Beatriz
Resende, no livro “Contemporâneos: Expressões da literatura brasileira do
século XXI” (2008), confessa que há na tarefa de se escrever o presente algumas
inseguranças quase insuportáveis: “Uma espécie de sensação de nudez sob ventos
e olhares que podem vir de direções diversas”. Isso porque a complexidade do
tempo presente, bem como o temor de uma avaliação equivocada, faz parte da
atividade crítica interessada na produção contemporânea. A pesquisadora aponta
três evidências da potência gerada pela literatura contemporânea. A primeira é
a fertilidade dessa produção, que está ligada à quantidade de livros publicados
e consumidos. A segunda diz respeito à qualidade dos textos. Para ela, a prosa
que se apresenta vive um momento de grade qualidade. A terceira está ligada à
multiplicidade. Característica que se revela na linguagem, nos formatos. São
múltiplos tons e temas e, sobretudo, múltiplas convicções sobre o que é a
literatura. Talvez seja essa multiplicidade o fator responsável pela
insegurança em se abordar o fenômeno da ficção brasileira contemporânea.
Beatriz Resende
Falar
sobre a ficção brasileira do século XXI pressupõe, antes de tudo, uma reflexão acerca
do conceito de “contemporâneo”. O que é a literatura contemporânea? E mais
ainda, o que significa ser contemporâneo, hoje, na literatura? Seria a
literatura contemporânea o conjunto de obras produzidas no presente, ou apenas
aquelas compartilham as tendências literárias contemporâneas, ou seja, aquelas
que estão à altura do, por responderem de maneira eficiente às questões de
nosso tempo? Não seria a obra de Sousândrade ou de Oswald de Andrade mais
contemporânea do que grande parte da literatura produzida hoje no Brasil?
Quando começa a literatura contemporânea? Nota-se que estamos diante de um
problema do tempo, e da impossibilidade de reduzi-lo à história. Dessa maneira,
é impossível tratar da ficção brasileira produzida no século XXI, ou seja a
contemporânea, sem de início problematizarmos a questão do tempo.
Susana Scramim
Susana
Scramim, no importante estudo intitulado “Literatura do Presente”, observa que
não podemos acercar-nos da ideia de presente sem que entremos na discussão
sobre uma concepção de tempo. Sabemos que a história não se resume a uma
sucessão de fatos no tempo cronológico, mas não podemos ignorar a historicidade
dos atos criativos. Quando Giorgio Agamben introduz-nos na discussão sobre o
tempo, previamente nos alerta que uma experiência com o tempo acompanha cada
concepção de história; e que numa concepção de história reside uma experiência
com o tempo que inclusive a condiciona. Sendo assim, não se produz uma nova
cultura, que é o resultado de uma experiência com o tempo, se não se muda a
relação com o tempo e não se altera nossa percepção da história.
Como
tratar do contemporâneo sem cair nas armadilhas que dizem respeito às
classificações rasteiras que tentam decifrá-lo?
Giorgio Agamben
No ensaio “O que é o
contemporâneo?” o filósofo italiano Giorgio Agamben pergunta: “De quem e do que
somos contemporâneos? No mesmo texto, uma tentativa bem sucedida de resposta:
“Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele
que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e
é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente
através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os
outros, de perceber e aprender o seu tempo”. Nesse sentido, para o filósofo,
contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber
não as luzes, mas o escuro: “Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente aquele que sabe ver
essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do
presente”. E indo mais longe, Agamben conclui defendendo que o contemporâneo
não é apenas aquele que percebendo o escuro no presente, nele apreende a
resoluta luz, é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à
altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos. Não é
outra a aposta de Josefina Ludmer que no ensaio temporalidades do presente,
publicado na revista argentina Márgenes, propõe ler o presente como uma
complexa confluência de temporalidades. Isso porque o tempo é uma matéria em
movimento.
Josefina Ludmer
Numa
das passagens do livro Literatura do
Presente, a pesquisadora Susana Scramim observa que ao contrário de todo
experimentalismo possuir de conhecimento seguro, é o “reconhecimento da
ausência de caminho (a-poria), de método, que fundamenta a única experiência
possível para uma literatura do presente”. Não há mais um caminho seguro, uma
vanguarda predominante, um estilo de época, mas sim uma pluralidade de
tendências e de opões que dificultam uma categorização.
Flora Sussekind
Flora
Sussekind, em Literatura e Vida Literária, aponta para duas linhagens
literárias predominantes na literatura brasileira do pós-64. Parece-nos que
essa categorização ainda pode nos ajudar a ler a ficção produzida no Brasil do
século XXI. A primeira linhagem está centrada em no realismo. Nos anos 60 e 70,
optou, ora pela vertente mágica, ora pela vertente jornalística. Flora
Sussekind batizou linhagem de “literatura verdade”. Na vertente jornalística,
propiciou o surgimento de romances-reportagem ou de cunho memorialístico. É o
caso de Fernando Gabeira, com o que é isso, companheiro?; Alfredo Sirkis, com "Os Carbonários". Tal literatura, ganhando ares para-jornalísticos, assumiu para
si a tarefa de relatar os problemas oriundos da repressão militar. No caso da
vertente mágica, superpovoada de pistas alegóricas, também. Por trás de tais
alegorias, poderia ser encontradas críticas veladas aos militares. É o caso de
J.J. Veiga e Murilo Rubião.
Raduan Nassar
A
segunda linhagem apresentada por Sussekind optou pela experimentação. Tal
corrente, que valorizou o aniquilamento da ação narrativa, sejam as
experimentações de Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, Panamérica de José
Agrippino de Paula, ou mesmo a linguagem poética centrada na memória, como a
obra de Raduan Nassar e Caio Fernando Abreu, é considerada por Flora como menos
vitoriosa na história da literatura brasileira. A autora se pergunta por que a
vitória das parábolas, biografias e do naturalismo em detrimento de uma
literatura que jogava mais com a elipse ou com o chiste? Talvez seja a obsessão
pelo real o fator responsável pelo sucesso comercial de obras menos
experimentais. São também essas as obras que ganham destaque atualmente em
adaptações cinematográficas, apesar de encontrarmos livros como Lavoura
Arcaica, de Raduan Nassar, e Harmada e Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll,
e Onde Andará Dulce Veiga, de Caio Fernando Abreu presentes em adaptações nos
cinemas.
Caio Fernando Abreu
Imagino
que essa divisão sobrevive na literatura produzida no século XXI e nos ajuda a
entender o momento atual. De um lado encontramos autores como Paulo Lins (autor do famoso "Cidade de Deus" e do belo "Desde que o Samba é Samba", que li recentemente),
Patrícia Melo, Marçal Aquino, entre outros, interessados em produzir uma
literatura concentrada nas grandes cidades, na marginalidade, lançando mão para
isso de uma linguagem “realista”. Tal tendência é caracterizada por alguns
estudiosos como uma literatura neo-realista, ou neo-naturalista. Podemos supor
que esses autores acreditam que a literatura pode representar o mundo, o real,
os problemas sociais. Ao invés de chamá-la de neo-realista ou neo-naturalista,
termos que pressupõe um retorno impossível, prefiro caracterizá-la como
“mimética”, ou seja, uma literatura que visa a produzir um efeito de real. Claro que a questão não é tão simples assim, mas pode ser desenvolvida a partir desse enfoque.
Paulo Lins
Schollhammer, em “Ficção brasileira contemporânea”, (2009) observa que o que
encontramos nos neo-naturalistas é a vontade ou o projeto de retratar a
realidade atual da sociedade brasileira, frequentemente pelos pontos de vista
marginais ou periféricos. Para ele, os novos realistas querem provocar efeitos
de realidade diferente dos realistas ou naturalistas do final do século XIX. O
novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com
a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade
esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força
transformadora. Ainda seguindo pensamento do autor, observa, assim, um novo
realismo que conjuga as ambições de ser “representativo”, mimético e ser
simultaneamente engajado, sem necessariamente se subscrever a nenhum programa
político. Ou seja, estamos diante de um “modelo referencial”, que entende as
imagens e os signos como ligados a referentes, a coisas “reais”, pertencentes
ao mundo da experiência. Muitas vezes gerando um neodocumentarismo comandado
pela “demanda do real”
Marçal Aquino
Do
outro lado, encontramos escritores como Milton Hatoum e Bernardo Carvalho que
tem consciência de que há um abismo que separa a literatura do mundo. A
literatura anti-mimética, por eles produzida, não necessariamente representa o
mundo, mas constrói realidades, seja pela desterritorialização do eu ou pelas
veredas que se bifurcam nos meandros da memória. Estariam próximas daquilo que
o poeta Wally Salomão dizia em poesia: “A memória é uma ilha de edição”. O que
permite ao escritor levar às últimas conseqüências o trabalho com a narrativa.
O que está em jogo é a ficção e não a fábula para usar uma terminologia de Foucault. Na segunda categoria poderíamos incluir
escritores como João Gilberto Noll, em livros como Berkeley em Belágio, em que
o narrador desterritorializado produz também uma narrativa desterritorializada.
É também o caso de Valêncio Xavier, que por meio de montagens desestabiliza o
discurso mimético que é predominante em boa parte da prosa contemporânea. Esse
modelo entende as imagens como representações de outras imagens. Um aspecto
curioso é a possibilidade de uma terceiro caminho, que mescla as duas
primeiras, ou seja, procura criar efeitos de realidade, Sem precisar recorrer à
descrição verossímil Ou à narrativa causal e coerente. Ou seja, é possível
produzir uma literatura experimental não abrindo mão de uma certa
referencialidade.
Bernardo Carvalho
Milton Hatoum
João Gilberto Noll
No
geral, podemos perceber a diluição da fronteira entre os gêneros como um dos
traços marcantes da literatura produzida no século XXI. Valêncio Xavier, por
exemplo, mistura propagandas, fotografias, fotogramas cinematográficos formando
uma narrativa alinear, influenciando decisivamente a obra do jovem Joca Reiners
Terron. Silviano Santiago produz em sua obra algo que oscila entre o romance e
o ensaio. Outra característica forte é a presença da cidade e da violência, que
a partir de Rubem Fonseca tornaram-se predominantes na literatura do pós-64. É
o caso de Marcelino Freire, Marçal Aquino, Patrícia Melo, Fernando Bonassi. No
entanto, a preocupação excessiva com o presente, a descrença nas utopias, a
cidade caótica, a violência urbana, enfim, toda a hipotética crueza do real
transposta para as páginas literárias começam a dar sinais de esgotamento. Contra
essa “estetização da violência”, a tendência ao memorialismo ou à autobiografia.
Na linhagem memorialista, encontramos Milton Hatoum, e na tendência à
literatura do “eu”, Cristovao Tezza, em o Filho eterno, Silviano Santiago, com
a autobiografia inventada de O falso mentiro, ou heranças, e Chico Buarque, em
o leite derramado, além de Miguel Sanches Neto, Chove sobre minha infância.
Silviano Santiago
Joca Reiners Terron
Daniel Galera
Milton
Hatoum, por exemplo, encontra-se na convergência entre um certo regionalismo
sem exageros folclóricos e o interesse no memorialismo centrado no clã dos
imigrantes árabes no Amazonas, dialogando com a obra de Raduan Nassar Salim
Miguel. A volta a um interesse mais explícito por gêneros narrativos mais
tradicionais, como, por exemplo, o romance memorialista e histórico,
explica-se, provavelmente, pelo esgotamento de um experimentalismo técnico e
formal. Podemos ver em Hatoum a vontade de construir uma boa narrativa, sem
abrir mão das estruturas complexas e de uma perspectiva que multiplica olhares
e vozes, enriquecendo as possibilidades de leitura. É o que pode ser percebido
em Dois irmãos, em que ficamos sabendo da identidade do narrador somente depois
das primeiras 40 páginas do romance. As elipses e incertezas sobre a
consistência da memória, bem como do mistério sobre a identidade do pai do
narrador, são relevadas pela natureza ambígua e fragmentária da narrativa de
Hatoum. Na ausência de certezas e garantias, a relação entre as personagens, é
estabelecida apenas pelo filtro da memória.
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