Texto dedicado a Daniel Link
e a todas as pessoas vitimadas pelo Contestado
Como
se escreve um desastre? Com tinta, silêncio ou sangue? Sob qual astro maligno
seu signo se inscreve? Se etimologicamente desastre significa a posição não
favorável dos astros (des-astre / sin-astro), preenchendo de azar um destino, como
pensá-lo, ou seja, situá-lo no pensamento, ou ainda, inscrevê-lo no corpo
desastrado do texto? Se admitirmos como desastrosa a própria escritura do
desastre, restaria, então, escrevê-la. Se como nos sugere Maurice Blanchot, não
nos é possível teorizar sobre o desastre, só podemos então, "evocá-lo
através de uma forma capaz de reproduzir seu ritmo de incoerências",
afirmando a soberania do acidental, bem como o domínio absoluto do azar.
Quando
eclodiu a Primeira Grande Guerra, em 1914, os Estados do Paraná e Santa
Catarina, no Brasil, assistiam à Guerra do Contestado, iniciada em 1912 e que
duraria até 1916, com um saldo de milhares de mortos. Ao contrário da Guerra de
Canudos, esta não contou com um narrador como Euclides da Cunha, que pudesse
analisar as contradições de seu combate,
legando à história o testemunho das querelas sangrentas do sertão sul brasileiro.
Nosso país olhava para a Europa. Mário de Andrade, por exemplo, em 1917,
inaugura sua produção literária com Há uma
gota de sangue em cada poema, um grito pacifista contra a Grande Guerra,
sem ao menos citar o Contestado. No entanto, as palavras finais de seu livro de
poemas talvez possam servir como preâmbulo para nossas reflexões desastradas:
"Este livro é teu, Saudade do lar; única fada que, espero, concitará os
homens ao mútuo perdão, fazendo das trincheiras e das arenas de batalha a mais
trágica das solidões" (2009, p. 61).
Na
Guerra do Contestado, os camponeses enfrentaram as forças militares dos poderes
Estadual e Federal. O conflito levou esse nome por envolver área de disputa
territorial entre os Estados do Paraná e Santa Catarina. As duas partes não
tinham uma posição quanto à divisa. A economia da região estava concentrada na
extração de madeira e no cultivo de erva-mate. A construção da estrada de ferro
que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul - cuja concessão havia sido
conferida à empresa norte-americana Southern Brazil Railway, dirigida por
Percival Farquart -, agravou a situação, tendo em vista que as terras situadas
a quinze quilômetros da ferrovia, tanto à direita quanto à esquerda, foram
cedidas pelo Governo à empresa com a finalidade de exploração de madeira e
loteamento. A Lumber and Colonization Company, na época a maior serraria da
América Latina, foi instalada na cidade de Três Barras, extraindo milhões de
pinheiros. Como resultado da desapropriação os camponeses perderam além de suas
terras, seu modo de ganhar a vida. A pobreza abriu as portas para movimentos
messiânicos. O beato José Maria, que defendia o retorno da Monarquia, começou a
pregar um mundo novo regido pelas leis de Deus, reunindo à sua volta milhares
de camponeses sem terra. As autoridades começaram a ficar preocupadas com o
movimento, que começava a ganhar ares de "Guerra Santa". Tratava-se,
então, de uma revolta não só contra a exploração, mas principalmente contra a
República. Policiais, militares e vacarianos começaram a ser enviados à região,
iniciando-se, dessa maneira, a maior guerra civil camponesa da história do
Brasil, talvez superior a Guerra de Canudos. A população cabocla, composta por
remanescentes da Revolução Farroupilha, da República Juliana, da Revolução
Federalista, da Guerra do Paraguai, de Quilombolas, de índios kaygangues e
imigrantes europeus, começou, então, a enfrentar as forças oficiais. O auge da Guerra se deu aproximadamente em julho de 1914, período do
estopim da Primeira Grande Guerra. Nesse momento, o movimento sertanejo se
encontrava plenamente configurado. Até então os "pelados", como eram
chamados os caboclos, vinham apenas se defendendo dos "peludos" -
soldados do governo. Agora, os "pelados" partiam para ataques
rebeldes, com o objetivo de criarem e/ou reforçarem seus redutos, vingando-se
do Governo e dos "coronéis capitalistas".
Se
a experiência da guerra, ou seu legado, é a morte, ou mesmo a impossibilidade
de experiência, o desastre é a (im)possibilidade de todo e qualquer ato de
linguagem, ou seja, é a ruína da palavra. Giorgio Agamben, por exemplo,
seguindo as pegadas de Walter Benjamin, encara a destruição da experiência como
uma destruição acabada, efetuada, ou seja converte a "queda"
diagnosticada por Benjamin em "ocorrência passada, em destruição sem
recurso" (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 121). Didi-Huberman, por sua vez,
observa que o que cai não desaparece, as imagens estão lá, "até mesmo para
fazer reaparecer ou transparecer algum resto, vestígio ou sobrevivência" (idem, p. 121). Ou seja, o que para
Agamben acaba, para Didi-Huberman está fadado a sobreviver como ruína ou como
lampejo de vaga-lume. O horizonte da morte da experiência dá lugar a
"ressurgências inesperadas desse declínio ao fundo das imagens que aí se
movem ainda, tal vaga-lumes ou astros isolados". O desastre de uma noite
clara mas sem estrelas - para usar uma expressão de Blanchot - dá lugar a uma constelação de restos. Nesse
sentido poderíamos pensar o desastre como passível de ser ainda pensado, mesmo
que a partir de ruínas, ou seja, fragmentos. A morte, nesse caso, se configura
como linguagem da ausência: "No movimento do desastre, não há começo e
fim, mas o acontecimento, o desenvolvimento de uma ruína permanente no corpo
estrutural da linguagem". Podemos pensar, nessa concepção, que a história que propomos escrever ou pensar sobre o Contestado se configura como uma espécie de Altas. Atlas, no sentido warburguiano, uma
máquina de produzir imagens a partir da justaposição de cacos, estilhaços de um
conflito. Arriscaríamos dizer que essa mesa de orientação, pautada pela
imaginação, nos convida a pensar a história de um ponto de vista não-fascista,
não estando distante de outras máquinas, como a da História do Cinema, de Godard, a das Passagens, de Walter Benjamin, ou mesmo a do projeto Mnemosyne, de Warburg. Máquinas nas
quais a imaginação não se nos apresenta como mera faculdade de desrealização,
mas como aquela faculdade divina, que segundo Baudelaire, aprende para além dos
métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas entre as coisas, as
correspondências e as analogias" (apud
DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 13). Por isso nada tem a ver com uma fantasia pessoal
ou gratuita, já que "concede-nos um conhecimento transversal, graças ao
seu poder intrínseco de montagem". Curiosamente, a Guerra do Contestado
ocorre no mesmo momento em que Warburg já está trabalhando em seu Atlas Mnemosyne, como uma resposta aos
"entrincheiramentos políticos dos nacionalismos culturais exacerbados com
a Grande Guerra" (idem, p. 171).
Aliás, na mesma época, Warburg, fascinado pela Guerra - no seu desejo de
utilizar a "memória, para que, no meio da destruição, fosse ainda possível
um desejo de pensar" (idem, p.
189) -, elabora o seu Fichário de Guerra
(Kriegskartothek), que reúne milhares de documentos sobre o conflito.
Poderíamos,
à título de ilustração, elaborar uma prancha - à maneira daquelas montadas por
Warburg, em seu Atlas Mnemosyne -,
com imagens que, porventura, nos ajudem a pensar a Guerra (Ver ilustração no início da postagem). Na primeira imagem teríamos a
reprodução da xilogravura intitulada "O profeta", que Emil Nolde
criou curiosamente em 1912, ano do estopim do Contestado e do assassinato do
Monge José Maria. Nas duas outras imagens novamente o Monge. Numa delas, a cena
do filme "Guerra dos Pelados", de Sylvio Back, no momento exato em
que o beato é assassinado. Na outra, a reprodução da pintura que até hoje é
cultuada por fiéis do sul do Brasil, que transformaram José Maria em Santo. A
associação entre as quatro imagens parece inscrever novos sentidos ao desastre.
Messianismo, Expressionismo, cinema e fotografia integram a máquina imagética
de fazer pensar que é o Império Caboclo.
Na sequência, uma fotografia que ilustra a rendição de caboclos. No primeiro
plano, vemos mulheres e crianças. Os sertanejos, nesse momento, já estavam
quase todos mortos. Um detalhe nos chama a atenção. Os rendidos estão prestes a
serem alimentados com um suculento churrasco. No entanto, não podemos esquecer,
como sugerem vários historiadores, que a cena é pavorosa, já que o costume dos
militares no Contestado, seguindo uma tradição desde a Guerra do Paraguai, era
degolar os rendidos depois de os terem alimentado. Não há imagem que registre
essa cena, ou melhor, o que se passou depois. Os olhos de uma das crianças, que
entendo serem o punctum da foto,
parecem intuir o desastre, materializando um olhar que talvez seja mais
chocante do que seu corpo morto ainda vivo. Sobreviventes da Guerra chegaram a
confessar terem presenciado mulheres mortas sendo estupradas. Não há foto que
registre cenas como essa. Resta-nos imaginar. O Soldado Morrendo (1924), de Otto Dix, poderia ser o desenho do
Coronel João Gualberto tombando no front. A xilogravura intitulada Memorial para Karl Liebknecht (1920), de
Käthe Kollwitz, poderia ser a representação das exéquias do monge José Maria,
em Irani. As ilustrações reforçam a potência expressionista do romance de
Schüller.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE,
M. de. Obra Imatura. Rio de Janeiro:
Agir, 2009.
BLANCHOT,
M. La escritura del desastre. Monte
Ávila Editores: Caracas, Venezuela, 1990.
DIDI-HUBERMAN,
G. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Idalgo Editora, 2006.
____.
Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta. KKYM;
Escola de Arquitetura, Universidade do Minho. Lisboa, 2013.
____.
Imágenes pese a todo. Memoria visual del
Holocausto. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2004.
____.
Sobrevivência dos Vaga-lumes. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.
LOPES,
E. et al. Quem é Donaldo. Disponível em . Acesso: em 01 mai. 2014.
ROSA,
J. G. Tutaméia (Terceiras Estórias). 6. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
SCHÜLER,
D. Império Caboclo. 3 ed. Florianópolis: Editora da UFSC; Porto Alegre:
Editora Movimento, 2005.
WEINHARDT,
M. Mesmos crimes, outros discursos? Curitiba: Ed. da UFPR, 2000.
Obs: O texto aqui publicado é parte de uma comunicação apresentada na UNTREF, Buenos Aires, em dezembro de 2014. No evento, em 2014, apresentei, além das reflexões postas acima, uma leitura do romance "Império Caboclo", de Donaldo Schüler, romance experimental que tem me chamado a atenção há alguns anos e sobre o qual já escrevi anteriormente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário