Valêncio Xavier, em
uma entrevista concedida a Joca Reiners Terron, ao avaliar a narrativa de O Mez da Grippe, lembrou do fascínio
nele exercido pelo romance Conversa na
Sicília, de Elio Vittorini, cujas fotografias de Luigi Crocenzi lhe
ensinaram o papel que a imagem tem que ter no texto: “ser ao mesmo tempo uma
coisa alheia, mas inteirada” (1999, p. 53). Entender a imagem como “coisa
alheia, mas inteirada” talvez nos ajude a ler a ficção daquele que hoje é
chamado de o Frankenstein de Curitiba e que poderíamos chamar também de trapeiro da
memória, numa franca alusão à observação de Walter Benjamin lendo Charles
Baudelaire. Dentre as definições para o vocábulo “alheio”, está
aquilo que é de outrem, que é estrangeiro, estranho, isento, livre, distante,
indiferente. Dessa maneira, estar alheio pressupõe um afastamento daquilo que é
próprio do ser ao reivindicar uma enlevação para o que deve ser absorto ou
extasiado. Por outro lado, essa coisa alheia a que se refere o autor é inteirada,
ou seja, tornada ciente, informada, constituída num todo, no absoluto. O
absoluto, aqui, é pensado em um sentido monadológico, tal como aparece na
imagem de Atlas segurando o mundo nas costas e não como sinônimo do poder
soberano, do monarca, do imperioso, daquilo que não padece de contradição.
Assim, está mais para o jogo do que para a lei, fazendo lembrar das palavras de
María Negroni, em seu Pequeño Mundo
Ilustrado que, ao propor uma leitura de “A moralidade do brinquedo”, de
Baudelaire, retoma a figura do jogo como epifania do absoluto: “Jugar:
amurallarse, componer un cuento fantástico, buscar ese objeto único e imposible
que podría permitir no solo saber todo,
sino experimentarlo todo a la vez” (2011,
p. 77).
Página de Elio Vittorini
No caso das imagens
de Valêncio Xavier, parece que estamos mais próximos do impróprio que é
apropriado do que do “alheio” como sinônimo do ignorante, do não sabedor. Inteirar
o alheio, fazendo do ready-made seu
lance de dado, talvez seja um dos traços mais sintomáticos do jogo por ele
proposto. Talvez pudéssemos pensá-lo, aqui, como um puzzle.
Georges Perec, no preâmbulo
de “A vida modo de usar”, observa que a arte do puzzle não se caracteriza como uma mera soma de elementos que
teríamos inicialmente de isolar e analisar, mas um conjunto, uma forma, uma
estrutura. Nesse sentido, “o elemento não preexiste ao conjunto, não é nem mais
imediato nem mais antigo; não são os elementos que determinam o conjunto, mas o
conjunto que determina os elementos” (PEREC, 2009, p. 11). A colocação, ao
sustentar que o conhecimento de um conjunto não é passível de ser deduzido do
conhecimento separado das partes que o habitam, torna explícito o procedimento
de confecção do livro, chamando a atenção para o fato de que a única coisa que
importa é a possibilidade de “relacionar uma peça a outras peças”. Os sentidos
depreendidos dessa configuração armada pelo jogo demonstram que a imagem não é
nem nada nem total, como sugeriu Didi-Huberman, em Imágenes pese a todo (2004), ao mesmo tempo que fazem repercutir
Aby Warburg, em seu projeto Atlas
Mnemosyne, cujo procedimento de confecção está pautado pela montagem como
princípio constitutivo do texto como tecido, como teia, como rede. Não se
trata, necessariamente, de refutar a singularidade do objeto, em detrimento do
conjunto, mas de perceber a montagem como método e forma de conhecimento. Não é
à toa que Didi-Huberman tenha comparado o projeto de Warburg a um puzzle:
Mnemosyne es un objeto intempestivo en la medida en que se
atreve, en la época del positivismo y del historicismo triunfante, a funcionar
como un puzzle o un juego de tarots desproporcionados (configuraciones sin
límites, número de cartas a jugar infinitamente variable) (2009, p. 438).
A diferença é que na
arte do puzzle comum, cada peça tem o
seu lugar, sendo impossível armar um mosaico com uma outra disposição que não
aquela prevista pelo corte da máquina, diferente de um Atlas que, por
colecionar o mundo, permite também trocar de lugar seus objetos, remanejar
posições, observar os intervalos, dando a ele novos sentidos e aos seus objetos
outra potência. É o caso, por exemplo, das imagens do já citado Atlas Mnemosyne, que tiveram sua posição
por Warburg modificada ao longo dos anos, dependendo do interesse do historiador,
o que, por sua vez, já demonstra o jogo que subjaz na combinatória incessante
das peças em questão.
Página de O Mez da Grippe
É também como um
atlas que Valêncio Xavier parece ter pensado sua ficção. O escritor observou
que o O Mez da Grippe deveria ser
lido como um jornal, em que “a pessoa olha a manchete, pula para a página de
esportes, se detém na foto de uma atriz e já vai para o crime do dia, e assim
por diante” (1999, p. 52-53), chegando a confessar ter descoberto que em seus
livros cada página poderia ser lida isoladamente, como se ela fosse um texto
completo. Essa espécie de mônada seria, assim, estranha a um quebra-cabeça
convencional.
Página de O Mez da Grippe
Em O Mez da Grippe e outros livros de
Valêncio, o puzzle entra em delírio,
já que a ficção, por não delimitar-se a um corte de guilhotina previamente
produzido, exige uma leitura mais complexa, ao passo que nos permite imaginar a
conexão com outras peças que não apenas àquelas apresentadas no livro, como
veremos. Dessa maneira, os desafios impostos pelo que gostaria de chamar aqui
de um “puzzle incomum” se por um lado apresentam-se como mistérios-enigmas e
não meramente como segredos – aproximando-se, assim, das imagens de W.G. Sebald
-, por outro lado, e também por isso, reivindicam uma rede de imagens que lhe
devolva força, fazendo-a funcionar a partir da fricção-ficção entre outros
corpos. Estamos diante de imagens que, sabendo-se imagens, contaminam-se ao
entrar em contato com a rede, aquela máquina que, ao produzir o absoluto,
consegue carregar o mundo nas costas. A referência, aqui, é à apresentação
escrita por Didi-Huberman da exposição “Atlas – Como levar o mundo nas costas”,
ocorrida no Museu Reina Sofia, na Espanha, entre novembro de 2010 e março de
2011. Nela, o historiador da arte relembra que o titã chamado Atlas, junto com
seu irmão Prometeu, quis enfrentar os deuses do Olimpo para tomar o poder deles
e dá-lo aos homens. Ambos foram castigados. Prometeu, condenado a ter seu
fígado arrancado por um abutre e Atlas, obrigado a sustentar com seus ombros o
peso da abóboda celeste inteira, fadado, assim, a conviver com um paradoxo: o
prazer de um conhecimento infranqueável e uma sabedoria desesperante. Didi-Huberman
(2011) lembra que o nome inspirou uma forma visual de conhecimento, ou seja, um
conjunto de mapas geográficos reunidos em um volume, convertendo-se em um
gênero científico a partir do século XVIII e desenvolvendo-se consideravelmente
no século XIX e XX.
Página de O Mez da Grippe
No caso de Warburg, o
modelo do Atlas científico tradicional dá lugar a uma espécie de constelação,
que nos permite desenvolver relações impensadas e redes inimaginadas: “Fazer um
atlas é reconfigurar o espaço, redistribuí-lo, desorientá-lo em suma: deslocá-lo
ali onde pensávamos que era contínuo, reuni-lo ali onde supúnhamos que houvesse
fronteiras” (DIDI-HUBERMAN). Mesmo tendo um projeto bastante diferente do de
Valêncio, não podemos nos furtar de perceber que em ambos os casos (Valêncio-Warburg)
estamos diante de uma espécie de uma máquina de produzir imagens, de um
aparelho de tempos heterogêneos produzidos a partir do alheio e do absoluto.
Atlas
Seguindo a colocação
de que o trabalho imagético de Valêncio está pautado por uma dialética, a do
alheio e do absoluto, talvez
fosse possível imaginar não apenas os gestos que oscilam entre a repetição e a
diferença, entre a memória e o esquecimento, depreendidas de seus jogos de
armar esse “puzzle incomum” -
ou talvez um baralho -, mas também aqueles que inserem o livro numa teia cujos
fios parecem ligá-lo a uma tradição imagética que percorre a arte produzida no
Paraná desde o simbolismo, passando pelo trabalho de Poty, fiel parceiro criativo
de Valêncio, e por revistas literárias contemporâneas editadas no Estado.
Susana Scramim, ao
analisar o procedimento de montagem de tempos heterogêneos nos bestiários de
Wilson Bueno, já havia chamado a atenção para o fato da visualidade do trabalho
do autor poder ser lida também à luz de sua convivência com a forte prática do
trato com as imagens da literatura produzida no Paraná, uma prática que vai da “intensa
atividade dos poetas simbolistas até as interessantes revistas ali editadas,
nas quais a visualidade contribui e constitui as próprias revistas” (2007, p.
136). É o caso, por exemplo, da revista simbolista Pallium, da modernista Joaquim,
das contemporâneas Medusa, Coyote, Oroboro, entre outras. Tavez fosse possível inserir Valêncio nessa
comunidade a que se refere Scramim. Para pensar nessa relação pautada pela
imagem dialética que brota do contato e do contágio do escritor-cineasta com
uma tradição das imagens - imagens também contagiam e contaminam - recorro a
uma figura que está ligada não só à temática da ficção do autor de O Mez da Grippe e outros artistas do
Paraná, como também à própria noção de escritura. Falo da morte, falo da
caveira.
Um comentário:
Opa, com licença, estava vasculhando a internet, caçando não sei o quê do Valêncio Xavier, e acabei esbarrando em teu blog. Aliás, bonito texto. Mas o que me trouxe aos comentários (defeito meu) foi uma destas citações de Roland Barthes que você fixou na lateral do blog; essa que começa com "O poder, seja qual for, por ser violência, nunca olha;". Você pode me dizer a referência?
Obrigado desde já.
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