escreveu sobre a origem e natureza dos afetos, considerando o
amor uma alegria acompanhada da ideia de sua causa. A escolha paronomástica do
nome da personagem e do filósofo que o acompanha não é fortuita em um livro
sobre o amor e sobre a matemática. À medida que o enredo avança, a personagem
vai percebendo que sua lógica matemática e racionalista não dá conta de
resolver os problemas de seu coração. A beleza do livro, nesse sentido, parece
estar ligada a um processo de gradativa transformação da personagem. No
entanto, o que mais chama a atenção em “A tirania do amor” é a qualidade na
arte de narrar. Influenciado pela teoria da polifonia desenvolvida pelo teórico
russo Bakhtin, sobre o qual o escritor/professor desenvolveu sua tese de
doutorado, Tezza mescla com eficiência um realismo plástico com o fluxo da
consciência das personagens, misturando vozes e discursos em um vai e vem de
ideias capaz de tornar sua narrativa mais complexa, mas ao mesmo tempo mais
rica, pela pluralidade de impressões e pontos de vista que, inevitavelmente,
enriquecem a leitura de uma obra literária.
O tema do
romance pode parecer um pouco banal – apesar de que escrever um bom livro sobre
o amor parece continuar sendo o desejo de quase todos os grandes prosadores –
no entanto, o que torna o romance agradável é a forma como a história é contada.
No fim das contas, não importa de que trata o amor, importa o que fazemos com
ele. E sua tirania, querendo ou não, nos empurra com força para a vida e, como
uma boa ficção, ele sempre pode acabar ou começar em uma boa história.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 07 de julho de 2018
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