À memória de Pedro Nava, guardador de memórias
A Persistência da Memória,de Dalí
Silviano Santiago, no ensaio
“Prosa literária atual no Brasil”, presente no livro Nas Malhas das Letras,
observa que a preocupação memorialística é um componente forte e definitivo
dentro de nossa melhor prosa modernista. O ensaio é de 1984, período em que se
dava o ressurgimento do memorialismo nas nossas letras. Vale lembrar que no
mesmo ano, Pedro Nava, talvez nosso maior memorialista, se suicidou, depois de
publicar o sexto volume de suas memórias, fechando um ciclo que se iniciara em
1972, com Baú de Ossos. Santiago, ainda no mesmo ensaio, afirma que a tendência
ao memorialismo ou à autobiografia, tendo ambos como fim a conscientização
política do leitor, era um ponto de acordo entre a maioria dos prosadores da
época. A ditadura militar agonizava e o retorno dos exilados políticos era um
convite para a revisão de um passado recente que produzia ecos na produção de
vários escritores. O mesmo se deu na Argentina, a partir do processo de redemocratização.
Fato que levou, recentemente, Beatriz Sarlo a analisar o surto de uma
literatura de memória na Argentina pós-ditadura. A necessidade de lembrar como
condição para o não esquecer. Mas até que ponto um relato teria a condição de
transmitir uma experiência?
Walter Benjamin
Walter Benjamin nos dizia em “Experiência e
Pobreza” que o homem, depois de voltar mudo dos campos de batalha da Grande
Guerra, perdera a capacidade de transmitir uma experiência no relato. O choque
teria liquidado a experiência em si mesma: o que se viveu como choque era forte
demais para o homem. O que aconteceu na Grande Guerra provaria a relação
inseparável entre experiência e relato; e também o fato de que chamamos
experiência o que pode ser posto em relato, algo que não só se sofre, mas que
se transmite. Se seguirmos Benjamin, acaba sendo contraditório em termos
teóricos afirmar a possibilidade do relato da experiência na modernidade. A
tendência ao memorialismo, seja em retratos de guerra ou não, mostra o
contrário.
Beatriz Sarlo
No livro Tempo Passado, Sarlo pergunta: A narração da experiência
guarda algo do vivido? A experiência se dissolve ou se conserva no relato? É
possível relembrar uma experiência ou o que se relembra é apenas a lembrança
previamente posta em discurso? As perguntas são importantes também para situar
o memorialismo na literatura brasileira. Mas não podemos desconsiderar que o
gênero memorialístico é multifacetado, não podendo ser enquadrado numa
categoria fechada, como se existisse apenas um tipo de literatura de memórias.
Como colocar no mesmo gênero obras tão variadas como Menino de Engenho (1932),
de José Lins do Rego, que misturou suas memórias com a cultura e paisagem
regionalista, O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos, um dos grandes momentos
de nosso memorialismo, Minha Formação, de Joaquim Nabuco, que praticamente
inaugurou no século XX a prática do gênero no Brasil, e O que é isso,
companheiro? (1979), de Fernando Gabeira?
Silviano Santiago
Segundo Santiago, no ensaio já citado,
existem duas grandes linhagens do memorialismo no Brasil do século XX. A prosa
memorialista do modernismo de 30 e a prosa memorialista contemporânea, dos anos
70 e 80. No caso do memorialismo de 30, a ambição era de recapturar uma
experiência não só pessoal como também do clã senhorial em que se inseria o
indivíduo. É o caso de Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Raquel de Queirós,
ou mesmo José Américo de Almeida, entre outros. Já a prosa memorialística dos
anos 70 e 80 se concentrou fortemente nas questões políticas. É o caso de
Fernando Gabeira, com O que é isso, companheiro? e Alfredo Sirkis, com Os
Carbonários (livro que gosto muito). No primeiro caso, percebe-se o exagerado
interesse pelos anos infantis, e no segundo, o envolvimento com grupos
estudantis e de guerrilha. Caso haja interesse em classificar, pode-se dizer que
o texto modernista é memorialista (apreensão do clã, da família), enquanto o
dos jovens políticos é legitimamente mais autobiográfico (centrado no
indivíduo). Mas essas categorias são apenas instrumento de leitura, tendo em
vista que muitas vezes o gênero memorialístico “escapa” dessas categorizações, misturando
as duas tendências, ou pelo menos confundindo seus limites e limiares.
Jean Starobinski
Para Starobinski,
um dos pesquisadores do gênero, o memorialismo seria uma das ramificações da
literatura autobiográfica. Nesse caso, o autobiógrafo valorizaria uma dicção
mais subjetiva, alargando as fronteiras dos limites discursivos. A outra
ramificação da literatura autobiográfica seria aquela em que o escritor assume
uma postura objetiva. O escritor, em vez de memorialista, é caracterizado como
um “diarista”. Sob esse ponto de vista, o memorialismo seria muito mais
complexo, por alargar os limites do vivido, trabalhando não só com as
lembranças, mas principalmente com a imaginação. É o que pensa Wilson Martins
ao afirmar que “para copiar a vida é preciso ter mais imaginação do que para
inventá-la”, porque é preciso um esforço grande para insuflar a vida da ficção
em seres e coisas que já têm a sua vida própria. É preciso ver o elemento de
grandeza que existe em tudo o que nos cerca, e perceber a frágil linha de
eterno que circula todas as existências. Wilson Martins opõe as memórias de
escritores ao estilo memorialístico. Este, ao contrário daquele, inclui a visão
existencial que é mais do que a simples rememoração autobiográfica.
Paul de Man
O que as
autobiografias produzem é a ilusão da vida como referência, como nos dizia Paul
de Man. A ilusão de que existe algo como um sujeito unificado no tempo e no
texto. Não há sujeito exterior que consiga sustentar essa ficção da unidade
existencial e temporal. Tudo o que uma autobiografia consegue mostrar é a
estrutura especular em que alguém, que se diz chamar eu, toma-se como objeto, e
cobre seu rosto com essa máscara. Há algumas semanas, li o romance Ainda Estou
aqui, de Marcelo Rubens Paiva, que me encantou tanto quanto, ou ainda mais, que
Feliz ano Velho. Ainda estou aqui, do Marcelo, e O irmão alemão, de Chico
Buarque - dois dos romances mais bonitos da literatura brasileira dos últimos
vinte anos) -, inscrevem-se naquilo que poderíamos chamar de auto-ficção, um
gênero que problematiza a tradicional auto-biografia, lançando novas luzes a "escrita
ficcional sobre si".
Produzir uma biografia é sempre fazer ficção, já que
os referentes que a compõe são do universo do texto, portanto tão ficcionais
quanto qualquer outro gênero literário. Penso que mais importante do que considerar
tal gênero como ficção ou não ficção, trata-se de analisarmos como se dá o jogo
que oscila entre um e outro universo nas páginas de seus enredos.
Sarlo escreveu que "A
narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu
acontecer, mas a de sua lembrança". A narração da experiência está unida
ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Ainda, "Não
há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração".
E "a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência".
Em geral, o trabalho criativo
permite que as memórias passem para o domínio da ficção. É pelo desprezo à
veracidade que se comunicam a ficção e a autobiografia, o fingimento e o relato
pessoa, a estória e a história. Não seria fortuito lembrar que a escritor
espanhol Francisco Ayala, que faleceu em 2009, escreveu no prólogo do livro De
recuerdos y olvidos, que o gênero memorialístico, apesar de ter um conteúdo
que se pretende verdadeiro, procura elaborar essa verdade literariamente de
modo criativo, acrescentando e modificando fatos ocorridos. O escritor
mostra-se assim consciente de que a distância entre o presente da voz que narra
o passado distante vai inevitavelmente reelaborando a experiência através do
relato e acaba por construir uma obra imaginária em que aquelas fatos aparecem
transubstanciados em ficção. Poderíamos lembrar aqui de um dos versos do poeta
Waly Salomão que dizia ser a memória uma "ilha de edição". Uma ilha
de edição pressupõe o trabalho com corte e montagem, como no cinema, o que
demonstra, em literatura, as lembranças são apenas matéria prima, matéria que
deverá passar pela capacidade de invenção de determinado escritor.
Francisco Ayala
A literatura memorialística
enraíza-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar reconstituir um passado
que nos escapa, seja para resguardar alguma coisa da "morte dentro da
nossa frágil existência humana" (Gagnebin ao ler a obra de Benjamin). Se
por um lado a obra de memórias salva um passado, por outro, não deixa de estar
atravessada pelo refluxo do esquecimento, esquecimento que não seria
necessariamente uma falha, um branco de memória ou a própria incapacidade de
recuperar o tempo perdido, mas a atividade que recorta, monta, re-escreve o
próprio passado.
A obra de Pedro Nava, por exemplo, um dos pontos mais altos do
literatura de memórias, é um compósito de espontaneidade e artifício,
consciência artística e afetação. Leitor apaixonado de Marcel Proust, Nava
ficcionaliza as memórias. Por isso, sua obra difere significativamente de boa
parte da tendência, violando, assim, uma regra básica do memorialismo. É que
Nava, ao misturar a fala do narrador a de outros personagens, como Egon, seu
alter-ego, transcende aquele memorialismo presente na literatura nordestina,
que se concentrou no convencional e no documentário, social ou socialista.
Assim ele não apresenta uma ficção como se fosse um relato, mas um relato como
se fosse ficção. Um procedimento que não consiste em lembrar do passado, mas
reinventá-lo. Não se trata meramente de recordar, mas de reencontrar, à maneira
proustiana, o tempo perdido. Em 1972, Nava publica o primeiro volume de suas
memórias, intitulado Baú de Ossos, centrado em seus ancestrais do Maranhão e do
Ceará, bem como em sua primeira infância na cidade mineira de Juiz de Fora. Em
1973, saí o segundo volume, Balão Cativo, em que descreve ainda a infância até
a morte do pai. Depois, são as lembranças dos anos passados no Colégio Pedro II
(Chão de Ferro, 1976), a juventude em Belo Horizonte (Beira-Mar, 1978), o
início da carreira médica, em São Paulo (Galo das Trevas, 1981), e a mudança
para o Rio de Janeiro (O Círio Perfeito, 1983). O autor preparava um sétimo
volume quando se suicidou em 1984. Nos seis volumes, a história e a invenção se
encontram intimamente misturadas, a imaginação se reveza com a memória, o
passado individual se funde com o passado coletivo, o que não é comum em
autobiografias. Nava, em todos os volumes, desenvolve digressões, movimentos e
ida e vinda no tempo, lançando mão de uma grande quantidade de materiais, como
cartas, fotos amareladas que se juntam à memória pessoal e à imaginação do autor.
Quando se trata de literatura memorialista, Nava recebe destaque da crítica, de
Antonio Candido e Wilson Marins a Davi Arrigucci, de Dalton Trevisan a Otto
Maria Carpeaux. Esses dois últimos, por sinal compararam a qualidade do texto
de Nava a de Proust.
Pedro Nava
Alfredo Bosi, em História
Concisa da Literatura Brasileira, distribui o romance brasileiro moderno , de
30 pra cá, em quatro tendências: Romances de tensão mínima, em que as
personagens não se destacam visceralmente da estrutura e da paisagem que as condicionam;
Romances de tensão crítica, em que o herói opõe-se e resiste antagonicamente às
pressões da natureza e do meio social; Romances de tensão interiorizada, em que
o herói evade-se, subjetivando-se o conflito; Romances de ação transfiguradora,
em que o herói procura ultrapassar o conflito que o constitui essencialmente
pela transmutação mítica ou metafísica da realidade.
No que se refere à
literatura memorialista, Bosi a insere na terceira categoria, em que predominam
os romances psicológicos, cujos traços principais são o memorialismo, o
intimismo e a auto-análise. Mas muitas vezes essas quatro tendências se
misturam, o que nos levam a supor que é possível encontrar traços fortes de um
memorialismo em romances de outras categorias. É o caso de José Lins do Rego,
que produziu uma obra memorialista, mesmo desprovida de uma tensão
interiorizada, presente em Cyro dos Anjos, Lúcio Cardoso, e Ligia Fagundes
Telles, por exemplo. Bosi trata dos romances memorialistas como romances de
ego. Não podemos desconsiderar que a ascensão da psicanálise nos anos 30 e 40
influenciaram, direta ou indiretamente, tal tendência. O termo “romances de
ego” parece ter uma carga pejorativa, como se esse tipo de produção
caracterizasse um realismo menor. Para Bosi esse realismo menor seria superado
depois dos anos 50 e 60, momento que, segundo o pesquisador, entramos numa era
de pesquisa estética que geraria obras como intimistas mais bem realizadas
esteticamente como a de Nélida Piñon e Raduan Nassar. Momento que, segundo
Bosi, a literatura brasileira produziria uma ficção menos “egótica” e mais
“suprapessoal”. Um tipo de literatura que se iniciou no Brasil com Joaquim
Nabuco, em “Minha formação” e que, de maneira diferente, sobrevive na atual
literatura brasileira.
Cyro dos Anjos
Na apaixonada integração da
paisagem e do homem, em A bagaceira (José Américo de Almeida), talvez se possa reconhecer um subjacente
memorialismo. Um memorialismo que na década de 30 daria início a uma linhagem
de obras que aliaram o interesse realista, socialista e regionalista às
impressões de memória. O engenho Marzagão foi situado perto e Areia, terra
natal do autor, que, em discurso de louvor à cidade, diria que o “o homem será
sempre prisioneiro de sua origem”. O livro, aliás, influenciaria a obra
memorialista de José Lins do Rego.
José Américo de Almeida
O “Ciclo da cana-de-açúcar” se inicia
exatamente com o material que iria tornar-se recorrente na obra de José Lins,
materializando a ânsia do autor em retomar e reforçar as matizes do mundo
perdido na infância. Menino de Engenho – que tinha como título inicial o nome Memórias
de um menino de engenho – é isto, a narração poetizada do dia a dia no
Corredor, agora transformado no Engenho Santa Rosa do Coronel Zé Paulino. Por
meio de Carlinhos, o romancista assiste novamente às inundações do Paraíba,
chora a ausência da mãe, brinca com os moleques da bagaceira, redescobre os
amores das mucamas e dos animais.
O autor possui aquela capacidade de fabulação
memorialística que, segundo Álvaro Lins, nos deixa aquela sensação de
“realidade tão profunda que não sabemos nunca se ela vem da vida objetiva ou da
imaginação do autor”. Nesse sentido, poderíamos ler o romance de José Lins como
um típico “roman à clef”, expressão usada por Mário de Andrade (Aspectos da
Literatura Brasileira) com relação ao livro O Ateneu, de Raul Pompéia. A
expressão cabe perfeitamente ao gênero memorialístico ao designar a forma
narrativa na qual o autor trata de pessoas e fatos reais por meio de
personagens e situações fictícias. Mas o roman à clef, traço da literatura de
memórias, ainda não pode ser considerado memorialismo.
José Lins do Rego
Na memorialística
brasileira, Pedro Nava conquistou um dos primeiros lugares. Sua obra é um
painel social, uma reconstituição histórica e uma construção de estilo. É por
essa última qualidade que ficará como obra excepcional de literatura. Wilson
Martins costumava dizer que nem todos os grandes escritores são memorialistas,
mas que ninguém será grande memorialista se não for grande escritor. E é aí que
reside a qualidade de Pedro Nava, cujo estilo não consistia apenas no uso do
relato, mas no milagre da transubstanciação. Que nos importam os nomes de
tantos lugares desconhecidos, tantas ruas e prédios que jamais veremos? O que
nos importa é que, em sua obra, tudo isso se transformou em matéria literária,
em paisagens e personagens, em Testemunho do tempo.
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