“Machado”, o
mais recente livro de Silviano Santiago, ganhador da 59ª edição do prêmio
Jabuti, faz jus ao reconhecimento das qualidades de seu trabalho crítico e
literário. O escritor, aliás, neste trabalho borrou com propriedade as
fronteiras entre a crítica e a ficção. Com uma epígrafe elucidativa de
Jean-Paul Sartre, acerca de seu estudo sobre Flaubert, a obra demonstra o
quanto um trabalho ensaístico pode ganhar com uma certa mistura entre a ciência
e a arte: “Escritor é sempre um homem que escolheu mais ou menos o imaginário:
precisa de certa dose de ficção. No que se refere a mim, encontro-a no meu
trabalho sobre Flaubert que, aliás, pode ser considerado um romance”. É
exatamente nesse sentido que deve ser lido o livro de Silviano Santiago. É um
estudo sobre a obra de Machado de Assis – ou melhor uma aula ou um curso sobre
a literatura do Bruxo do Cosme Velho -, mas é principalmente um romance no qual
o romancista Silviano forja para o leitor os últimos anos de vida daquele que,
sem dúvidas, é um de nossos maiores escritores.
Talvez a última foto
Machado de Assis na revista argentina 'Caras y Caretas', de 25 de janeiro de 1908(Foto: Caras y Caretas/Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España)
O ensaio de
Silviano Santiago é profundamente criativo ao inventar seus modelos de leitura.
De um lado, apresenta uma série de ilustrações que o ajudam conceber um
procedimento de análise a partir de recortes de jornal, fotografias da cidade
do Rio de Janeiro no início do século XX, charges, anotações do autor de “Dom
Casmurro”, etc. De outro lado, encena seu olhar sobre a obra de Machado a
partir de uma ideia de teatro, como se a crítica fosse uma espécie também de
encenação. Depois de apresentar uma fotografia de Félix Nadar, de 1854, na qual
vemos um Pierrot operando uma máquina fotográfica, Silviano escreve que “o
mistério da escrita artística se revela tanto na escolha da pessoa a ser
imitada quanto da decisão de representá-la como já sendo parte integrante do
corpo do escritor”.
Como na arte teatral, a arte literária (e tome-se aqui a arte da crítica também), ao representar o sujeito que escreve, está representando um outro também. Se por um lado essa arte ensaística formulada por Silviano está próxima do teatro - ao comparar inclusive Machado com Buster Keaton -, por outro está também próxima do cinema. Para falar da relação entre Machado, José de Alencar e Joaquim Nabuco, o crítico apela para um recurso cinematográfico. Diz ele: “Prefiro descrever com a trucagem usada na montagem cinematográfica os encontros desencontrados das figuras. Esfumam-se três fotos acronológicas e distintas num único e intrigante fotograma. A imagem do abalroamento das sensibilidades afins nos anos 1870 se enriquece com o súbito aparecimento do rosto de Joaquim Nabuco a se sobrepor aos rostos fraternos de Alencar e de Machado (...)”.
Félix Nadar - Pierrot, o fotógrafo, de 1854
Como na arte teatral, a arte literária (e tome-se aqui a arte da crítica também), ao representar o sujeito que escreve, está representando um outro também. Se por um lado essa arte ensaística formulada por Silviano está próxima do teatro - ao comparar inclusive Machado com Buster Keaton -, por outro está também próxima do cinema. Para falar da relação entre Machado, José de Alencar e Joaquim Nabuco, o crítico apela para um recurso cinematográfico. Diz ele: “Prefiro descrever com a trucagem usada na montagem cinematográfica os encontros desencontrados das figuras. Esfumam-se três fotos acronológicas e distintas num único e intrigante fotograma. A imagem do abalroamento das sensibilidades afins nos anos 1870 se enriquece com o súbito aparecimento do rosto de Joaquim Nabuco a se sobrepor aos rostos fraternos de Alencar e de Machado (...)”.
Mário de Alencar
“Tudo só vivido
seria monótono; tudo só imaginado seria cansativo”. É assim que Silviano
Santiago resolve situar sua escritura, no limiar entre o documental e o
imaginado, entre o analítico e o literário. Machado é objeto de estudo e ao
mesmo tempo protagonista do livro de Silviano que, por sua vez, se apresenta
como personagem nesse criativo processo ensaístico: “As estradas das
respectivas vidas perdem as balizas cronológicas para que, em rebeldia à
sucessão dos anos e dos séculos, se transformem num único caminho, transitável
por ele, o protagonista Machado, e por mim, o personagem Silviano (...)”. Aliás,
Silviano nasce no mesmo dia em que morre Machado, só que quase 30 anos depois,
em 29 de setembro.
No seu
romance-crítica, ou melhor na sua crítica-romanesca, Silviano ensaia uma ficção
a partir do estudo das últimas cartas que Machado de Assis trocou com seus
amigos, em especial Mário de Alencar, que além de possuir as mesmas iniciais de
Machado, M. de A., sofria como ele de epilepsia, daí as crises de ambos serem
um dos assuntos recorrentes das cartas trocadas por eles. Machado acompanha a
polêmica eleição do amigo – que era filho de José de Alencar – para a Academia
Brasileira de Letras e os dois colegas trocam, por meio da correspondência, receitas
medicinais com a finalidade de amainar suas crises abruptas. Uma delas, aliás,
é retratada pelo fotógrafo Augusto Malta, em setembro de 1907, no cais Pharoux,
quando Machado - ao recepcionar Paul Doumer, que vinha da Europa -, sofre um
ataque em público.
Crise de Machado no Cais Pharoux
Foto de Augusto Malta
A agonia que
acompanha Machado é semelhante àquela que segue o Rio de Janeiro antigo à beira
da modernização que se intensifica na primeira década do século XX, com a
reforma urbana levada à cabo pelo prefeito Pereira Passos. A cidade de Machado
parece morrer junto com ele, em meio a espasmos convulsivos de uma crise atroz.
Enquanto o
correspondente Mário de Alencar insiste nas suas receitas homeopáticas, Machado
desconfia de seus efeitos e insiste que o amigo deve se consultar com o Dr.
Miguel Couto, seu médico de confiança. O bruxo acredita no poder farmacológico
de algumas substâncias para minimizar as crises e chega a indicar algumas para
Alencar. O romancista crê na ciência, mas diante da arte da escrita desconfia
do cientificismo literário presente no naturalismo de Zola e ridiculariza a
nova moda – como podemos perceber em textos como “O alienista”.
Silviano Santiago
É interessante
perceber como Silviano Santiago relaciona a questão da doença de Machado com
sua produção literária, observando que a ideia de convulsão está no cerne de
sua obra. Segundo ele, a principal eficácia da atitude crítica de Machado de
Assis não está no compromisso da escrita romanesca com a história social que
lhe é contemporânea, a do liberalismo econômico. Sua poética está fincada na
farsa. Na comicidade do “discurso sem pé nem cabeça, no absurdo que se revela
verdadeiro por estar colado à desconstrução do saber humano pelo gestual
impassível do sofredor e pelas caretas abusivas que ele arma lá dentro, no
íntimo do artista, pelo descalabro nervoso que torna o corpo convulsivo, involuntariamente.”
Silviano encerra o livro fazendo uma bela análise da relação entre as crises de
Machado e o quadro “Transfiguração”, de Rafael Sanzio, obra, aliás, analisada
por Stendhal, de quem Machado era fiel leitor. Nunca Machado nos pareceu tão
forte e frágil ao mesmo tempo.
Transfiguração, de Rafael Sanzio
Caio Ricardo Bona Moreira
Publicado também no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 17 de novembro de 2018.
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