Na terça-feira
(10), o curso de Letras da UNESPAR, campus
de União da Vitória, promoveu um encontro literário em homenagem à Clarice
Lispector, enfocando não só o aspecto filosófico e jornalístico de sua obra,
mas também musical, traço ainda pouco explorado na leitura de seus textos. O
evento, intitulado “Aqui jazz Clarice”, contou com uma mesa-redonda formada
pelas professoras Angela Farah e Renata Noyama, bem como com apresentações
musicais do grupo 6 Assis e participação de acadêmicos lendo fragmentos de
livros da escritora.
É perceptível a
prática de um diálogo profundo entre a escritura de Clarice Lispector e o
universo de outras artes, como a pintura, a escultura e a música. Em Paixão segundo G.H., publicado em 1964,
a narradora é uma escultora que se debate sobre questões existenciais,
imprimindo em suas páginas uma complexa e rica reflexão sobre a condição
humana. Em Água Viva, ficção que
Cazuza afirmava ser seu livro de cabeceira (ele confessou ter lido a obra mais
de uma centena de vezes), a narradora é uma pintora que troca pinceis e tintas
por palavras, deparando-se com a impossibilidade de substituir uma experiência
por outra. Em sua vã tentativa de captar o que ela chama de o “instante-já”, o
“é da coisa”, ou “it”, a narradora nos apresenta intensas páginas de uma magia
que está para além da literatura. Certa vez, Guimarães Rosa afirmou que lia
Clarice não para a literatura, mas para a vida. Sim, a obra de Clarice
ultrapassa o próprio conceito de literatura, situando-se como um corpo estranho
no modernismo brasileiro, e colocando-se no patamar da bruxaria. Aliás, nos
anos 70, a escritora chegou a participar de um congresso de bruxaria na cidade
de Bogotá, na Colômbia.
Magia, alquimia
ou bruxaria são palavras que talvez definam melhor o universo artístico de
Clarice. E tal experiência é impossível de ser interpretada objetivamente. Ao
longo dos anos, lendo com meus alunos e alunas a sua obra, assisto nas aulas
aos efeitos dos mais variados que vão desde o descaso de quem leu e não
“sentiu” até aqueles que revelam profundo encantamento, medo, paixão, e a
ativação ou transformação de sensibilidades. Fazendo parte daqueles escritores
de quem se diz “ame-o ou deixe-o”, Clarice me convida para a leitura em momentos
específicos da minha vida. Às vezes, fico meses sem ler uma linha sua sequer,
em outros, avidamente, procuro suas pegadas, suas palavras, ou por elas me
deixo encontrar. Eis o mistério da palavra poética. Ultimamente, ando de novo
encantado com essa ucraniana que se fez brasileira e que afirmou certa vez ter
feito da língua portuguesa “sua língua interior”. Tenho pensado muito na música
que se depreende de sua escritura, como tema ou ritmo, sugerindo que essa arte
também faz da parte da sua.
Em Perto do Coração Selvagem, o pensamento
é música se criando. Nele, Clarice escreveu: “A música era da categoria do
pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Da mesma qualidade do
pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se revelava.” A aproximação da
música à escrita ou ao pensamento é recorrente em sua obra. Numa das passagens
do já citado Água Viva, Clarice
compara a escrita automática de seu texto ao jazz, gênero musical pautado pelo
movimento e improvisação: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando.
Mas que mal tem isso? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria,
improviso diante da plateia”. Em Um sopro
de vida, escreveu, ou melhor, cantou: “Estou ouvindo música. (...) Meu
vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranoico. Escrevo muito
simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me
na fonte seca e na luz fria”.
Interpretar é
uma palavra bastante usada nas aulas de literatura, bem como no universo da
música e do teatro. Interpreta-se um texto, assim como interpreta-se uma peça
musical ou teatral. Não aprecio a palavra no sentido usado nas aulas. Textos
literários não foram escritos para serem interpretados, como quem “descobre o
que o autor quis dizer” ou como quem decifra um segredo para, então, ele deixar
de existir. O enigma sempre perdurará. A não ser que o leitor interprete o
texto como quem toca uma música à medida que lê, não para decifrar, mas apenas
para pôr em movimento seus sons, proliferando seus mistérios. Ler Clarice em
voz alta, aliás, é uma delícia. Desconfio que uma linda passagem do início de Água Viva nos ajude a (in)definir melhor
essa ideia: “Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo
inteiro”. Assim como a música, não se compreende Clarice, mas lendo-a e
ouvindo-a, sentimos sua escritura com nosso corpo inteiro.
Doutor em Teoria
Literária, professor da UNESPAR
publicado originalmente em O Caiçara,
de União da Vitória, no dia 21/10/2017
Um comentário:
Muito instigante essa forma de analisar a obra da Clarice. Veio de encontro ao meu projeto de vida (sem o mero exagero). Sou grato pelo compartilhamento desse texto. Mas gostaria de saber se você dispõe de material de referência teórica sobre essa relação entre Clarice Lispector e música, especificamente o Jazz. Agradeço já a atenção.
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