A violência é o
eixo em torno do qual giram as duas grandes questões abordadas por Bernardo
Carvalho em seu mais novo romance. Tanto a relação amorosa entre dois homens
(ou três, já que estamos diante de um triângulo amoroso), quanto conflitos
envolvendo o terrorismo contemporâneo estão atravessados pela perversidade em
“Simpatia pelo Demônio”, lançado pela Companhia das Letras, em 2016.
Considero
Bernardo Carvalho um dos escritores mais importantes de sua geração.
Particularmente, um dos cinco prosadores brasileiros da atualidade que mais têm
chamado a minha atenção nos últimos anos. Entre um curioso livro de contos
intitulado “Aberração” (1993) e os mais recentes “O Filho da Mãe” (2009) e
“Reprodução” (2013), o autor produziu uma série de romances que o consolidaram
entre os melhores da literatura brasileira contemporânea. Refiro-me a pérolas
como “Nove Noites” (2002) e “Mongólia” (2003) - fundamentais para quem deseja
conhecer sua obra -, bem como outros títulos: “Onze” (1995), “Os Bêbados e os
Sonâmbulos” (1996), “Teatro” (1998), “As iniciais” (1999) “Medo de Sade” (2000)
e “O sol se põe em São Paulo” (2007) ("Onze", "As iniciais" e "O sol se põe em São Paulo" ainda não tive a
oportunidade de ler, estão na fila). Bernardo Carvalho é também jornalista da
Folha de São Paulo, onde escreve sobre arte em geral. Parte de sua produção
jornalística está reunida no livro “O mundo fora dos eixos” (2005), composto
por crônicas, resenhas e demais ficções.
“Simpatia pelo Demônio” possui um enredo
complexo e cheio de nuances, como é comum na obra do autor. O livro apresenta a
história de Rato, funcionário de uma agência humanitária nos Estados Unidos,
que é convocado para viajar até uma zona de guerra para entregar o resgate para
um grupo terrorista com a finalidade de libertar um refém. A primeira parte da
trama é escrita com o ritmo tenso e veloz que faz lembrar os filmes de guerra
passados em alguma zona do oriente como a Síria ou o Iraque. No hotel em que se
hospedara, Rato vivencia um ataque terrorista que fará contraponto a um outro
tipo de violência, refiro-me à perversidade de uma relação amorosa que será o
foco do romance. O protagonista, que escrevera uma tese sobre a violência em
zonas de conflito, acaba sofrendo bem mais com as adversidades do amor. Vivendo
uma crise no relacionamento com a esposa, Rato se apaixona por um
neurocientista mexicano, o Chihuahua, também chamado no livro de raposinha.
Esta personagem, profundamente narcisista, seduzirá o protagonista e com ele
viverá um caso doentio que, aos poucos, revelará ao protagonista a perversidade
que pode morar no amor, com seus jogos cruéis e repletos de mentiras. Chihuahua
vive com um ator, chamado no romance de Palhaço, uma personagem que contribuirá
para fazer do livro o palco de uma zona de conflito não apenas social, mas
também amoroso.
Após a leitura
do livro, uma espécie de parábola sem moral (os personagens com nomes de bichos
sinalizam para essa perspectiva), fica clara a proposta de Bernardo Carvalho
que é a de, em tempos de guerra, relacionar a violência social - centrada na
questão do terrorismo contemporâneo - a uma violência muito mais sutil, mas não
menos agressiva que é a violência do amor. Tal violência não está ligada apenas
à agressão física – que por sinal aparece nas últimas páginas do livro,
constituindo-se, também como um ato de barbárie -, mas principalmente à relação
cruel entre o desejo e a perversão que – inspirada, por exemplo, no pensamento
de Georges Bataille, aprofunda uma reflexão sobre a dimensão monstruosa do
amor. Uma questão que poderia ser traduzida pela seguinte pergunta: O que fazer
depois da catástrofe de um amor que nos destrói?
São Cristóvão Carregando o Menino Jesus, Hieronymus Bosch, 1490, óleo sobre tela, 113 x 72 cm. Museum Boijmans van Beuningen.
A capa do livro é um detalhe do quadro. Em um dos capítulos do livro o narrador analisa o quadro relacionando-o com o enredo do livro
Rato vive um
paradoxo no livro, pois ao chegar aos cinquenta anos, com a falência de seu
casamento, descobre que o novo amor lhe dá vida à medida que lhe tira o
equilíbrio, a ordem, a razão. A personagem precisa do amor de Chihuahua para
continuar viva, mas é esse mesmo amor que, com seus jogos mortais, lhe destrói
o ego e o coração. Aliás, o autor, em uma entrevista, observou que a personagem Chihuahua tem para ele muito a ver com o mundo de hoje, com o jeito como nos
relacionamos com o próximo. Ou seja, com a incapacidade de nos relacionarmos
com o outro. Chihuahua alimenta o ego de Rato para logo depois diminui-lo, numa
espécie de jogo animal no qual o rato é brinquedo de uma raposa. Segundo
Bernardo Carvalho, o Chihuahua tem uma relação narcisista com o mundo, uma
relação na qual o outro não existe de fato. Brotam daí todas as manipulações
possível que podem alimentar uma relação doentia.
Assim como o
livro de Bernardo Carvalho aborda as desrazões do amor, como palco de uma
espécie de conflito bélico, acaba fazendo também o inverso ao abordar as
desrazões da guerra, como palco de uma fé ou de um amor completamente
irracional. O autor permanece, assim, profundamente contemporâneo. Como em outros
livros seus, as identidades são postas em suspensão, e as estabilidades caem
por terra, em um jogo no qual os narradores ou sujeitos da narrativa não são
senhores de si, sendo apresentados com seres desterritorializados ou títeres de
um teatro criado por eles mesmos.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 06 de outubro de 2018.
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