sábado, 22 de setembro de 2018

Contradições de uma democracia nova, ou Bloco de notas para uma política que vem






(Em 1967, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade realizou o filme “Contradições de uma Cidade Nova”, para atender a uma encomenda da Olivetti. O documentário começa com uma apresentação da bela cidade de Brasília, com suas superquadras e edificações suntuosas e modernistas, para logo depois retratar as contradições desse progresso projetado, enfocando operários e imigrantes vivendo na periferia da Capital Nacional em condições de grande penúria. O filme foi rejeitado pela empresa para não constranger o governo militar. Salvou-se uma cópia da obra e, assim, ela sobreviveu. Dessa película, inspiro-me para o título do texto: “Contradições de uma democracia nova”).
Em tempos sombrios do presente, cabe-nos perguntar se a democracia é um bem que ainda estamos lutando para conquistar ou se é uma conquista que corremos o risco de perder antes mesmo de sua solidificação. Em lembranças remotas da minha infância, vejo-me deitado no chão da sala assistindo às exéquias do senhor Tancredo Neves. Pela TV, a multidão, com lágrimas fúnebres, parecia dividida entre o entusiasmo da redemocratização e o luto pela perda de um de seus baluartes. A democracia renascia a partir do luto e da luta, do sentimento de perda e da esperança de novos tempos, tempos de Henfil, Ulysses Guimarães, Fafá de Belém, pomba branca e tantos mais. Tempos das Diretas Já. Hoje, depois de apenas 30 anos de redemocratização, surpreende-me a quantidade de cidadãos defendendo um Estado de Exceção, aquela realidade obscura que só no século XX gerou no Brasil duas grandes ditaduras, a de Getúlio Vargas e a Militar de 64. Estamos vivendo em um estado de excepcionalidades que, além de enfraquecer a democracia, estimula uma desorientação coletiva que, por sua vez, desencadeia uma despolitização assustadora. Condena-se nas mídias antes de se condenar no tribunal, usa-se da liberdade democrática do direito de livre expressão para condenar o direito de expressão do outro. Agride-se dentro e fora da Rede Social. Legitima-se a violência com mais violência. Fecham-se os olhos para os índios, como se fossem eles os invasores da terra. Diminui-se toda e qualquer minoria. Elogia-se a falta de cultura como instrumento para uma boa governabilidade. Olvida-se dos Direitos Humanos. Diminui-se a figura da mulher e exalta-se a guerra, como fez Marinetti no “Manifesto Futurista” (fascista por excelência), em 1909: “Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor das anarquias, as belas ideias que matam, e o menosprezo à mulher”. Que atual!





Em um texto destinado a pensar a política, o filósofo italiano Giorgio Agamben observa que o termo “democracia” é falseado por uma ambiguidade que condena ao mal-entendido os que o empregam. O autor pergunta sobre o que falamos quando falamos de democracia? De uma forma de constituição do corpo político ou de uma técnica de governo? O termo, segundo ele, remete tanto à conceitualidade do direito público quanto à prática administrativa. Para Agamben, no discurso político contemporâneo, o termo se refere quase sempre a uma técnica de governo. As raízes dessa dualidade jurídico-política e econômico-administrativa se encontram na própria história de nossa cultura ocidental. O filósofo pergunta ainda se não seria essa ambiguidade uma ficção, “destinada a dissimular o fato de que o centro de uma máquina é vazio, de que não há, entre os dois elementos e as duas racionalidades, nenhuma articulação possível, e de que é dessa desarticulação, justamente, que se trata de fazer emergir esse ingovernável, que é ao mesmo tempo a fonte e o ponto de fuga de toda política”. Agamben encerra o texto dizendo que enquanto o pensamento não resolver esse nó, “qualquer discussão a respeito de democracia – como forma de constituição e como técnica de governo – corre o risco de cair no palavrório”. Uma não pode existir sem a outra, assim como qualquer ideia de liberdade e conquistas (para não falar em progresso, essa palavra tão famigerada) só pode existir de fato dentro de um Estado de Direito, de uma Democracia, e não em um Estado de Exceção, este que vem sendo elogiado, sem qualquer constrangimento, por alguns candidatos.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 22 de setembro de 2018.

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