sábado, 4 de agosto de 2018

Entre a palavra e a fotografia: Conversando na Sicília com Elio Vittorini




Diante do livro “Conversa na Sicília”, de Elio Vittorini, talvez fosse mais pertinente perguntarmos como a obra foi montada e não como ela foi escrita. Naturalmente, um romance se faz com palavras, mas nesse caso o conjunto de fotografias que o acompanham contribuem significativamente para fazer dele o que ele é. Isso porque é somente no momento em que as imagens são dispostas na mesa de montagem, em diálogo permanente com o texto, que o romance alcança sua potência poética e política.
Elio Vittorini, que viveu entre 1908 e 1966, escreveu boa parte de sua obra no pós-guerra e, como um bom militante antifascista, fez da literatura um instrumento de denúncia e reflexão social. Isso sem perder a qualidade estética que fez dele um renovador do romance italiano no contexto do neo-realismo.

Elio Vittorini

Lançado inicialmente em capítulos, no final dos anos 30, na revista “Letteratura”, e depois na íntegra em livro, em 1941, “Conversa na Sicília” ganhou a versão ilustrada apenas em 1953, organizada pelo autor com fotos de Luigi Crocenzi e Giacomo Pozzi Bellini. A versão brasileira, publicada pela Cosac Naify (2002), foi traduzida por Valêncio Xavier e Maria Helena Arrigucci. Aliás, Valêncio, em uma entrevista concedida a Joca Reiners Terron, ao avaliar sua obra, lembrou do fascínio nele exercido pelo romance de Vittorini, cujas fotografias lhe ensinaram o papel que a imagem tem que ter no texto: “ser ao mesmo tempo uma coisa alheia, mas inteirada”. Creio que a expressão “alheia, mas inteirada” esteja ligada ao fato da fotografia estar e não estar relacionada ao enredo do livro, ou seja, não é apenas ilustrativa, mas se lança em permanente diálogo – inclusive enigmático – com a obra escrita. Só encontrei essa experiência, além de Elio Vittorini e Valêncio Xavier, em livros do alemão W.G. Sebald, como “Os emigrantes” ou “Austerlitz” e do italiano Umberto Eco, como “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”. A única maneira do leitor compreender essa dimensão “alheia, mas inteirada” das imagens na obra de Elio Vittorini é lendo seu livro.

Luigi Crocenzi

 O romance narra a história de um italiano que, depois de receber uma carta de seu pai, volta para sua cidade de origem para visitar a mãe. Para isso empreende uma viagem que lhe permite captar cenas cotidianas de um povo humilde e oprimido pela vida. O narrador, durante a viagem, ouve histórias de pessoas comuns. Quando chega na vila montanhosa de sua infância, no sul da Itália, é levado por sua mãe solitária a um passeio pela comunidade. Nós, leitores, entramos com eles nas casas de proletários que povoam o livro com suas histórias aparentemente banais. Mas por trás da aparente banalidade o livro vai construindo uma poesia muito singular e típica do neo-realismo italiano, uma poesia que podemos encontrar, por exemplo, no cinema de Roberto Rosselini, Victorio de Sicca e Luchino Visconti.    



O livro possui uma linguagem precisa, seca e agreste – como sugeriu Bernardo Carvalho – o que faz lembrar de um escritor como Graciliano Ramos que, na mesma época estava escrevendo “Vidas Secas”, no Brasil. Aliás, observe-se que Vittorini publica os primeiros capítulos do livro justamente em 1938, ano em que Graciliano lança seu clássico romance. Bernardo Carvalho, em uma crítica, observa que em “Conversa na Sicília” estamos diante não do retrato sociológico de uma realidade, mas da ideia de que “a riqueza desta realidade para a literatura depende da subjetividade do olhar lançado sobre ela”. O narrador, à medida que passeia por sua vila de origem, revisita principalmente a sua infância, em um tempo redescoberto.  



O procedimento de montagem do livro, no jogo de uma relação dialética entre texto e imagem, entre palavras e fotografias - que é um jogo cinematográfico por excelência -, certamente mereceria uma análise mais ampla. Cito apenas alguns exemplos aqui. Em uma passagem, depois de assistir a sua mãe aplicar injeções em algumas mulheres, o narrador reflete sobre o corpo feminino e a descoberta da sexualidade, na infância. O texto é acompanhado da fotografia de uma de Vênus de Giorgione (da pinacoteca de Dresden), da imagem de uma mulher desconhecida, e de um postal no qual se vê a escultura de uma mulher nua. Em meio à narrativa do livro, vão aparecendo fotos alheias, mas inteiradas, que vão construindo anacronicamente um inusitado diálogo com o que é contado: a foto de um menino da Sicília, do vulcão Etna visto do trem Messina-Catânia, de um homem nas montanhas Madonie, de um monumento, de uma mãe, de um doente, de uma vila, de crianças na cidade de Siracusa, etc.


Segundo o próprio autor, assim como o protagonista do livro não é autobiográfico, a Sicília da obra não é a Sicília: “somente porque o nome Sicília me soa melhor do que o nome Pércia ou Venezuela”. Naturalmente, a frase com sabor de ironia mostra a dimensão simultaneamente local e universal do livro. É sim uma obra sobre a Itália, em uma época bélica de pobreza e desesperança, mas é principalmente um livro sobre o triste e porque não dizer belo reencontro com a infância em uma época de não-esperança, questão permanentemente atual. As fotografias do livro mostram bem a marca de seu tempo gravada na aridez de seu cenário e no semblante seus personagens.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 04 de agosto de 2018

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