sábado, 2 de julho de 2016

Macunaíma: impressões


Imagem de abertura do filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, 
transcriação do livro de Mário

Poderíamos lembrar que o herói nasce no fundo do mato-virgem. Que era “preto retinto” e “filho da noite”. Que era uma “criança feita” e que “fazia coisas de sarapantar”. Que reclamava da preguiça e “brincava” com a mulher do irmão Jiguê. Que mijava quente na mãe e que se apaixonou pela Icamiaba Ci, Mãe do Mato, depois de violá-la. Que ganhou uma muiraquitã, perdida para um peruano, meio italiano, meio monstro Piaimã, que se chamava Venceslau Pietro Pietra. Que fugiu da Boiúna Capei e decidiu viajar para a cidade grande reconquistar o amuleto Muiraquitã, que usava como tembetá. Que depois de muitas peripécias, recupera o presente e volta para sua terra, onde seduzido por Uiara perde novamente o presente. Triste e machucado, depois de uma feitiçaria, vira a Constelação da Ursa Maior. O narrador ouviu a história de um papagaio. Que isso nos diria de Macunaíma? Ainda muito pouco. Melhor lê-lo pelas margens. Outras coisas elas nos dizem. Talvez assim seja possível devolver potência ao texto de Mário, colocando-o em rede, fazendo-o funcionar a partir de outros textos. Não será fortuito tendo em vista que o próprio princípio de confecção da obra é o de bricolagem.

Ilustração de Pedro Nava para uma das edições do livro

Mário de Andrade escreveu Macunaíma na chácara de Pio Lourenço, seu primo e amigo, perto de Araraquara, entre 16 e 23 de dezembro de 1926. No entanto, após o término da primeira versão, várias outras foram sendo desenvolvidas até julho de 1928, quando o livro foi lançado. O livro não se caracteriza como um romance, um poema, ou uma epopeia, mas como um coquetel, um “sacolejado de quanta coisa há por aí de elementos básicos da nossa psique”, como se referiu Alceu Amoroso Lima. O próprio Mário teve indecisões ao classificá-lo. Primeiramente o chamou de história e depois de rapsódia, aproximando-o de um gênero musical que se caracteriza como uma justaposição de melodias populares e de temas conhecidos. Mesmo tendo apenas um movimento, a rapsódia pode integrar variações de tema, sem necessidade de seguir uma estrutura pré-definida. Basta lembrar de Sergei Rachmaninoff que, inspirado em Paganini, escreveu uma peça intitulada “Rapsódia sobre um tema de Paganini”. 

Mário de Andrade escrevendo Macunaíma, desenho de Lasar Segall

Cavalcanti Proença, autor do importante estudo “Roteiro de Macunaíma”, que se constituiu como uma das mais significativas análises da obra, observou que pelo aspecto da figura de gesta Macunaíma se aproxima da epopeia medieval, tendo em comum com aqueles heróis a sobre-humanidade e o maravilhoso. Por isso pode realizar aquelas fugas espetaculares e assombrosas em que da capital de São Paulo foge para a Ponta do Calabouço, no Rio, e logo se encontra em Guajará-Mirim, nas fronteiras do Mato Grosso e Amazonas. A quebra da linearidade temporal e espacial, um dos traços bem sucedidos do livro, é apenas um dos elementos que fazem dele uma das mais importantes experimentações não apenas do primeiro modernismo, mas de toda a literatura brasileira. Figuras de tempos históricos diferentes aparecem no mesmo enredo como João Ramalho, colono português. Hércules Florence, pintor naturalista do século XIX. Tia Ciata, mãe de santo do início do século XX, em cuja casa nasceu o samba carioca. Entre outras. A essa profanação narrativa, outros fatores poderiam ser acrescentados, como o trabalho linguístico, tão caro a Mário de Andrade, a pesquisa folclórica, não só do Brasil, mas de toda a América do Sul, bem como a discussão sobre o caráter nacional. Segundo Tele Ancona Lopes, em toda a trajetória da busca de definição do gênero, recusando-se a admitir a designação romance no sentido literário culto e recorrendo a classificações da literatura popular, percebemos um ponto de interrogação. É a consciência que Mario manifesta de estar transgredindo os cânones da narrativa culta de seu tempo, revitalizando a experimentação na prosa. Assim, está a altura da prosa do primeiro modernismo, chegando mesmo a superá-la.

Cena do filme de Joaquim Pedro de Andrade

É fato conhecido que, para a confecção de Macunaíma, Mário partiu da obra de Koch-Grünberg, “Do Roraima ao Orenoco”. Koch-Grünberg era um alemão que entre 1903 e 1905, percorreu, por incumbência do Museu Etnológico de Berlim, zonas fronteiriças do noroeste brasileiro e, entre 1911 e 1913, terras brasileiras e venezuelanas, entre o Roraima e o médio Orenoco. Um dos mitos indígenas da Venezuela colhido pelo etnólogo refere-se a Macunaíma. Na versão taulipang e arecuná, o herói já aparece como “malandro”. Mas Koch-Grünberg ressalta seu caráter ambivalente, pois Macunaíma era dotado de poderes de criação e transformação – os irmãos dependiam dele para o sustento – ao mesmo tempo, todavia, malicioso e pérfido. Daí a origem do nome MAKU (mau), IMA, grande, o “grande mau”. Os poderes criativos de Macunaíma levaram os missionários ingleses a denominar o Deus cristão nas traduções bíblicas para a língua indígena como Macunaíma, o que o etnólogo critica, pois anula as contradições inerentes ao personagem.   

Macunaíma, de Aldemir Martins

Não podemos desconsiderar que Macunaíma encarna uma variedade de personagens, ora boas, ora más. É o caso de Exu, interpretado pelo catolicismo como o diabo. No entanto, esse orixá, como os demais, desconstrói o binômio ocidental bem-mal, realizando boas tarefas para quem o agrada com as oferendas desejadas, ou punindo aqueles que não cumprem seus desejos. Macunaíma participa de uma galeria de heróis populares que não têm preconceitos, nem aceitam a moral de uma época, concentrando em si vícios e virtudes que nunca se encontram num mesmo indivíduo. Encarna assim um malandro descendente de Leonardo, personagem de Memórias de um Sargento de Milícias, como observou Antonio Candido, em Dialética da Malandragem, ensaio em que se concentra numa leitura do romance de Manuel Antonio de Almeida. Leonardo, o primeiro malandro da literatura brasileira, seria uma espécie de ancestral de Macunaíma.  Relativizando as oposições “ordem” e “desordem”, através da função desmistificadora da sátira, o herói malandro foge às esferas sancionadas pela norma burguesa, mergulhando na irreverência, por vezes brutal,  mas sempre liberadora da comicidade popularesca. No entanto, Macunaíma não é nem imoral nem amoral. Mário não concordava com a imoralidade, porém Macunaíma teria de concordar com o brasileiro. Por isso, os olhares que julgaram a obra como pornográfica não se fundamentam como práticas críticas, pois desde o mito venezuelano, a personagem já possuía fortes impulsos sexuais.  Aliás, é corrente na literatura dos cronistas conceituar a luxúria como traço nacional, tema que teve sistematização das mais brilhantes no “Retrato do Brasil”, do Paulo Prado. Para Cavalcanti Proença são muito comparáveis os dois livros, apenas aquilo que é análise e dissertação no historiador, se transforma em ação no herói de nossa gente.


Gostaria de fazer referência aos dois prefácios que Mário de Andrade escreveu para o livro e que não foram publicados. O primeiro por achá-lo insuficiente e o segundo por achá-lo suficiente demais. O primeiro data de 1927 e foi escrito logo após o término da primeira versão. O texto é duro, ainda muito impregnado das intenções polêmicas que inspiraram o Macunaíma, cheio de desilusão. Nele, Mário observa que o que lhe interessou no livro foi a tentativa de descobrir a entidade nacional dos brasileiros. Depois de muito estudo, percebeu que o brasileiro não tem caráter. Com a palavra caráter não determinava necessariamente uma realidade moral, mas a entidade psíquica permanente que se manifesta nos costumes, na ação exterior do brasileiro. O brasileiro não teria caráter porque não possuiria nem civilização própria nem consciência nacional. Mário decepcionava-se ao ver que o brasileiro não era o que queria que fosse. Dessa maneira o primeiro prefácio indica uma leitura pessimista da nação que aparece, por exemplo, em livros como Retrato do Brasil, de Paulo Prado, figura de importância para os modernistas que é citado no prefácio. No segundo prefácio, escrito em janeiro de 1927, Mário inverte a leitura, percebendo no livro a ausência de compromissos sociológicos circunscritos diretamente ao brasileiro, mas entendendo-o como sintoma de cultura nacional. Macunaíma seria não necessariamente brasileiro, mas estaria inserido no universo das Américas – a lenda extraída de Koch-Grünberg é de origem Venezuelana.

Mário de Andrade

A consciência do herói transcende a ideia de nação, situando-se numa perspectiva pós-nacionalista, para usar um termo de Décio Pignatari. É a consciência de um latino-americano a do personagem. O próprio livro nos indica essa perspectiva. Antes de ir para a cidade grande, recuperar a Muiraquitã, que lhe fora ofertada por Ci, mãe do mato, Macunaíma passa no Rio Negro para deixar sua consciência. Quando volta para a sua terra, a personagem não mais encontra a consciência. Então, o herói pega a consciência de um hispano-americano, “botou na cabeça e se deu bem da mesma forma”. A busca macunaímica por um caráter nacional e uma definição espiritual e civilizatória confunde-se, assim, com a dos próprios países da América Latina.
Na linguagem do livro, Mário valoriza o vocabulário regional de vários pontos do Brasil. Se apropria e subverte frases feitas e provérbios. Assim como José de Alencar, Mário lutou por uma língua nacional. Não é à toda que tenha considerado o autor romântico como uma espécie de irmão de luta. Numa das primeiras versões de Macunaíma, a dedicatória era dirigida não apenas a Paulo Prado, mas também a Alencar. Mário decidiu subtrair o nome de Alencar por ficar receoso de que o livro fosse lido como uma obra indianista.  Os dois movimentos literários de fundo nacionalista, Romantismo e Modernismo, tiveram como livros epônimos uma história indianista. Quanto ao herói sem caráter Mário não reconhece indianismo em Macunaíma, pelo menos indianismo com letra maiúscula.


Porém, há coisa de mais importância, que é o sentido de manifesto linguístico, de plataforma para a criação de uma língua nacional, um grito contra o complexo colonial na literatura brasileira. Com Alencar, em verdade, surge com propriedade o romance brasileiro, o reinol deixa de ser o modelo.  Alencar foi para Mário o “patrono da língua brasileira”. Para a época ele teve a mesma ousadia do escritor paulista. Nem Gonçalves Dias, nem Gonçalves de Magalhães possuíam a inteireza brasílica do cearense. 
Uma leitura mais atenta do livro nos mostra que ele foi construído a partir da combinação de uma infinidade de textos preexistentes, elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita. Nesse sentido, o que Mário desenvolve é uma espécie de bricolagem, procedimento característico no modernismo brasileiro. Mário de Andrade, como um bricoleur, procurou sua matéria-prima entre os destroços de um velho sistema. A partir da desfuncionalização dos objetos e da sua refuncionalização (ready-made à maneira de Duchamp), o escritor monta uma rede de singularidades, adotando o princípio de montagem como característico da obra, o que Raúl Antelo chamou de apropriação e originalidade, princípios fundantes do livro. Mário chegou a confessar em carta que o único capítulo realmente seu no livro era Carta para as Icamiabas. Todo o resto, de uma forma ou outra, seria uma apropriação.
Segundo Gilda de Melo e Sousa, no estudo “O Tupi e o alaúde”, uma das grandes interpretações do livro, “a originalidade estrutural de Macunaíma deriva do livro não se basear na mimesis, isto é, na dependência constante que a arte estabelece entre o mundo objetivo e a ficção, mas em ligar-se quase sempre a outros mundos imaginários, a sistemas fechados de sinais, já regidos por uma significação autônoma”. A tese desenvolvida por Gilda de Mello e Sousa no livro é a de que foi no processo da música popular que Mário encontrou seu modelo compositivo. O escritor, ao invés de utilizar princípios literários correntes, transpôs duas formas básicas da música ocidental: a que se baseia no princípio rapsódico da suíte e a que se baseia no princípio da variação. O primeiro procedimento seria responsável por reunir vários temas comuns ao universo erudito e popular, o segundo, * responsável por iniciar o momento propriamente criador, operaria uma transfiguração dos temas já conhecidos. Em outras palavras: apropriação e originalidade. A pesquisadora chama a atenção para dialética que move o livro, materializada no conflito entre a tradição européia e as manifestações locais, populares, sejam elas indígenas ou africanas. Tensão que aparece presentificada no próprio título do livro do ensaio: “O tupi e o alaúde”.
Outro estudo significativo sobre o livro é “Morfologia de Macunaíma, de Haroldo de Campos, apresentado inicialmente na USP, em 1972, como tese de doutoramento, e publicado posteriormente em livro. No estudo, o concretista propõe uma análise estrutural do livro – estávamos no auge do estruturalismo no Brasil – com base nas funções desenvolvidas por Vladimir Propp, no livro “Morfologia do Conto Fantástico”, lançado, curiosamente, no mesmo ano em que Mário publicou Macunaíma, 1928. Haroldo quis mostrar que o livro, longe de ser uma obra caótica e malograda, como sugeriu Wilson Marins, em seu estudo sobre o Modernismo, é uma obra meticulosamente estruturada de acordo com princípios abstraídos da lógica fabular, explicáveis à luz da tipologia funcional proppiana. Pode-se encontrar no livro as funções narrativas que são recorrentes no universo fabular. Por exemplo: O herói nasce, perde um objeto de valor simbólico, parte para recuperar o objeto perdido, encontra um antagonista portador do objeto, vence-o, recupera a peça e volta para sua querência.


Para finalizar caberia observar que Mário era um apaixonado pelo Brasil, ou melhor, pelo povo e pela cultura brasileira. Nunca saiu do Brasil (a não ser em pequenas incursões nos limites do Peru e da Bolívia), receoso de perder nos contatos com a Europa ou a América, algo de sua personalidade tão característica. Mário versava com eficiência a música, o folclore, a poesia, e prosa entre outras coisas mais. No fundo, era ufanista se seu modo, um ufanista desiludido, que chegou a confessar em carta dirigida a Álvaro Lins que sentia tristeza ao reler Macunaíma. Na obra, coexistem ou alternam-se, o otimismo e o pessimismo. Para Macunaíma, nem a cidade representa uma saída para a selva, nem a selva para a cidade. A personagem volta civilizada, mas triste. Vítima de uma atopia fundante, sem lugar próprio, nem na metrópole, nem no Uraricoera, o herói padece de ambos e vai para o céu, como se concordasse com uma das frases mais emblemáticas de Raízes do Brasil, de Sério Buarque de Holanda: “Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”.   

Caio Ricardo Bona Moreira

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