quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A arte em tempos de cólera


“Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando Baril (1996)

Nas últimas semanas, assistimos a um longo frisson causado pela exposição “Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, do Santander Cultural, de Porto Alegre. Depois de várias manifestações negativas que consideraram a mostra pornográfica, imoral e com apologias à pedofilia, a empresa promotora optou pelo fechamento da exposição. A curadoria lamentou e a decisão se manteve apesar do Ministério Público Federal, depois de analisar o conteúdo, recomendar a sua reabertura, defendendo a liberdade de expressão e entendendo que as obras apresentadas não faziam qualquer apologia ou incentivo à pedofilia. O fechamento acontece no mesmo período em que a arte, no Brasil, vem sofrendo uma repressão intensa que assinala cada vez mais um descompasso entre a realidade do moralmente aceitável, do “politicamente correto”, e o anarquicamente intolerável que a arte nos apresenta. Naturalmente, não levaríamos crianças para visitar essa exposição e o que nos inquieta não é a opinião daqueles que consideram a mostra uma afronta - já que a liberdade de opinião pressupõe justamente esse embate -, mas a forma como, muitas vezes, uma ação oficial, e por vezes jurídica, decide controlar o que pode ou não ser visto, produzindo a censura, essa velha conhecida. Tomemos como exemplo o quadro de uma exposição do Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande apreendido na mesma semana pela polícia, depois de três deputados registrarem um boletim de ocorrência, considerando que a obra agredia a “família, a moral e os bons costumes”. Um dia depois, uma peça teatral foi cancelada, por decisão judicial, em Jundiaí, (SP), ao recriar a história de Jesus como uma transexual. Desde a semana passada, o MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) vem sendo alvo de ataques pela performance “La Bête”, de Wagner Schwartz.
Depois de tomar conhecimento dos fatos acima narrados, lembrei-me das lúcidas e intensas reflexões sobre arte do professor e ensaísta Raúl Antelo. Em uma entrevista concedida para o VII ENAPOL (Encontro Americano de Psicanálise da Orientação Lacaniana), que aconteceu em São Paulo, em setembro de 2015, Antelo discorreu sobre o império das imagens no mundo contemporâneo, refletindo principalmente sobre o atual estado da arte. Creio que suas observações nos ajudam a pensar no fechamento da exposição como sintoma de um tempo no qual impera uma concepção de arte bastante rasa, moralizante e discutível. O que de certa forma sempre aconteceu em momentos específicos e obscuros de nossa história. 
Lembremos da maneira como críticos do século XVIII e XIX consideraram o barroco uma degeneração da arte clássica. Monteiro Lobato fulminou Anita Malfatti, na famigerada exposição de 1917, ao considerar sua arte anormal e teratológica, fruto de uma paranoia ou mistificação. Hitler mandou confiscar e destruir inúmeras obras de arte de vanguarda ao considerá-las degeneradas, e por aí vai. Preocupa-me o senso comum, a falta de disposição para uma discussão mais profunda e fundamentada sobre o conceito que se debate, o "achismo" com ares de certeza, a censura como forma de eliminação daquilo que nos perturba, o juízo de valor inquisitorial, apontando para o que seria arte e o que não seria arte.
Antelo nos lembra do caráter inoperante da arte, como forma de sabotagem aos sistemas, observando que Giorgio Agamben, a partir de Guy Debord - no bojo de uma sociedade do espetáculo entronizada, dominando nossas vidas -, propõe "uma lógica claramente anarquista", que é a lógica do "inoperar", que é o que faziam os primeiros anarquistas. Raúl lembra que eles lançavam um tamanco na polia da máquina para que o motor parasse: "Tamanco se diz 'sabot', daí a 'sabotagem'. Ou seja, uma das maneiras da fruição seria sabotar". Em oposição ao gozo administrado, previsto para todos na sociedade do espetáculo, a arte visa a provocar um curto-circuito: "Provavelmente o espectador vai receber uma carga de 220w e provavelmente sua reação será dizer que isso não é arte, ou que isto é um nojo, ou como permitem isso no museu?, na galeria?, na rua?, onde for. Mas justamente essa é a função, apresentar aquilo que o olhar não segura".
O quadro “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando Baril (1996), por exemplo, foi considerado ofensivo ao cristianismo. Nele, aparece a figura de Cristo com vários braços. Suas mãos carregam objetos da cultura ocidental. Imagino que ao invés de lermos nele o desrespeito a uma crença religiosa, poderíamos refletir sobre a forma como o capitalismo tem se devotado a transformar em objeto de culto - quase sagrado - seus bens de consumo.

A proposta da exposição parece ter cumprido parte de seu papel. Suas narrativas parecem afetar o corpo e perturbar, inquietando o olhar. Oscar Wilde escreveu que “a arte não é moral nem imoral, mas amoral”. O assunto ainda vai dar pano para manga. Espero que não se voltem contra os murais eróticos das ruínas de Pompeia ou contra a imagem de Adão nu, na Capela Sistina. Seria uma perda para a humanidade tapá-los ou destruí-los em nome dos bons costumes.

Publicado no jornal Caiçara, 
em União da Vitória, no dia 08/10/2017

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