“Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando Baril (1996)
Nas últimas
semanas, assistimos a um longo frisson causado pela exposição “Queermuseu:
Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, do Santander Cultural, de Porto
Alegre. Depois de várias manifestações negativas que consideraram a mostra
pornográfica, imoral e com apologias à pedofilia, a empresa promotora optou
pelo fechamento da exposição. A curadoria lamentou e a decisão se manteve
apesar do Ministério Público Federal, depois de analisar o conteúdo, recomendar
a sua reabertura, defendendo a liberdade de expressão e entendendo que as obras
apresentadas não faziam qualquer apologia ou incentivo à pedofilia. O
fechamento acontece no mesmo período em que a arte, no Brasil, vem sofrendo uma
repressão intensa que assinala cada vez mais um descompasso entre a realidade
do moralmente aceitável, do “politicamente correto”, e o anarquicamente intolerável
que a arte nos apresenta. Naturalmente, não levaríamos crianças para visitar
essa exposição e o que nos inquieta não é a opinião daqueles que consideram a
mostra uma afronta - já que a liberdade de opinião pressupõe justamente esse
embate -, mas a forma como, muitas vezes, uma ação oficial, e por vezes
jurídica, decide controlar o que pode ou não ser visto, produzindo a censura,
essa velha conhecida. Tomemos como exemplo o quadro de uma exposição do Museu
de Arte Contemporânea de Campo Grande apreendido na mesma semana pela polícia,
depois de três deputados registrarem um boletim de ocorrência, considerando que
a obra agredia a “família, a moral e os bons costumes”. Um dia depois, uma peça
teatral foi cancelada, por decisão judicial, em Jundiaí, (SP), ao recriar a
história de Jesus como uma transexual. Desde a semana passada, o MAM (Museu de
Arte Moderna de São Paulo) vem sendo alvo de ataques pela performance “La
Bête”, de Wagner Schwartz.
Depois de tomar
conhecimento dos fatos acima narrados, lembrei-me das lúcidas e intensas
reflexões sobre arte do professor e ensaísta Raúl Antelo. Em uma entrevista
concedida para o VII ENAPOL (Encontro Americano de Psicanálise da Orientação
Lacaniana), que aconteceu em São Paulo, em setembro de 2015, Antelo discorreu
sobre o império das imagens no mundo contemporâneo, refletindo principalmente
sobre o atual estado da arte. Creio que suas observações nos ajudam a pensar no
fechamento da exposição como sintoma de um tempo no qual impera uma concepção
de arte bastante rasa, moralizante e discutível. O que de certa forma sempre
aconteceu em momentos específicos e obscuros de nossa história.
Lembremos da
maneira como críticos do século XVIII e XIX consideraram o barroco uma
degeneração da arte clássica. Monteiro Lobato fulminou Anita Malfatti, na
famigerada exposição de 1917, ao considerar sua arte anormal e teratológica,
fruto de uma paranoia ou mistificação. Hitler mandou confiscar e destruir
inúmeras obras de arte de vanguarda ao considerá-las degeneradas, e por aí vai.
Preocupa-me o senso comum, a falta de disposição para uma discussão mais
profunda e fundamentada sobre o conceito que se debate, o "achismo"
com ares de certeza, a censura como forma de eliminação daquilo que nos
perturba, o juízo de valor inquisitorial, apontando para o que seria arte e o
que não seria arte.
Antelo nos lembra
do caráter inoperante da arte, como forma de sabotagem aos sistemas, observando
que Giorgio Agamben, a partir de Guy Debord - no bojo de uma sociedade do
espetáculo entronizada, dominando nossas vidas -, propõe "uma lógica
claramente anarquista", que é a lógica do "inoperar", que é o
que faziam os primeiros anarquistas. Raúl lembra que eles lançavam um tamanco
na polia da máquina para que o motor parasse: "Tamanco se diz 'sabot', daí
a 'sabotagem'. Ou seja, uma das maneiras da fruição seria sabotar". Em
oposição ao gozo administrado, previsto para todos na sociedade do espetáculo,
a arte visa a provocar um curto-circuito: "Provavelmente o espectador vai
receber uma carga de 220w e provavelmente sua reação será dizer que isso não é
arte, ou que isto é um nojo, ou como permitem isso no museu?, na galeria?, na
rua?, onde for. Mas justamente essa é a função, apresentar aquilo que o olhar
não segura".
O quadro
“Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, de Fernando Baril (1996), por exemplo,
foi considerado ofensivo ao cristianismo. Nele, aparece a figura de Cristo com
vários braços. Suas mãos carregam objetos da cultura ocidental. Imagino que ao
invés de lermos nele o desrespeito a uma crença religiosa, poderíamos refletir
sobre a forma como o capitalismo tem se devotado a transformar em objeto de
culto - quase sagrado - seus bens de consumo.
A proposta da
exposição parece ter cumprido parte de seu papel. Suas narrativas parecem
afetar o corpo e perturbar, inquietando o olhar. Oscar Wilde escreveu que “a
arte não é moral nem imoral, mas amoral”. O assunto ainda vai dar pano para
manga. Espero que não se voltem contra os murais eróticos das ruínas de Pompeia
ou contra a imagem de Adão nu, na Capela Sistina. Seria uma perda para a
humanidade tapá-los ou destruí-los em nome dos bons costumes.
Publicado no jornal Caiçara,
em União da Vitória, no dia 08/10/2017
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