Au foyer du théatre, de Constantin Guys
Antes de discutirmos as
tendências estéticas da modernidade na poesia brasileira, que a nosso ver
surgem com a poética simbolista, devemos especificar algumas questões que podem
nos ajudar a entender melhor tais tendências. Concentraremo-nos na poesia finissecular européia tendo em
vista que sem entendê-la, pelo menos em parte, é praticamente impossível
entender a modernidade brasileira.
Comecemos pensando o
conceito de “modernidade”. Em 1859, depois de visitar uma exposição do pintor
Constantin Guys, Charles Baudelaire escreve uma coletânea de artigos de crítica
de arte intitulada “O pintor da vida moderna”. Nesses textos, o autor das
“Flores do Mal” desenvolve algumas das primeiras impressões sobre aquilo que se
convencionou chamar de modernidade (aliás, Baudelaire foi um dos inventores da
palavra). O poeta parte do pressuposto de que a arte possui duas metades. A
primeira refere-se ao contingente, ao efêmero, ao transitório, ou seja, a modernidade,
e a segunda refere-se ao infinito e ao eterno que ela pode presentificar.
Constantin Guys
A
modernidade seria pautada não só pela capacidade de ver no deserto urbano a
decadência do homem e de pressentir uma beleza misteriosa não descoberta até
então, mas também pela capacidade de extrair o eterno do transitório. Esse é o
problema específico para Baudelaire, ou seja, a capacidade da poesia numa
sociedade comercializada e dominada pela técnica.
A principal característica
da modernidade seria a perda da inocência e a desesperança pelo que virá.
Essa desolação, que se originou do processo de racionalização que surgiu no
Ocidente no final do século XVIII, gerou uma crise da linguagem que é
sintomática na modernidade. Uma crise que se intensificou a partir de uma outra
crise, aquela gerada pela Segunda Revolução Industrial, nas duas últimas
décadas do século XIX. Do sistema capitalista surgiu uma nova ordem econômica
que beneficiava a elite européia em prejuízo da maioria da população,
constituída pela classe média e pelo proletariado. O intenso progresso
científico e técnico não conseguiu mascarar um clima de intranquilidade e
pessimismo.
Baudelaire
Apesar de Baudelaire ser
considerado o precursor da modernidade, seus legítimos fundadores, na opinião
dos críticos, são os poetas simbolistas Mallarmé e Rimbaud. Foram eles que
colocaram em prática aquilo que Baudelaire vinha desenvolvendo anteriormente no
âmbito teórico. Mallarmé percebeu a crise não apenas histórica (decadência),
mas também formal que circundava a produção literária do período, o que o levou
a escrever o texto “Crise de Verso”, em que analisa a ruptura causada pelo
enjambement, que fez com que o verso perdesse a sua vocação para o natural,
para o sentencioso e para o aforístico (caso do verso alexandrino francês tradicional).
A “torção da linha”, desencadeada pelo enjambement foi responsável pela crise
da linguagem que abriu as portas para o poema em prosa e de verso livre,
praticados abundantemente pelos modernos, modernistas, e contemporâneos.
Mallarmé
A tensão dissonante é o
objetivo das artes modernas em geral. Sua obscuridade e desarmonia são
intencionais. A poesia moderna quer tornar estranhos os conteúdos. Antes da
modernidade, a lírica era entendida como linguagem em estado de ânimo, da alma
pessoal. A poesia já não quer mais ser medida em base ao que comumente se chama
de realidade. Ela prescinde da humanidade, no sentido tradicional, da
experiência vivida, afastando o “eu” do artista. O “eu” moderno é um eu
cindido, desterritorializado e o poeta passa a ser agora um operador da língua
(noção que sobrevive na poesia de Carlos Drummond de Andrade, no conceito de
Gauche).
Além dos sintomas
premonitórios da modernidade serem figurados pela fragmentação da linguagem do
poeta romântico Novalis e da teoria do grotesco, delineada por Diderot e
aprimorada por Vitor Hugo, devemos lembrar da despersonalização como fundamento
da poesia. A lírica moderna desconstrói a união entre poesia e pessoa. Fora da
França, Edgar Alan Poe foi quem separou de maneira contundente a lírica e o coração.
Baudelaire, leitor de Poe, defendia a poesia como trabalho, como construção
sistemática de uma arquitetura e não como embriaguez do coração (Noção que
sobrevive com força nas concepções poéticas de João Cabral de Melo Neto).
Assim, é sob o signo da despersonalização que nasce o poetar moderno (elogio do
artifício). Baudelaire acreditava que tudo o que é natural é monstruoso e tudo
o que é artificial, magnífico e sublime. Acrescentemos à figura de Baudelaire,
Fernando Pessoa, para quem o poeta é um fingidor e Rimbaud, para quem o “eu” é
sempre um outro. A poesia de Rimbaud continua sendo a linguagem originária da
poesia moderna. Começou com versos encadeados, passando aos versos livres e ao
poema em prosa. Mallarmé, por sua vez, defendia a poesia como fruto do
intelecto e como manejo com a língua.
Rimbaud
Podemos concordar que a
maior parte da poesia modernista é herdeira direta das experimentações da
poesia simbolista, no que ela tem de moderna, principalmente devido à liberdade
formal, do verso de uso irregular, rompendo com toda submissão obrigatória, e
permitindo assim um reaprendizado da leitura como tomada de consciência dos
mecanismos significantes.
Nossos primeiros modernos,
os simbolistas, foram leitores de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé. Aqui,
o movimento simbolista iniciou-se oficialmente com a publicação de dois livros
do poeta catarinense Cruz e Sousa: Missal e Broquéis, ambos de 1893. Mas antes
disso já havia uma movimentação em torno de uma nova poesia que já vinha sendo
anunciada em 1879, por Machado de Assis, no artigo A Nova Geração.
Se por um lado o simbolismo
influenciou o surrealismo (pela ideia do eu cindido, o inconsciente da
psicanálise), por outro, podemos encontrar influências sobre o expressionismo,
tal como Paulo Leminski observou no seu livro sobre a vida e obra de Cruz e
Sousa. Augusto de Campos, por sua vez, encontrou em Pedro Kilkerry (poeta
simbolista baiano) o precursor não só do surrealismo, mas da poética
cinematográfica de Oswald de Andrade. É o caso também de Sousândrade
considerado pelos concretistas como um dos precursores do modernismo, por
antecipar certas técnicas poéticas como o uso de versos livres, neologismos,
etc.
Pedro Kilkerry
No Brasil, a modernidade
coincide com a proliferação de imagens técnicas. Há uma vontade de modernização
que invade o país, o que pode ser percebido no processo de urbanização
desenvolvido pelo prefeito Pereira Passos (1905), uma espécie de Barão
Haussmann dos trópicos. Os primeiros automóveis começam a circular pelas
cidades. Os jornais proliferam as suas tiragens, a luz elétrica é implantada. A
art nouveau entra na moda. É o clima da Belle époque. Um cenário que será
fotografado por artistas como Marc Ferrez e Klumb. Susan Sontag, em Ensaios
sobre Fotografia, observa que uma sociedade se torna moderna quando uma de suas
principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens. Nesse
contexto, a literatura não só representa essas inovações técnicas (cinema,
fotografia, literatura), como incorpora seus procedimentos ao próprio texto.
Kilkerry, por exemplo, com as suas Kodaks (crônicas do cotidiano) “enforma” a
produção cultural da época, ou seja, incorpora procedimentos técnicos oriundos
dessas inovações. O que de certa forma será aprimorado por Antonio de Alcântara
Machado, em Pathé Baby, em 1926. No livro, Machado reúne crônicas de uma viagem
que realizou na Europa. Até aí, nada de novo, já que a literatura de viajantes
é uma tradição da literatura brasileira. O aspecto inovador estava nas
ilustrações que acompanhavam as crônicas. Elas não apenas ilustravam os textos,
como construíam paralelamente uma outra narrativa, que representava a projeção
de um filme de cinema mudo, cuja trilha sonora era produzida por um pequeno
número de músicos. De maneira que podemos ler essa outra narrativa como se
estivéssemos assistindo à projeção de um filme. É o que fará Oswald de Andrade,
de outra maneira, não só nos livros Memórias Sentimentais de João Miramar, mas em toda a sua poética, ao operar com cortes e
repetições, procedimentos oriundos do cinema, como bem observou o filósofo
Gilles Deleuze.
O nosso modernismo nasce,
assim, sob o signo de um confronto entre a poesia como artefato e a arte no
horizonte da reprodutibilidade técnica. De um lado as experimentações
simbolistas, de outros o ambiente urbano, a velocidade das máquinas, a fé no
progresso industrial. Flora Süssekind, em Cinematógrafo de Letras, observa que
no confronto entre letras e técnicas, ora se dessacralizava a arte que se
queria pura, ora roubando-se o arsenal técnico de seu contexto de origem,
desautomatizava-se a sua utilização.
A modernidade brasileira tem
sido lida por uma rua de mão única. Fala-se das vanguardas europeias como o fio
condutor da produção literária da época. No entanto, as experimentações
simbolistas foram tão ou mais importante que os ismos europeus, já que
anunciaram a crise da linguagem, permitindo a emergência das próprias
vanguardas. E isso não aconteceu apenas no âmbito da literatura. A pintura de Tarsila
do Amaral e Anita Malfati, por exemplo, não foram influenciadas apenas pelo
cubismo, pelo expressionismo e pelo impressionismo, mas também está
atravessada, consciente ou não, pela pintura acadêmica do fina do século XIX
produzida por pintores como Belmiro de Almeida e Almeida Júnior (sobre isso há
um importante estudo do professor Tadeu Chiarelli).
Oswald de Andrade
Se por um lado Oswald foi
influenciado pelo futurismo, disseminando-o pelo Brasil após o seu retorno da
Europa, por outro é tocado pelo espírito inovador e mallarmaico de Pedro
Kilkerry. Aliás, as vanguardas foram vistas com desconfiança por vários
modernistas. Basta lembrar do fracasso da viagem e Marinetti (ciceroneado por
Graça Aranha), ao Brasil, em 1926. Manuel Bandeira admirava mais a poesia
finissecular do que as vanguardas, e chegou a escrever um importante estudo
sobre a obra de Mallarmé, apresentado na Academia Brasileira de Letras em 1942.
Mário de Andrade também desconfiou dos “ismos”, chegando a ficar incomodado
quando Oswald o chamou de “Meu poeta futurista”. Mário considerava o movimento
um avanço estético, mas também um retrocesso político, pelo seu aspecto
fascista. As concepções modernas/modernistas de Mário aparecem com força em
estudos teóricos como “Prefácio Interessantíssimo” e “A escrava que não é
Isaura”. Neste último, interpreta o modernismo como uma poética da
simultaneidade que mistura Mallarmé, Rimbaud e Gonçalves Dias.
O próprio Oswald parece que
transcendeu as Vanguardas, apesar de ser influenciado em relação ao verso
sintético, livre, branco e de palavras encadeadas, ou mesmo na ideia de
manifestos. Não podemos esquecer da sua
poesia minuto e de seus poemas piadas que fundaram uma linhagem que predominou
até a poesia marginal de Cacaso e Chico Alvim.
Seu livro Poesia Pau Brasil foi uma espécie de revolução copernicana
da literatura brasileira, como afirmou
Haroldo de Campos. Poemas como “Amor Humor”, ápice da concisão, ou mesmo os
ready-mades que ressignificaram a literatura dos viajantes, bem como as suas
montagens, são sintoma de uma poesia cubista e cinematográfica.
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