Diante do livro
“Conversa na Sicília”, de Elio Vittorini, talvez fosse mais pertinente
perguntarmos como a obra foi montada e não como ela foi escrita. Naturalmente,
um romance se faz com palavras, mas nesse caso o conjunto de fotografias que o
acompanham contribuem significativamente para fazer dele o que ele é. Isso
porque é somente no momento em que as imagens são dispostas na mesa de
montagem, em diálogo permanente com o texto, que o romance alcança sua potência
poética e política.
Elio Vittorini,
que viveu entre 1908 e 1966, escreveu boa parte de sua obra no pós-guerra e,
como um bom militante antifascista, fez da literatura um instrumento de
denúncia e reflexão social. Isso sem perder a qualidade estética que fez dele
um renovador do romance italiano no contexto do neo-realismo.
Elio Vittorini
Lançado
inicialmente em capítulos, no final dos anos 30, na revista “Letteratura”, e
depois na íntegra em livro, em 1941, “Conversa na Sicília” ganhou a versão
ilustrada apenas em 1953, organizada pelo autor com fotos de Luigi Crocenzi e
Giacomo Pozzi Bellini. A versão brasileira, publicada pela Cosac Naify (2002),
foi traduzida por Valêncio Xavier e Maria Helena Arrigucci. Aliás, Valêncio, em
uma entrevista concedida a Joca Reiners Terron, ao avaliar sua obra, lembrou do
fascínio nele exercido pelo romance de Vittorini, cujas fotografias lhe
ensinaram o papel que a imagem tem que ter no texto: “ser ao mesmo tempo uma
coisa alheia, mas inteirada”. Creio que a expressão “alheia, mas inteirada”
esteja ligada ao fato da fotografia estar e não estar relacionada ao enredo do
livro, ou seja, não é apenas ilustrativa, mas se lança em permanente diálogo –
inclusive enigmático – com a obra escrita. Só encontrei essa experiência, além
de Elio Vittorini e Valêncio Xavier, em livros do alemão W.G. Sebald, como “Os
emigrantes” ou “Austerlitz” e do italiano Umberto Eco, como “A Misteriosa Chama
da Rainha Loana”. A única maneira do leitor compreender essa dimensão “alheia,
mas inteirada” das imagens na obra de Elio Vittorini é lendo seu livro.
Luigi Crocenzi
O romance narra a história de um italiano que,
depois de receber uma carta de seu pai, volta para sua cidade de origem para
visitar a mãe. Para isso empreende uma viagem que lhe permite captar cenas
cotidianas de um povo humilde e oprimido pela vida. O narrador, durante a
viagem, ouve histórias de pessoas comuns. Quando chega na vila montanhosa de
sua infância, no sul da Itália, é levado por sua mãe solitária a um passeio pela
comunidade. Nós, leitores, entramos com eles nas casas de proletários que
povoam o livro com suas histórias aparentemente banais. Mas por trás da
aparente banalidade o livro vai construindo uma poesia muito singular e típica
do neo-realismo italiano, uma poesia que podemos encontrar, por exemplo, no
cinema de Roberto Rosselini, Victorio de Sicca e Luchino Visconti.
O livro possui
uma linguagem precisa, seca e agreste – como sugeriu Bernardo Carvalho – o que
faz lembrar de um escritor como Graciliano Ramos que, na mesma época estava
escrevendo “Vidas Secas”, no Brasil. Aliás, observe-se que Vittorini publica os
primeiros capítulos do livro justamente em 1938, ano em que Graciliano lança
seu clássico romance. Bernardo Carvalho, em uma crítica, observa que em
“Conversa na Sicília” estamos diante não do retrato sociológico de uma
realidade, mas da ideia de que “a riqueza desta realidade para a literatura
depende da subjetividade do olhar lançado sobre ela”. O narrador, à medida que
passeia por sua vila de origem, revisita principalmente a sua infância, em um
tempo redescoberto.
O procedimento
de montagem do livro, no jogo de uma relação dialética entre texto e imagem,
entre palavras e fotografias - que é um jogo cinematográfico por excelência -,
certamente mereceria uma análise mais ampla. Cito apenas alguns exemplos aqui.
Em uma passagem, depois de assistir a sua mãe aplicar injeções em algumas
mulheres, o narrador reflete sobre o corpo feminino e a descoberta da
sexualidade, na infância. O texto é acompanhado da fotografia de uma de Vênus
de Giorgione (da pinacoteca de Dresden), da imagem de uma mulher desconhecida,
e de um postal no qual se vê a escultura de uma mulher nua. Em meio à narrativa
do livro, vão aparecendo fotos alheias, mas inteiradas, que vão construindo
anacronicamente um inusitado diálogo com o que é contado: a foto de um menino
da Sicília, do vulcão Etna visto do trem Messina-Catânia, de um homem nas
montanhas Madonie, de um monumento, de uma mãe, de um doente, de uma vila, de crianças
na cidade de Siracusa, etc.
Segundo o
próprio autor, assim como o protagonista do livro não é autobiográfico, a
Sicília da obra não é a Sicília: “somente porque o nome Sicília me soa melhor
do que o nome Pércia ou Venezuela”. Naturalmente, a frase com sabor de ironia
mostra a dimensão simultaneamente local e universal do livro. É sim uma obra
sobre a Itália, em uma época bélica de pobreza e desesperança, mas é
principalmente um livro sobre o triste e porque não dizer belo reencontro com a
infância em uma época de não-esperança, questão permanentemente atual. As
fotografias do livro mostram bem a marca de seu tempo gravada na aridez de seu
cenário e no semblante seus personagens.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 04 de agosto de 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário