segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A arquitetura literária de Gonçalo M. Tavares: por uma poética do movimento




Poderíamos pensar a obra de Gonçalo M. Tavares como uma espécie de estrutura desmontável que convida o leitor, em cada lance de leitura, a armar novas disposições do olhar, imaginando múltiplas possibilidades de sentido para seus textos, como um puzzle imaginário que outra vez montado oferece àquele que o mira um novo desenho. Diante desse quebra-cabeça, o leitor poderá facilmente concluir que sua literatura se constrói a partir de uma arquitetura do movimento. Essa obra pensada como projeto para uma poética do movimento aparece com força na publicação “Breves Notas”, lançada em 2010 pela Editora da UFSC e pela Editora da Casa. Trata-se de uma bela caixa composta por três livros: “Breves Notas Sobre Ciência”, “Breves Notas Sobre o Medo”, e “Breves Notas Sobre as Ligações”.


A ideia do escritor angolano-português Gonçalo M. Tavares nessas “Breves Notas”, segundo Júlia Studart, é tomar a literatura como um “corpo que dança livre”, ou seja, como um “corpo-bailarino, aquilo que sai do comum para provocar desequilíbrio”. Trata-se, como o título sugere, de breves notas que vão se acumulando pelos livros e cujo conjunto vai desenhando, na sua vocação para a poesia e para o ensaio, uma espécie de enciclopédia poética e filosófica. Aliás, a ideia de enciclopédia parece percorrer a obra do autor, cujo procedimento, quase sempre, é o de agrupar suas publicações em séries oriundas dos diálogos entre seus livros. É o caso não só da coleção “Breves Notas”, mas também de outras séries como a de “O Bairro”, esta composta por aproximadamente dez obras, cada uma interessada em dialogar com um autor específico, como Eliot, Brecht, Calvino, entre outros. 


A coleção das “Breves Notas” faz lembrar do “Livro do desassossego”, de Fernando Pessoa, publicado com o seu semi-heterônimo Bernardo Soares. Ambas as obras parecem ter brotado do devaneio e de um filosofar inquieto capaz de traduzir a experiência da vida moderna em um trabalho intelectual que se apropria do ensaio como forma literária e da montagem como procedimento. 
Gonçalo M. Tavares abre suas “Breves Notas sobre a Ciência” com o seguinte fragmento: “Claro que o Perigo é a origem dos métodos científicos mais eficazes. Se o Homem fosse imortal ainda não teria inventado a roda (poderias dizer)”. Em outro momento ele escreve: “Debruçai-vos sobre o futuro: no limite só os pés permanecem sobre o solo, a cabeça foge para a frente. Investigar sem desequilíbrio é avançar em cima de lama: alguém se afunda”. O elogio do perigo e do desequilíbrio revela uma assimilação da liberdade que pode ser encontrada, por exemplo, na filosofia de Nietzsche, traduzida pelo desejo de um espírito livre que dança na corda bamba à beira do abismo.


Para Gonçalo M. Tavares, escrever parece ser uma atividade que exige uma coragem do pensamento em burlar paradigmas, pensando, tal qual Walter Benjamin, no método como desvio: “Método como aquilo que se faz depois de se ter tropeçado; ou: o movimento não planeado, espontâneo; para não cair depois de um desequilíbrio. (...) O escritor está a fazer o que ainda não foi feito. O leitor pode pousar o livro, a frase não foge; o escritor odeia o acto de pousar, porque pousar é não fazer, e não fazer o que ainda não foi feito é um erro. Não fazer é o maior pecado”. É talvez por isso que em outra nota ele observa que nada é tão perigoso como “teres cumprido todos os teus afazeres do dia e ainda ser manhã, teres cumprido todos os teus deveres na vida e ainda não estares morto”. Nesse sentido, o olhar do autor, voltado para uma poética do movimento, não para no ponto de chegada, pelo contrário, se delicia com o passeio, com o caminho, como todo bom ensaísta faz. No fragmento em que anota sobre seu aniversário de trinta e cinco anos, o autor conclui que depois da infância, ao invés de esgotar seus desejos caçando todos os gêneros de felicidade – o que inevitavelmente deixará uma grande sensação de vazio -, prefere permanecer perdido na floresta. É uma forma de não esgotar seu desejo, afinal de contas, é sempre o desejo que nos move para a vida. A permanente existência dele prova que continuamos vivos.


Em sua teoria poética sobre a ciência, Gonçalo Tavares parece apontar para o fato de que onde a ciência falha a poesia encanta, ou mesmo para a ideia de que a ciência é o nome de uma daquelas ficções que inventamos para tornar a nossa vida mais feliz. Nesse jogo, o olhar distraído, ou seja poético, é o olhar que capta o mais importante: “Só quem não se encontra apaixonado por A pode ver que, ao lado de A, se encontra B. E B pode ser mais belo, mais verdadeiro; pode fazer-te mais feliz”. Nesse sentido, a poesia é entendida como uma forma de ciência, ou melhor, de uma ciência individual. E pensar pode ser uma forma de felicidade: “Só quem é alegre arrisca. A tristeza é anticientífica”. Poderíamos arriscar dizer que, em suas Notas, Tavares traça uma ciência poética ou mesmo uma poesia científica, embaralhando os sentidos tradicionais dessa mistura.


Se pensamos no conjunto das Notas como uma espécie de enciclopédia é também porque sua leitura ideal se dará apenas na releitura, ou melhor, na consulta permanente de seus verbetes. No folhear de suas páginas poderemos nos deparar com uma pérola como esta: “As coisas estão repletas de nossos sentimentos. Olhar para uma coisa é tirar desta as sensações que nos pertencem e que ela havia guardado (raptado?) durante anos ou minutos. Olhar para as coisas é recuperar nelas o que era nosso”.

Publicado originalmente em 01 de setembro de 2018, no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR).

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