quinta-feira, 31 de março de 2016

Atlas Mnemosyne da Guerra do Contestado: 100 anos




Texto dedicado a Daniel Link 
e a todas as pessoas vitimadas pelo Contestado

Como se escreve um desastre? Com tinta, silêncio ou sangue? Sob qual astro maligno seu signo se inscreve? Se etimologicamente desastre significa a posição não favorável dos astros (des-astre / sin-astro), preenchendo de azar um destino, como pensá-lo, ou seja, situá-lo no pensamento, ou ainda, inscrevê-lo no corpo desastrado do texto? Se admitirmos como desastrosa a própria escritura do desastre, restaria, então, escrevê-la. Se como nos sugere Maurice Blanchot, não nos é possível teorizar sobre o desastre, só podemos então, "evocá-lo através de uma forma capaz de reproduzir seu ritmo de incoerências", afirmando a soberania do acidental, bem como o domínio absoluto do azar.
Quando eclodiu a Primeira Grande Guerra, em 1914, os Estados do Paraná e Santa Catarina, no Brasil, assistiam à Guerra do Contestado, iniciada em 1912 e que duraria até 1916, com um saldo de milhares de mortos. Ao contrário da Guerra de Canudos, esta não contou com um narrador como Euclides da Cunha, que pudesse analisar  as contradições de seu combate, legando à história o testemunho das querelas sangrentas do sertão sul brasileiro. Nosso país olhava para a Europa. Mário de Andrade, por exemplo, em 1917, inaugura sua produção literária com Há uma gota de sangue em cada poema, um grito pacifista contra a Grande Guerra, sem ao menos citar o Contestado. No entanto, as palavras finais de seu livro de poemas talvez possam servir como preâmbulo para nossas reflexões desastradas: "Este livro é teu, Saudade do lar; única fada que, espero, concitará os homens ao mútuo perdão, fazendo das trincheiras e das arenas de batalha a mais trágica das solidões" (2009, p. 61).
Na Guerra do Contestado, os camponeses enfrentaram as forças militares dos poderes Estadual e Federal. O conflito levou esse nome por envolver área de disputa territorial entre os Estados do Paraná e Santa Catarina. As duas partes não tinham uma posição quanto à divisa. A economia da região estava concentrada na extração de madeira e no cultivo de erva-mate. A construção da estrada de ferro que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul - cuja concessão havia sido conferida à empresa norte-americana Southern Brazil Railway, dirigida por Percival Farquart -, agravou a situação, tendo em vista que as terras situadas a quinze quilômetros da ferrovia, tanto à direita quanto à esquerda, foram cedidas pelo Governo à empresa com a finalidade de exploração de madeira e loteamento. A Lumber and Colonization Company, na época a maior serraria da América Latina, foi instalada na cidade de Três Barras, extraindo milhões de pinheiros. Como resultado da desapropriação os camponeses perderam além de suas terras, seu modo de ganhar a vida. A pobreza abriu as portas para movimentos messiânicos. O beato José Maria, que defendia o retorno da Monarquia, começou a pregar um mundo novo regido pelas leis de Deus, reunindo à sua volta milhares de camponeses sem terra. As autoridades começaram a ficar preocupadas com o movimento, que começava a ganhar ares de "Guerra Santa". Tratava-se, então, de uma revolta não só contra a exploração, mas principalmente contra a República. Policiais, militares e vacarianos começaram a ser enviados à região, iniciando-se, dessa maneira, a maior guerra civil camponesa da história do Brasil, talvez superior a Guerra de Canudos. A população cabocla, composta por remanescentes da Revolução Farroupilha, da República Juliana, da Revolução Federalista, da Guerra do Paraguai, de Quilombolas, de índios kaygangues e imigrantes europeus, começou, então, a enfrentar as forças oficiais. O auge da Guerra se deu aproximadamente em julho de 1914, período do estopim da Primeira Grande Guerra. Nesse momento, o movimento sertanejo se encontrava plenamente configurado. Até então os "pelados", como eram chamados os caboclos, vinham apenas se defendendo dos "peludos" - soldados do governo. Agora, os "pelados" partiam para ataques rebeldes, com o objetivo de criarem e/ou reforçarem seus redutos, vingando-se do Governo e dos "coronéis capitalistas".


Se a experiência da guerra, ou seu legado, é a morte, ou mesmo a impossibilidade de experiência, o desastre é a (im)possibilidade de todo e qualquer ato de linguagem, ou seja, é a ruína da palavra. Giorgio Agamben, por exemplo, seguindo as pegadas de Walter Benjamin, encara a destruição da experiência como uma destruição acabada, efetuada, ou seja converte a "queda" diagnosticada por Benjamin em "ocorrência passada, em destruição sem recurso" (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 121). Didi-Huberman, por sua vez, observa que o que cai não desaparece, as imagens estão lá, "até mesmo para fazer reaparecer ou transparecer algum resto, vestígio ou sobrevivência" (idem, p. 121). Ou seja, o que para Agamben acaba, para Didi-Huberman está fadado a sobreviver como ruína ou como lampejo de vaga-lume. O horizonte da morte da experiência dá lugar a "ressurgências inesperadas desse declínio ao fundo das imagens que aí se movem ainda, tal vaga-lumes ou astros isolados". O desastre de uma noite clara mas sem estrelas - para usar uma expressão de Blanchot -  dá lugar a uma constelação de restos. Nesse sentido poderíamos pensar o desastre como passível de ser ainda pensado, mesmo que a partir de ruínas, ou seja, fragmentos. A morte, nesse caso, se configura como linguagem da ausência: "No movimento do desastre, não há começo e fim, mas o acontecimento, o desenvolvimento de uma ruína permanente no corpo estrutural da linguagem". Podemos pensar, nessa concepção, que a história que propomos escrever ou pensar sobre o Contestado se configura como uma espécie de Altas. Atlas, no sentido warburguiano, uma máquina de produzir imagens a partir da justaposição de cacos, estilhaços de um conflito. Arriscaríamos dizer que essa mesa de orientação, pautada pela imaginação, nos convida a pensar a história de um ponto de vista não-fascista, não estando distante de outras máquinas, como a da História do Cinema, de Godard, a das Passagens, de Walter Benjamin, ou mesmo a do projeto Mnemosyne, de Warburg. Máquinas nas quais a imaginação não se nos apresenta como mera faculdade de desrealização, mas como aquela faculdade divina, que segundo Baudelaire, aprende para além dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas entre as coisas, as correspondências e as analogias" (apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 13). Por isso nada tem a ver com uma fantasia pessoal ou gratuita, já que "concede-nos um conhecimento transversal, graças ao seu poder intrínseco de montagem". Curiosamente, a Guerra do Contestado ocorre no mesmo momento em que Warburg já está trabalhando em seu Atlas Mnemosyne, como uma resposta aos "entrincheiramentos políticos dos nacionalismos culturais exacerbados com a Grande Guerra" (idem, p. 171). Aliás, na mesma época, Warburg, fascinado pela Guerra - no seu desejo de utilizar a "memória, para que, no meio da destruição, fosse ainda possível um desejo de pensar" (idem, p. 189) -, elabora o seu Fichário de Guerra (Kriegskartothek), que reúne milhares de documentos sobre o conflito.
Poderíamos, à título de ilustração, elaborar uma prancha - à maneira daquelas montadas por Warburg, em seu Atlas Mnemosyne -, com imagens que, porventura, nos ajudem a pensar a Guerra (Ver ilustração no início da postagem). Na primeira imagem teríamos a reprodução da xilogravura intitulada "O profeta", que Emil Nolde criou curiosamente em 1912, ano do estopim do Contestado e do assassinato do Monge José Maria. Nas duas outras imagens novamente o Monge. Numa delas, a cena do filme "Guerra dos Pelados", de Sylvio Back, no momento exato em que o beato é assassinado. Na outra, a reprodução da pintura que até hoje é cultuada por fiéis do sul do Brasil, que transformaram José Maria em Santo. A associação entre as quatro imagens parece inscrever novos sentidos ao desastre. Messianismo, Expressionismo, cinema e fotografia integram a máquina imagética de fazer pensar que é o Império Caboclo. Na sequência, uma fotografia que ilustra a rendição de caboclos. No primeiro plano, vemos mulheres e crianças. Os sertanejos, nesse momento, já estavam quase todos mortos. Um detalhe nos chama a atenção. Os rendidos estão prestes a serem alimentados com um suculento churrasco. No entanto, não podemos esquecer, como sugerem vários historiadores, que a cena é pavorosa, já que o costume dos militares no Contestado, seguindo uma tradição desde a Guerra do Paraguai, era degolar os rendidos depois de os terem alimentado. Não há imagem que registre essa cena, ou melhor, o que se passou depois. Os olhos de uma das crianças, que entendo serem o punctum da foto, parecem intuir o desastre, materializando um olhar que talvez seja mais chocante do que seu corpo morto ainda vivo. Sobreviventes da Guerra chegaram a confessar terem presenciado mulheres mortas sendo estupradas. Não há foto que registre cenas como essa. Resta-nos imaginar. O Soldado Morrendo (1924), de Otto Dix, poderia ser o desenho do Coronel João Gualberto tombando no front. A xilogravura intitulada Memorial para Karl Liebknecht (1920), de Käthe Kollwitz, poderia ser a representação das exéquias do monge José Maria, em Irani. As ilustrações reforçam a potência expressionista do romance de Schüller.








Para finalizar, gostaria de esclarecer o motivo de ter voltado o olhar para a Guerra do Contestado em uma Jornada destinada a pensar a Primeira Grande Guerra, em seu centenário. Não apenas pelo fato de os dois conflitos ocorrerem no mesmo período, mas também porque o desastre "sempre tem lugar depois de ter lugar" (1990, p. 31), para usar uma expressão de Blanchot. Ou seja, não tem o fim ou limite. Não faria sentido dizer que a Primeira Grande Guerra seria mais desastrosa do que o Contestado, assim como não faria sentido dizer - como a idiota imprensa Brasileira - que a nossa ditadura militar deveria se chamar "ditabranda", ao contrário da ditadura argentina, pelo fato de as estatísticas apontarem um número maior de mortos em solo argentino. E em tempos de eleição no Brasil soa abjeta a posição daqueles que têm defendido, contra o governo do PT, o retorno da ditadura militar. Essa fala é no mínimo desastrosa e desastrada. Lembremos que a linguagem, bem como o pensamento, entra em crise no desastre. E este está fadado a sobreviver em suas ruínas, no rumor que continua murmurando no fragmentário. A região do Contestado, cindida por novos limites, ainda hoje é considerada o berço da pobreza no Sul do Brasil. Os descendentes dos caboclos ainda sentem, cem anos depois, o impacto social desencadeado pelo conflito e redesenhado pela história. No documentário Restos Mortais, o cineasta Sylvio Back levou médiuns para as terras do conflito, com a intenção de ouvir dos espíritos, ou seja, dos sertanejos desencarnados, nos médiuns incorporados, palavras sobre a Guerra. Muitos deles deixaram registrados na película que essa Guerra não acabou. O fato inusitado de entrevistar espíritos - para quem acredita neles, independente de crenças religiosas -, inscreve um novo sentido ao conceito de testemunho, já que neste caso aquele que viveu o verdadeiro horror, voltou para contar. Sim, a Guerra ainda não terminou. Que este texto seja uma singela homenagem a esses fantasmas que ainda não terminaram de escrever, de viver, ou seja, escreviver, o seu desastre. 



REFERÊNCIAS:

ANDRADE, M. de. Obra Imatura. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
BLANCHOT, M. La escritura del desastre. Monte Ávila Editores: Caracas, Venezuela, 1990.
DIDI-HUBERMAN, G. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Idalgo Editora, 2006.
____. Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta. KKYM; Escola de Arquitetura, Universidade do Minho. Lisboa, 2013.
____. Imágenes pese a todo. Memoria visual del Holocausto. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2004.
____. Sobrevivência dos Vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
LOPES, E. et al. Quem é Donaldo. Disponível em . Acesso: em 01 mai. 2014.
ROSA, J. G. Tutaméia (Terceiras Estórias). 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
SCHÜLER, D. Império Caboclo. 3 ed.  Florianópolis: Editora da UFSC; Porto Alegre: Editora Movimento, 2005.

WEINHARDT, M. Mesmos crimes, outros discursos? Curitiba: Ed. da UFPR, 2000.

Obs: O texto aqui publicado é parte de uma comunicação apresentada na UNTREF, Buenos Aires, em dezembro de 2014. No evento, em 2014, apresentei, além das reflexões postas acima, uma leitura do romance "Império Caboclo", de Donaldo Schüler, romance experimental que tem me chamado a atenção há alguns anos e sobre o qual já escrevi anteriormente.

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