Acostumados com
as obras tradicionais de filosofia, na certa os leitores se espantariam com as
páginas de “Fogo no Mato: A ciência encantada das macumbas” (2018, Mórula
Editorial), do pedagogo Luiz Rufino, que é doutor em Educação, e do Luiz
Antonio Simas, professor de História e cronista de mão cheia. Repletas de
alegria e pensamento, de provocação e sábio engenho, as páginas deste curioso
livro nos convidam a um passeio por um mundo ainda pouco decifrado e
reconhecido pela academia. Isso porque estamos diante de um conjunto de saberes
ancestrais e sagrados que alimentam uma rica e complexa teia de cultura popular
que só aos poucos vai sendo assimilada pelo nosso mundo secular. Trata-se,
aqui, de um Brasil compreendido como terreiro, no qual os encantados, os
atabaques, as benzeduras, os juremeiros, Santos e Orixás, fazem a sua morada.
Mãe Terezinha Bulhões na Cidade de Maria do Acaes. 2008. Foto de Mariana Lima.
As veredas pelas
quais passeiam os autores do livro são repletas de encruzilhadas e feitiços
capazes de desnortear os leitores que não estiverem dispostos a entrar no jogo
de seus encantos. Em uma época na qual a pluralidade de perspectivas é abolida
em favor de um sentido único, e as históricas intolerâncias vão se adaptando ao
mundo moderno, o estudo de Simas e Rufino reinsere a lógica do cruzamento e o
caminho da pluralidade como fonte de excelência para o pensamento. Ao mesmo
tempo que afirma sua potência filosófica - apontando outros caminhos para o
pensar -, o livro investe em um olhar antropológico que apresenta a nossa
cultura popular religiosa, de matriz afro, como detentora de saberes capazes
não só de enriquecer o nosso conhecimento, mas também de devolver potência para
zonas não domesticadas do nosso corpo e do nosso espírito, alargando nosso
olhar para outras concepções de mundo. Essa é uma questão tanto poética quanto
política, tanto filosófica quanto antropológica: “(...)há que se ler o encanto
para se entender a ciência”.
Os escritores
observam que o Atlântico é uma gigantesca encruzilhada: “Por ela atravessaram
sabedorias de outras terras que vieram imantadas nos corpos, suportes de
memórias e de experiências múltiplas que lançadas na via do não retorno, da
desterritorialização e do despedaçamento cognitivo e identitário, reconstruíram-se
no próprio curso, no transe, reinventando a si e ao mundo”. Há em “Fogo no
Mato” um perspectivismo voltado para a cultura africana que parece dialogar com
o perspectivismo ameríndio desenvolvido pelo antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro.
Rufino e Simas partem do pressuposto de que o
colonialismo se construiu em detrimento daquilo que foi produzido como sendo o
seu outro, gerando uma descredibilidade de “inúmeras formas de existência e de
saber”. Trata-se de uma dominação que produziu a morte física, por meio do
extermínio, bem como simbólica, através do que os autores chamam de “desvio
existencial”.
Desviando desse
caminho colonialista, o livro aponta para a valorização de uma perspectiva da
ancestralidade, segundo a qual a morte só existe como sinônimo de esquecimento.
Aponta também para a perspectiva do encantamento, ao mergulhar no complexo
epistemológico das macumbas. Estamos, aqui, diante de uma “pedagogia da
encruza” e de uma “arte de cruzamento”. Aliás, a obra traz uma bela nota
introdutória na qual ressignifica o termo “macumbeiro”: “definição de caráter
brilhante e político, que subverte sentidos preconceituosos atribuídos de todos
os lados ao termo repudiado e admite as impurezas, contradições e rasuras como
fundantes de uma maneira encantada de se encarar e ler o mundo no alargamento
das gramáticas. O macumbeiro reconhece a plenitude da beleza, da sofisticação e
da alteridade entre as gentes”. A nota recupera a etimologia da palavra
macumbeiro, que vem provavelmente do quicongo “kumba”, que quer dizer feiticeiro.
Kumba também designaria os encantadores das palavras, ou seja, os poetas:
“Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos
e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor
maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto, em meio às
doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular de
morte”. Lindo, não?
O livro recupera
uma certa dimensão mágica da vida ao valorizar elementos que são
tradicionalmente tratados como escória, isso por uma questão histórica e
política. Refiro-me às culturas periféricas que por serem legadas pelo lado
mais fraco (e, no entanto, fortes sempre foram) acabaram por ser completamente
desvalorizadas. A cultura que imperou como dominante no Brasil foi a
europeia-branca-ocidental, ficando à margem a dos negros e índios. Mas como o
jogo ainda não terminou, não nos cabe falar em vencedores ou perdedores. Aos
poucos, os que foram vencidos até agora vão se afirmando e conquistando o
direito à voz que nunca lhes deveria ter sido tolhido.
A figura em
torno da qual gira a filosofia-poética no livro de Rufino e Simas é Exu, o
Senhor dos Caminhos, que é o Orixá que faz a ponte entre o céu e a terra, o
Orum e o Aiê. Sua figura é controversa, complexa e ambivalente, difícil de ser
compreendida, ainda mais do ponto de vista ocidental. Sua cultura se distribui
pelo livro como uma forma alternativa de pensamento. Só lendo o livro para
perceber sua riqueza. Reza a lenda que Exu é o Orixá que deve ser saudado antes
dos outros. É mote para macumba, no primeiro artigo do ano, para que tudo
comece bem. Feliz 2019 a todos! Saravá!
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 25 de janeiro de 2019.
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