O livro “Se nada mais der
certo eu não tenho plano B” (Arte & Letra, 2016) marca a estreia literária
da escritora curitibana Verginia Grando, que já possui experiência no cinema e
na publicidade. Em literatura, nem sempre as estreias são bem sucedidas, pois
geralmente o “primeiro filho” é criado com os erros que decorrem da
inexperiência daqueles que o geraram. Não é o caso da autora, pois sua obra primogênita
já sugere uma maturidade peculiar daqueles que desde o começo demonstram que
estão no caminho certo. O fato não é comum, mas acontece. Talvez essa maturidade
venha de sua experiência na produção de roteiros publicitários e
cinematográficos.
O romance narra uma
semana na vida da escritora G., desde que ela recebe o telefonema de uma
editora até o dia da reunião que definiria a publicação ou não de seu livro.
Encantam-me essas obras cujos personagens são artistas em busca da própria
obra. É o que vemos, por exemplo, em “A louca da casa”, da escritora espanhola
Rosa Montero, ou no filme “Oito e Meio”, do italiano Federico Fellini. A
protagonista do romance de Verginia Grando tem apenas trinta e cinco anos, mas
uma profundidade psicológica impressionante e a impressão que se tem dela, ao
lermos o livro, é que estamos mesmo diante de uma pessoa, o que não acontece
com todos os personagens que nos são apresentados por contos, novelas ou
romances. Ao longo da obra, paralelamente à questão do livro escrito por G. -
sobre o qual a única coisa que sabemos é que ela o enviara a uma editora -,
muitos fatos vão sendo intercalados: o término mal resolvido de um
relacionamento; reencontros com pessoas que passaram pela vida de G. – como
casos amorosos que vão reacendendo antigas paixões -; a revisão de questões
familiares, como a relação difícil com a mãe e com a irmã; o interesse e o
mergulho na própria autodescoberta e transformação da personagem; as incertezas
em relação ao futuro da escritora etc.
“Se nada mais der certo
eu não tenho plano B” possui uma bela trilha sonora - apontada nos episódios da
trama - que vai de um disco clássico de Elton John até um álbum de Nick Cave
and the Bad Seeds, passando por Chet Baker e Clube da Esquina. O que faz do
romance uma espécie de obra musical, não apenas pelas músicas citadas em meio
às cenas, mas também por uma musicalidade inerente ao ritmo na própria
narrativa. Tudo isso pontuado por uma série de pequenos e belos detalhes que
marcam a observação minuciosa da escritora-protagonista. Refiro-me, por
exemplo, ao encontro de G. com uma cadeirante no ônibus. Nesta cena, o olhar
trocado entre duas personagens estabelece uma ponte entre dois seres humanos,
mostrando a vocação para a comunhão que há em nós. Outros detalhes: uma
joaninha prestes a morrer queimada em uma lamparina até ser salva pela jovem, as
gotas de chuva escorrendo na janela de um restaurante, uma garça que passa
voando baixo “rente ao vidro que ainda está salpicado de gotas de chuva” etc.
Penso, como Roland Barthes, que um romance se faz sempre a partir de um conjunto de fragmentos, atos
mínimos da enunciação, que vão preenchendo as páginas e alimentando a história que
se conta. Trata-se, como sugeriu George Simmel, de “ver no individual o
universal”. Há no livro de Verginia Grando uma dimensão profundamente poética
na disposição de seu olhar, traduzida na sensibilidade de G., sua protagonista,
aberta para esses pequenos detalhes.
Sobre a quantidade de
reflexões filosóficas que povoam o livro, bem como as frases poéticas que
brotam da boca de seus personagens, isso não prejudica o andamento de sua
narrativa. Pelo contrário, amplificam a dimensão poética e reflexiva da obra.
Uma frase como: “- Eu estava desenhando teus
detalhes dentro de mim e desejando que o teu ar nunca acabe”, proferida por um
dos personagens, poderia ser equivocadamente interpretada como inverossímil,
exagerada, pretensiosa. No entanto, não esqueçamos que a literatura goza de
licenças poéticas. Caso contrário, um romance como “Lavoura Arcaica”, de Raduan
Nassar, não poderia conter os diálogos que apresenta. E no entanto, são
justamente eles que fazem a beleza da composição de seus personagens.
Logo no início da obra,
deparamo-nos com as lembranças de infância evocadas por G., na descrição de uma
atividade das aulas de inglês. Trata-se daquele exercício escolar em que as
pessoas devem completar as lacunas usando palavras que definam o sujeito: “I
am..., My name is... I like...”. Essa reminiscência serve para a protagonista
pensar na sua relação com a própria literatura, entendida como um exercício no
qual cabe ao escritor preencher com palavras o vazio da página: “Ainda hoje ela
não conseguia colocar palavras no lugar daqueles espaços vazios”. A frase
sugere não apenas a dificuldade de encarar o fantasma da escrita literária, mas
também e principalmente a dificuldade de manifestar no texto sua intimidade,
pois independentemente do fenômeno literário se caracterizar como uma
arquitetura textual, a matéria-prima que lhe dá base e sustentação será sempre
o sentimento, a sensibilidade, a pulsão, as paixões, elementos que fazem parte
daquele lado misterioso que nunca conseguimos domar completamente sem que
corramos o risco de nos transformarmos naquilo que não somos. Isso porque no
fundo no fundo da vida, para além dos erros e acertos, quase nunca temos um
plano B.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 18 de agosto de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário