sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA: reflexões sobre o tempo




No final do ano passado, fiz aqui neste espaço um balanço de 2017 no que se refere às leituras literárias que realizei naquele período. Todo final de ano é tempo de refletir sobre o que passou na expectativa de criar um horizonte de possibilidades para o tempo que virá.
Em 2018, para além das obras que apresentei nesta coluna, gastei o meu tempo com outras leituras não menos inestimáveis. É uma pena não ter tempo para comentar sobre elas. Certa vez, César Aira escreveu que ler, como todas as demais atividades, “é um modo de ocupar o tempo”. Poderíamos substituir o verbo ocupar pelo perder, a título de brincadeira. Brinquemos rapidamente com o tempo (aliás, brincar é uma das formas mais interessantes de gastá-lo, e vem daí o sentido de sua inutilidade demasiado prazerosa).


Suponhamos que eu gaste aproximadamente três minutos para ler a página de um livro e ele tenha duzentas e cinquenta páginas (alguns podem ter mais ou menos, tire-se uma média). Isso significa que eu gastaria setecentos e cinquenta minutos para lê-lo, ou seja, umas doze horas e meia. Conto aqui o tempo bruto, sem pausas para descanso ou outras atividades. Se eu ler uma média de 60 livros no ano (um por semana, mais ou menos), já são setecentas e cinquenta horas de leitura, ou seja, algo em torno de trinta e um dias, o que equivale a um mês de leitura ininterrupta. O cálculo é apenas hipotético, portanto sem precisão, mas revela já um dado assustador, o valor que damos aos grifos que chamamos de textos.


Dobrando o tempo dessa atividade ao considerar a leitura de jornais, revistas e outros veículos que contemplam a literatura, poderíamos aumentar a dose para dois meses de pura leitura. Isso sem considerar o tempo que gastamos lendo ensaios acadêmicos, textos de alunos a serem avaliados ou revisados, provas a serem corrigidas, placas de trânsito, bulas de remédio, legendas de filmes, e-mails, mensagens de celular, manuais de instrução, outdoors, cardápios, extratos bancários, horóscopo, etc etc etc. Isso sem considerar o tempo que se gasta para se escrever uma página, bem maior do que aquele que gastamos para lê-la (o tempo seria multiplicado ainda mais). São vários textos escritos para o jornal durante o ano, alguns artigos científicos, uma série de relatórios da Universidade, etc etc etc. São coisas do ofício. Concentremo-nos apenas na leitura gratuita. Quantas outras coisas poderíamos fazer ou inventar com esse precioso tempo? Mas talvez resida nesse dispêndio a altivez de nossa vida, fora de qualquer ideia capitalista de acúmulo econômico do tempo. Georges Bataille chegou a escrever sobre o Potlatch, uma cerimônia religiosa de tribos indígenas norte-americanas na qual, depois de um longo período de acúmulo de bens (como alimentos, por exemplo), gastava-se tudo em apenas uma festa, valorizando-se assim o puro gasto. Penso que a leitura desinteressada seria uma espécie de Potlatch. Ler é uma festa.


Talvez precisemos ler menos para viver mais, no entanto quem garante que ao abandonarmos os livros seremos mais felizes, melhores pais, cônjuges, filhos, amigos, cidadãos? Imagino que quem joga e assiste ao futebol toda semana, investe o seu tempo em algo que lhe dá prazer de forma não muito diferente. E a importância do que lemos e escrevemos pode não ser maior do que a beleza e o prazer que podemos encontrar em uma partida esportiva. São formas de brincar e de gastar o tempo. Um jogo pode ser mais trágico, belo, ou filosófico que uma peça teatral, por exemplo. Nelson Rodrigues sabia disso. Rimbaud abandonou a literatura para viver a vida ao se transformar em um viajante e traficante de armas na Etiópia. Não teria sido essa aventura sua obra mais poética? Se o tempo do Natal é tempo de reflexão, fica, então, lançada a questão.


Vinícius de Moraes, um poeta que tenho descoberto e redescoberto com alegria imensa e curiosidade renovada desde há alguns anos, ao escrever um poema sobre o Natal, em 1946, deixou de lado os aspectos folclóricos e religiosos da data para refletir sobre o motivo da vida, ou seja, sobre aquilo para o que fomos feitos, tudo isso pensando no tempo. No texto, o escritor (libriano como eu) se inspira no Natal para tecer um olhar não apenas sobre o nascimento (assunto indissoluvelmente ligado a essa festividade), mas também sobre o andar da carruagem da vida e sobre a morte. Segundo Vinícius, fomos feitos para “lembrar e ser lembrados”, para “chorar e fazer chorar”, e para “enterrar os nossos mortos”. Na última estrofe, ele observa que fomos feitos para a “esperança no milagre”, para a “participação da poesia”, e para “ver a face da morte”. E finaliza escrevendo: “(...) de repente nunca mais esperaremos... / hoje a noite é jovem; da morte, apenas / nascemos imensamente”. Retirar a morte dessa aura de horror e vê-la principalmente como uma fonte de vida, ou melhor de renovação, é mais do que uma ideia para Vinícius, mas parte de uma maneira singular e religiosa de ver a vida. Nada acaba, tudo se transforma. A expectação do nascimento de Cristo, que se repete por meio do rito, aponta de certa forma para a expectação de um novo período, um novo ano, que nasce como Cristo, e nos convida a renascer com ele. Vinícius chegou a escrever outros poemas sobre o Natal. Um deles integra a famosa série da “Arca de Noé”, pensada para as crianças, e outro acompanha uma crônica de 1953, que se encerra com a seguinte estrofe: “Muito tempo faz... / mas ninguém olvida / que é um dia de paz... / porque fez-se a vida!”.



Na imaginação de Mario Quintana, lá bem no alto de um décimo andar do Ano, vive uma louca chamada Esperança: “E ela pensa que quando todas as sirenas / todas as buzinas; todos os reco-recos tocarem / atira-se / e / - Ó delicioso voo / ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada / outra vez criança (...)”. E tudo recomeçará. Mario devolve sentido para o famoso dito de que a esperança é a última que morre. Que possamos nos encontrar sempre lá, vivos na calçada de 2019, e tendo ao nosso lado incólume – meninazinha de olhos verdes – a louca Esperança: “Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: — O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...”. Gastemos todo o nosso tempo para gestá-la se inexistente, para lapidá-la se pedra, para encontrá-la se perdida, para regá-la se planta, ou alimentá-la se pequena e frágil. Feliz Natal a todos! Que venha o próximo tempo! E que ele esteja repleto de boas leituras, porque elas sempre honram o precioso tempo que gastamos com elas.



Obs: Agradeço ao jornal Caiçara por gastar seu importante espaço com minhas palavras, permitindo-me nele gastar o meu tempo, brincando com aquilo que amo, com essas palavras que me dizem tanto a respeito de quase tudo.

Publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 22 de dezembro de 2018



Um comentário:

hstrre disse...

Sempre um prazer a leitura e as reflexões que nos oferece meu caro amigo! Abraço!