Poderíamos
pensar a obra de Gonçalo M. Tavares como uma espécie de estrutura desmontável
que convida o leitor, em cada lance de leitura, a armar novas disposições do
olhar, imaginando múltiplas possibilidades de sentido para seus textos, como um
puzzle imaginário que outra vez montado oferece àquele que o mira um novo
desenho. Diante desse quebra-cabeça, o leitor poderá facilmente concluir que
sua literatura se constrói a partir de uma arquitetura do movimento. Essa obra
pensada como projeto para uma poética do movimento aparece com força na
publicação “Breves Notas”, lançada em 2010 pela Editora da UFSC e pela Editora
da Casa. Trata-se de uma bela caixa composta por três livros: “Breves Notas
Sobre Ciência”, “Breves Notas Sobre o Medo”, e “Breves Notas Sobre as Ligações”.
A ideia do
escritor angolano-português Gonçalo M. Tavares nessas “Breves Notas”, segundo
Júlia Studart, é tomar a literatura como um “corpo que dança livre”, ou seja, como
um “corpo-bailarino, aquilo que sai do comum para provocar desequilíbrio”.
Trata-se, como o título sugere, de breves notas que vão se acumulando pelos
livros e cujo conjunto vai desenhando, na sua vocação para a poesia e para o
ensaio, uma espécie de enciclopédia poética e filosófica. Aliás, a ideia de
enciclopédia parece percorrer a obra do autor, cujo procedimento, quase sempre,
é o de agrupar suas publicações em séries oriundas dos diálogos entre seus
livros. É o caso não só da coleção “Breves Notas”, mas também de outras séries
como a de “O Bairro”, esta composta por aproximadamente dez obras, cada uma
interessada em dialogar com um autor específico, como Eliot, Brecht, Calvino,
entre outros.
A coleção das
“Breves Notas” faz lembrar do “Livro do desassossego”, de Fernando Pessoa,
publicado com o seu semi-heterônimo Bernardo Soares. Ambas as obras parecem ter
brotado do devaneio e de um filosofar inquieto capaz de traduzir a experiência
da vida moderna em um trabalho intelectual que se apropria do ensaio como forma
literária e da montagem como procedimento.
Gonçalo M.
Tavares abre suas “Breves Notas sobre a Ciência” com o seguinte fragmento: “Claro
que o Perigo é a origem dos métodos científicos mais eficazes. Se o Homem fosse
imortal ainda não teria inventado a roda (poderias dizer)”. Em outro momento
ele escreve: “Debruçai-vos sobre o futuro: no limite só os pés permanecem sobre
o solo, a cabeça foge para a frente. Investigar sem desequilíbrio é avançar em
cima de lama: alguém se afunda”. O elogio do perigo e do desequilíbrio revela
uma assimilação da liberdade que pode ser encontrada, por exemplo, na filosofia
de Nietzsche, traduzida pelo desejo de um espírito livre que dança na corda
bamba à beira do abismo.
Para Gonçalo M.
Tavares, escrever parece ser uma atividade que exige uma coragem do pensamento
em burlar paradigmas, pensando, tal qual Walter Benjamin, no método como
desvio: “Método como aquilo que se faz depois de se ter tropeçado; ou: o
movimento não planeado, espontâneo; para não cair depois de um desequilíbrio.
(...) O escritor está a fazer o que ainda não foi feito. O leitor pode pousar o
livro, a frase não foge; o escritor odeia o acto de pousar, porque pousar é não
fazer, e não fazer o que ainda não foi feito é um erro. Não fazer é o maior
pecado”. É talvez por isso que em outra nota ele observa que nada é tão
perigoso como “teres cumprido todos os teus afazeres do dia e ainda ser manhã,
teres cumprido todos os teus deveres na vida e ainda não estares morto”. Nesse
sentido, o olhar do autor, voltado para uma poética do movimento, não para no
ponto de chegada, pelo contrário, se delicia com o passeio, com o caminho, como
todo bom ensaísta faz. No fragmento em que anota sobre seu aniversário de
trinta e cinco anos, o autor conclui que depois da infância, ao invés de
esgotar seus desejos caçando todos os gêneros de felicidade – o que
inevitavelmente deixará uma grande sensação de vazio -, prefere permanecer
perdido na floresta. É uma forma de não esgotar seu desejo, afinal de contas, é
sempre o desejo que nos move para a vida. A permanente existência dele prova
que continuamos vivos.
Em sua teoria
poética sobre a ciência, Gonçalo Tavares parece apontar para o fato de que onde
a ciência falha a poesia encanta, ou mesmo para a ideia de que a ciência é o
nome de uma daquelas ficções que inventamos para tornar a nossa vida mais
feliz. Nesse jogo, o olhar distraído, ou seja poético, é o olhar que capta o
mais importante: “Só quem não se encontra apaixonado por A pode ver que, ao
lado de A, se encontra B. E B pode ser mais belo, mais verdadeiro; pode
fazer-te mais feliz”. Nesse sentido, a poesia é entendida como uma forma de
ciência, ou melhor, de uma ciência individual. E pensar pode ser uma forma de
felicidade: “Só quem é alegre arrisca. A tristeza é anticientífica”. Poderíamos
arriscar dizer que, em suas Notas, Tavares traça uma ciência poética ou mesmo
uma poesia científica, embaralhando os sentidos tradicionais dessa mistura.
Se pensamos no
conjunto das Notas como uma espécie de enciclopédia é também porque sua leitura
ideal se dará apenas na releitura, ou melhor, na consulta permanente de seus
verbetes. No folhear de suas páginas poderemos nos deparar com uma pérola como
esta: “As coisas estão repletas de nossos sentimentos. Olhar para uma coisa é
tirar desta as sensações que nos pertencem e que ela havia guardado (raptado?)
durante anos ou minutos. Olhar para as coisas é recuperar nelas o que era
nosso”.
Publicado originalmente em 01 de setembro de 2018, no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR).
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