Primeiro capítulo de um livro sobre o amor que abandonei e que nunca escreverei
"Eu não amo mais você".
A frase pareceu brotar sem grande
esforço, mas nem mesmo eu imaginei o quanto fora ensaiada. Se o amor poderia
ser calculado, medido, interpretado, ou até controlado - como lera certa vez num
daqueles livros que desejam ensinar algo sobre os sentimentos humanos, ele
nunca esquecera da pretensiosa segurança com a qual o escritor afirmava serem
as mulheres assim e os homens assado, o que fazia das características simples
rótulos dispostos a classificarem uns e outros, tornando possivelmente a vida
mais fácil ou pelo menos passível de ser vivida - se o amor pudesse mesmo ser
medido e controlado, o seu final equivaleria fatalmente ao fim de uma etapa,
como quando terminara a faculdade e ingressara na carreira do magistério
acreditando ingenuamente que o ritual de formatura seria o ponto mágico no qual
uma fase de fato terminava e outra começava. Ele saberia. Mas desde cedo,
quando concluíra que nele as coisas do afeto tinham uma dimensão e uma força
superior, aquilo que chamavam de amor só poderia se traduzir como espanto ou um
fantasma incapaz de ser domesticado. Não se tratava de um trauma ou de um medo.
Começar a amar, ou deixá-lo simplesmente, não significava a ocorrência de uma
catástrofe. Como quase todos os seus amigos e amigas, ele comemorava esse
sentimento que lera no poema ser uma ferida que dói e não se sente. Como quase
todos os seus amigos e amigas, ele saudava a chegada de um amor com o bom
astral de uma estrela que sente fazer parte de uma constelação. E ainda, como
quase todos os seus amigos e amigas, lamentava o final de um amor quando ele
ocorria, como se deparasse com um incidente, apenas pensando "que
pena" e seguindo em frente. Mas desta vez fora diferente. Eu não amo mais
você. E era ele quem pronunciava a frase, sabendo da mentira embutida nessas
cinco palavras que fizera parecer brotar sem esforço, mas que ensaiara durante
dias, semanas, sem ela nem imaginar o artifício. E naquele momento ele nem
saberia explicar ou mesmo entender por que mentia.
O estado de amar, ele desconfiara
desde o começo, era feito de muitas mentiras. O que não significava que o amor
não tinha suas verdades, ou que mentir representava, teatralmente, uma falta de
amor. As pequenas mentiras de que era feito o amor, tão necessárias quanto a
sua verdade. Trata-se ao certo de encenações, pequenas mentiras capazes não só
de ajudar o amante a conviver com as suas verdades, como de iluminá-las. Na
curta temporada em que estudara teatro, e a isso soma-se o teatro do qual
fizera a própria vida, aprendera intuitivamente que a transparência era apenas
mais uma máscara a que se somavam-se outras. Máscaras sobre máscaras formando
um mosaico cubista que ao invés de nos representar parcialmente, muito pelo
contrário, revelavam em várias dimensões a complexidade daquilo que os
filósofos ou artistas chamavam de ser. A primeira mentira ele imaginou proferir
quando disse pela primeira vez "eu te amo", uma frase que ele sabia
ser para ela esperada com ansiedade e pressa. Para viver esse estado de amar,
mentira. Não que não o sentisse. Desconfiava apenas que na frase o som da soma
de seus fonemas denunciava uma certa afetação, quem sabe até uma certa
falsidade, que fazia a frase sair atropelada e estranha. Ela o abraçou comovida
ao ouvir pela primeira vez na hora do sexo, quando suas pernas quentes se
encontravam debaixo do cobertor. A mesma impressão ele teve quando falou que
não a amava mais. O mesmo tom de falsidade, a mesma afetação. A chegada e a
partida do amor se davam assim então? Que teatro era esse encenado em duas
frases que pareciam não traduzir exatamente o que sentia? Que linguagem era
essa a do amor, intraduzível? Estaria o amante fadado a falar sempre uma outra
língua enquanto a vida por trás da peça era verdadeiramente encenada?
Ia vivendo e escrevendo, agora
começando a pensar que as duas coisas talvez fossem a mesma. Se não fossem
exatamente a mesma, certamente apareciam no seu pensamento como dois lados de
uma mesma moeda. O dia era uma página escrita, pensava quando depois de
escrever a página a que se propôs para cada dia, lamentando os dias em que
deixou a página em branco. Poderia compensar no outro, com duas páginas, e
assim sucessivamente quando ficasse três ou quatro ou mais dias sem escrever.
Quando não escrevia a página era a vida que ia sendo imaginada e impressa no
livro de sua vida. Escrever era um afã. Mas só conseguia quando não estava
lendo e ler para ele era bem mais interessante que escrever. Era um prazer que
pagava mais barato. Para que mais uma história de amor? Tantas já houveram.
Algumas escritas. Depois de apagar a luz e sentir-se verdadeiramente sozinho
pensou que amor que se escreve não se vive. A vida, verdadeiramente vivida, não
se diz. Quantos trocaram a vida pela escrita, ou fizeram dela o seu meio
secreto e obcecado de viver? Como se escreve o amor? Quantas palavras são
necessárias para fazer dele uma obra? Que amor é esse que a escrita falseia em
palavras? Perguntar era sempre uma forma de fazer o sono chegar mais cedo. E o
único pensamento que pensou antes de desligar o botão do dia e começar a sonhar
foi que o intervalo entre umas palavras e outras, escritas em dias distantes,
fazia com que esquecesse o que havia escrito. E na experiência de escrever em
um dia sem ler antes o que escrevera em outro era uma forma de continuar.
Porque se fizesse de seu trabalho uma incansável revisão, não faria mais nada
além do que prender-se ao que já escreveu. Pensar demais no passado era uma
forma de impedir que seu trabalho continuasse, que outro amor fosse possível.
Dividido entre a expectativa de voltar a amar, ou seja, de voltar a viver, e
entre agarrar-se ao passado, produzindo assim a obra, dormiu. Demorou a sonhar.
Pelo menos é o que pensou quando acordou, pois o único sonho do qual se
lembrara estava passando quando o despertador soou, como uma gralha lhe dando
bom dia. Passava por uma estrada de chão e avistou uma casa de madeira.
Aproximou-se e encontrou a porta fechada. Tocou a campainha. Uma velha senhora
o recebeu com um sorriso sem dentes. Ele agradeceu a atenção, ouviu suas
palavras, virou as costas e saiu. Percebeu alguns detalhes no sono que não
conseguiu ou não quis escrever. Pouco se sabe sobre um sonho que não escreve,
pois ao poucos, ele se apaga da memória. Naquele dia, antes de anoitecer, já
não lembrava mais do que sonhara. Como era domingo, e não precisou trabalhar,
ficou arrumando papéis, tirando o pó de alguns livros velhos enquanto imaginava
os sentidos do sonho que se esqueceu. Lembrava apenas da velha sem dentes. O
que ela dissera? Pensou que um amor que não escreve se esquece. Por isso também
se escreve, para lembrar (escrevemos aquilo que impossibilitados de lembrar
somos inevitavelmente impelidos a nunca esquecer). Tirou o pó de um dos livros
de Platão, filósofo que lera na faculdade com algum interesse. O livro falava
curiosamente sobre o amor. Lembrou também que em uma de suas passagens as
personagens discutiam sobre a escrita. Platão nos recordava do mito da origem
da escrita. Dividida entre o argumento de dois deuses egípcios, a escritura ora
era tida como um remédio, já que detinha o poder da lembrar, ora como um
veneno, pois o homem que escreve perde o poder da mnemotécnica. Escrever era
uma forma ingrata de esquecer. Escrever o amor, pensou, era uma maneira de, ao
mesmo tempo, alimentar um fantasma e estrangulá-lo. Escrever o amor poderia ser
uma forma de revivê-lo, mas acima de tudo, e era o que naquele momento desejou,
uma forma de esquecê-lo. Lembrou que o vizinho, que possuía um ar de filósofo
contemporâneo, em uma reunião do condomínio, como que portando-se em um
congresso, exaltou as vantagens de uma ata. O texto escrito, como os contratos,
tinha o poder de fazer valer as palavras. O que não se escreve, o vento leva. Pensou
em escrever uma carta para ela, dizendo: "eu não amo mais você",
imaginando que assim suas palavras se revestiriam de um poder que sua fala
gaguejante desconhecia.
O texto parou aí. Depois de
alguns anos o encontrou entre pastas antigas no computador. Nem lembrava mais
dele. Pensou em continuá-lo. Retomar o projeto do livro, que chamaria
"caixa-preta de nosso amor". Ponderou. Estaria, assim, fadado a
acordar fantasmas. Abandonou o projeto. E como Rimbaud saiu andar por aí.
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