sábado, 9 de fevereiro de 2019

Tempos sombrios: o que fazer quando reina a obscuridade? Apontamentos sobre “Levantes”, de Georges Didi-Huberman




“Tempos sombrios: o que fazer quando reina a obscuridade?”. A pergunta é feita por Georges Didi-Huberman, em uma passagem da obra “Levantes” (Edições Sesc, 2017): “Pode-se simplesmente esperar, dobrar-se, aceitar. Dizemos a nós mesmos que vai passar. Tentamos nos acostumar”. De tanto nos acostumarmos não esperamos mais nada. E isso equivale à morte do desejo. No entanto, Freud apontou em seu livro sobre o sonho para a indestrutibilidade disso que chamamos de desejo. É exatamente essa possibilidade que nos faria, em plena escuridão, “buscar uma luz apesar de tudo, por mais fraca que fosse”. Para Didi-Huberman, tempos sombrios são “tempos de chumbo”. Eles nos impedem de ver mais além, sufocando nosso desejo, bem como nossa capacidade de pensar. No entanto, a sobrevivência do desejo nos convida ao levante, ou seja, ao ato de levantar-se, rebelar-se, para assumir a vocação do insurgente em dizer “não!”, “eu não concordo!”, desestabilizando assim as potências de uma situação estabelecida, de um poder que tolhe liberdades e oprime.

Didi-Huberman

 “Levantes” apresenta uma vasta reflexão sobre o tema das revoltas sociais, das lutas em prol de melhores condições de vida, das conjurações contra um poder absoluto e opressor. O livro conta com a participação dos teóricos Antonio Negri, Judith Butler, Jacques Rancière, Marie-José Mondzain e Nicole Brenez, além de Didi-Huberman, e traz também o catálogo da exposição que dá nome à obra, e que aconteceu em países como Espanha, México, Argentina e Brasil, entre 2016 e 2018.

Aquilo que se levanta...
Imagem que integra o livro e a exposição
Dennis Adams, Patriot, Série Airborne, 2002.

Segundo Judith Butler, um levante acontece quando pessoas começam a se agrupar, a se deslocar, a se manifestar em público e agir para “desmantelar um regime ou o poder ao qual se sujeitam”. Trata-se, assim, de uma convicção compartilhada capaz de produzir um abalo sísmico no cotidiano social. Geralmente, o Estado vê o levante como uma manifestação caótica, desnecessária e sem fundamento, o que não raro leva o mesmo a usar da intervenção das forças policiais e/ou do exército como uma forma de coibir o levante. Muitos exemplos poderiam ser citados aqui, de “Maio de 68” à “Primavera Árabe”, passando pelo protesto das “Madres de Mayo”, em Buenos Aires, e pelo ataque aos professores da Rede Pública do Estado do Paraná, em Curitiba, no já famoso “29 de Abril”. Tantos outros poderiam ser citados: o “Blackout”, de Nova York, em 1977, as manifestações contra a ditadura no Brasil dos anos 60, as barricadas francesas do século XIX.  


29 de Abril, em Curitiba (PR), Ataque aos Professores

Para Antonio Negri, o levante é sempre uma aventura coletiva: “A ciência política atesta esse fato e exige que o soberano prepare instrumentos para a repressão de qualquer eventual rebelião”. Há nesse processo uma ação linguística, performativa, já que sem o dizer não há levante: “Um manifesto, um escrito, uma inscrição, uma mensagem, um símbolo, uma bandeira, um simples aperto de mão para perguntar ou aprovar; ou ainda o punho fechado: são palavras”, escreve Negri. Falando nisso, como não lembrar, por exemplo, do famoso gesto dos Panteras Negras, nos Estados Unidos: um levantar do braço, um cerrar do punho, ou seja, um levante por excelência.


Didi-Huberman escreve que o levante se faz, de início, com o exercício da imaginação, que “ergue montanhas”. E quando nos levantamos, diante de algo que nos oprime, opomos àqueles que querem tornar impossíveis nossos movimentos a “resistência de forças que são antes de tudo desejos e imaginações, ou seja, forças psíquicas de desencadeamento e de reabertura de possibilidades”. Nesse sentido, o levante é, acima de tudo, uma resistência capaz de fazer sobreviver nossa capacidade de imaginar e sonhar em tempos sombrios.
O livro apresenta também as imagens que integraram a referida exposição, como uma fotografia dos Parangolés, do brasileiro Hélio Oiticica, que revolucionaram o conceito de arte em uma época de grande repressão; desenhos de Goya representando rebeliões; ilustrações expressionistas de Käthe Kollwitz; fotos de Tina Modotti, na Revolução Mexicana; de Alberto Korda, em Cuba em tempos de Fidel Castro e Che Guevara; uma foto de Will Ronis, retratando uma operária discursando em uma fábrica em Paris (1938); as famosas fotografias de Gilles  Caron, registrando protestos nos anos 60; o conhecido cartaz de Hélio Oiticica “Seja Marginal Seja Herói” (1968); imagens de intervenções de Asger Jorn, Man Ray, Carl Einstein e John Heartfield; a fotografia de Manuel Álvarez Bravo, flagrando um operário assassinado em 1934; o registro da autoimolação de um monge budista em Saigon (1963), feito por Malcom Browne; imagens de jovens mortos na Manifestação da Frente de Libertação Grega, em Atenas, realizadas por Dmitri Kessel, em 1944.

Avós da Praça de Maio

El Quijote de la Farola - Alberto Korda - Havana, 1959

Parangolé, de Hélio Oiticica, no Museu Reina Sofia
Aquilo que se levanta

Cildo Meireles

Esses são apenas alguns exemplos de imagens que imortalizaram levantes dos mais variados ao longo da história. Destaca-se entre eles uma imagem da montagem do brasileiro Cildo Meireles dispondo cédulas de dinheiro carimbadas nos anos 70 com a frase: “Quem Matou Herzog?”, que mostra o quão política pode ser uma intervenção poética. São exemplos que apontam para a íntima relação entre o gesto de levantar-se e a possibilidade de manter viva, em tempos obscuros, a capacidade de desejar.

Caio Ricardo Bona Moreira

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