A poesia é também coisa de índio e, no entanto, muito pouco
se fala das manifestações poéticas praticadas pelas mais variadas tribos
indígenas que povoam o Brasil. Aprende-se na escola que o português, logo aqui
chegado, em 1500, registrou na “Carta do Achamento” suas primeiras impressões
sobre o nativo brasileiro, estranho aos olhos do europeu pelo seu modo de vida
e, principalmente, por não sentir vergonha alguma de suas vergonhas. Aprende-se
também que, desde então, o índio tornou-se personagem dos mais variados e
fantasiosos textos literários, elevando-se no século XVIII a símbolo de luta da
elite mineira contra o colonialismo europeu e à herói nacional no contexto de
Independência no século XIX. Em muitas obras poéticas deu-se voz ao índio, no
entanto, essa voz, trazendo na maior parte das vezes um sotaque europeu, pouco
traduziu a imensa riqueza e complexidade de sua cultura. Ao invés de darmos voz
ao índio – algo que ele inevitavelmente possui – penso que deveríamos ouvi-lo.
Tenho me interessado pelas Poéticas Ameríndias, que se
caracterizam como um conjunto de textos artísticos que brotam da oralidade
indígena. Geralmente, são produções culturais relacionadas a cosmogonias, ritos
sagrados e festividades das tribos. Nesse contexto, a arte não está
desvinculada do universo religioso, pois para os índios não há uma separação
entre arte e vida, ou entre arte, religião e vida. Antonio Risério, no livro
“Textos e Tribos”, problematizará a noção de Poética indígena, pois para ele os
conceitos de poesia e literatura são ocidentais e não traduzem a experiência
cultural da palavra operada pelos índios. Ele opta pelo conceito de “textualidades
extra-ocidentais”. Para Risério, a marginalização dos textos indígenas e
negroafricanos, no Brasil, é um reflexo do “estatuto subordinado dessas
culturas no espaço mental brasileiro – reflexo, por sua vez, do lugar ocupado
por essa gente, e pela maioria dos seus descendentes mestiços, na estrutura da
sociedade nacional”.
Prefiro pensar que os índios, desde muito antes da invasão
branca, já eram também poetas. Isso porque em muitas culturas ameríndias o
trabalho artístico com a palavra assemelha-se de forma impressionante à
atividade que caracterizamos como poesia. Os mbyá-guaranis, situados entre o
Paraguai, Uruguai, Argentina e sul do Brasil, por exemplo, chamam de “ñe´eporã”
o conjunto de belas palavras - ou palavras adornadas - usadas em seus cantos
religiosos. Em tais cantos podemos encontrar expressões metafóricas,
polifônicas, léxicos diferenciados, ou seja, elementos encontrados com
frequência em textos poéticos da nossa cultura. Usam, por exemplo, a expressão
“pequena flor do arco” para falar de uma flecha, ou “esqueleto da bruma” para
falar de um cachimbo (os exemplos são dados por Pierre Clastres, em seu livro
“A Fala Sagrada”, que compila mitos e cantos sagrados dos índios guaranis). As “ñe´eporã”
teriam como objetivo, antes de comunicar algo ou descrever, voltar o seu olhar
para a beleza da própria linguagem, intenção maior da poesia também para nós. E
essa experiência para os mbyá-guaranis é profundamente sagrada. Exatamente por
isso, na maior parte das vezes, o acesso a tais textualidades é vedado ao homem
branco.
Nos anos 50, o antropólogo León Cadogan, depois de salvar um
índio de uma condenação injusta, recebeu a permissão dos mbyá-guaranis para
ouvir e registrar os cantos chamados “Ayvu rapyta”, que descrevem a origem de
todas as coisas depois do surgimento do deus supremo e das palavras. No mito,
Ñamandu desdobra-se de si mesmo como uma flor e é alimentado por um beija-flor
com alimentos sagrados. Brota, então, a fonte da fala, que para os guaranis é a
origem de tudo. E o poder que esse grupo dá à palavra é simplesmente comovente.
Alma e palavra são elementos indissociáveis, traduzidos na expressão “ñe´eng”
(Palavra-alma). Por meio da palavra, a divindade faz fecundar o ser, portanto a
procriação para eles, como sugeriu Bartolomeu Melià, é um ato poético-religioso
e não erótico-sexual. O nome de uma pessoa, por exemplo, é a própria pessoa e
muitas vezes um xamã usará isso a favor de um doente, trocando um nome por
outro para espantar a morte. Aliás, os xamãs, transmissores de vozes divinas,
pontes para o além, são verdadeiros poetas que usam as palavras e as músicas
para curar. Para os mbyá a cultura branca não sabe usar de forma adequada a
linguagem. Para eles, não levamos a sério as palavras e seus poderes. É por
isso que quando um índio nos dá sua palavra está nos dando a sua alma. Quantas
coisas temos a aprender com eles.
Alguns poetas e tradutores contemporâneos têm se interessado
pelas Poéticas Ameríndias, traduzindo cantos indígenas e resgatando, assim,
parte de uma sabedoria que ainda está para ser explorada. Falo do trabalho de
Josely Vianna Baptista, que traduziu criativamente os cantos do “Ayvu rapyta”
no livro “Roça Barroca”. Falo de Alberto Mussa que recriou mitos fundacionais
da cultura Tupinambá, em “Meu destino é ser onça”. Falo do poeta português
Herberto Helder, que traduziu cantos caxinauás. Falo do portunhol selvagem de
Douglas Diegues. Falo de Eduardo Viveiros de Castro, seu perspectivismo, e seu
estudo dos cantos xamânicos arawetés. Escritores indígenas têm também se
destacado na literatura brasileira como Kaká Werá Jecupé e Daniel Munduruku.
Outros têm lutado bravamente por direitos e causas socioambientais, como Davi
Kopenawa. São promotores de sabedorias milenares. Que possamos ouvir suas
palavras adornadas a nos ensinar que a poesia não pertence apenas a nossa
cultura, mas que tem em outras sua morada. Conhecer as palavras sagradas e
poéticas dos índios talvez seja um passo importante na luta contra o seu
extermínio. O nome deste jornal nunca soou tão poético e profundo para mim
quanto hoje.
Publicado no jornal Caiçara, em União da Vitória,
03/11/2017. As imagens são de Eduardo
Viveiros de Castro. retratam os Arawetés.
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