Eu descobri a
Clarice muito tarde. Não sei dizer se isso foi bom ou ruim. Prefiro pensar que
foi ela que me descobriu muito tarde. Ou muito cedo. Quem saberá? Creio que, na maior parte das vezes,
são os livros que nos procuram. Clarice dizia que são os livros que nos
escrevem. De maneira que eu me consolo pensando que talvez as coisas aconteçam quando
devem acontecer, nunca cedo ou tarde demais. No Ensino Médio, eu lera Kafka,
Hemingway, Umberto Eco, Mário de Andrade, mas não Clarice. Quando me deparei
com ela já estava na faculdade. E a primeira coisa que pensei foi: “Pode um ser
humano escrever assim? Isso é humano?”.
Hoje, arrisco uma resposta: “Não, isso
não é humano”. Não que Clarice não seja humana, pelo contrário, é demasiado
humana, para usar uma terminologia nietzscheana. A sua escritura é inumana. Com
isso não quero dizer que seja desumana. Aquilo que é inumano pode ser entendido
como aquilo que ainda não é humano, ou aquilo que está além do humano (mas não
no sentido transcendental). De maneira que poderíamos aproximar os seus textos
da magia, da bruxaria. Aliás, Clarice em 1975, participou do I Congresso
Mundial de Bruxaria, realizado em Bogotá, na Colômbia. No encontro, ela se
sentiu um pouco indisposta, então, não falou, mas um texto seu foi lido no
evento, “O ovo e a galinha”. Um conto que ela considerava um dos seus
prediletos, justamente por não entendê-lo muito bem. Interessante essa questão.
A fascinação por aquilo que não se entende. Uma vez, eu estava fazendo uma
pesquisa na Fundação Cultural de Curitiba, no acervo do poeta Paulo Leminski, e
encontrei no meio dos seus papéis, uma anotação, dessas que ele escrevia e
colava na geladeira. O rabisco dizia: “Só estou interessado naquelas coisas que
não consigo entender”. Acho que a frase poderia muito bem ser escrita pela
Clarice. Ela sempre se interessou muito por aquelas coisas que não entendia.
Aquelas coisas que ultrapassavam a conhecimento humano. Em relação à Clarice,
não consigo separar a autora da obra – todas as teorias que afirmam ser o
escritor um mentiroso se deterioram diante de seus textos – que sempre me
pareceu uma bruxa, no bom sentido. Deve haver algum elo que junte essas duas
coisas.
Certa vez, o jornalista José Castello perguntou a ela por que escrevia.
Clarice respondeu com uma pergunta: “Por que você bebe água?” Ele respondeu: “Porque
tenho sede”. E ela: “Você toma água para não morrer”. Na minha opinião, Clarice
escrevia para não morrer. A reconstituição do interessante encontro entre os
dois pode ser encontrada no livro Inventário
das Sombras, editado pela Record. Nesse texto, Castello lembra um encontro
com o escritor Otto Lara Resende, em que ele falou para o jovem jornalista ter cuidado
ao ler Clarice, pois não se trata de literatura e sim de bruxaria. Poderíamos
encontrar três bruxos na literatura brasileira. Se Drummond era o bruxo do
Cosme Velho, e Guimarães, o bruxo de Codisburgo, a Clarice era uma bruxa
ucraniana que veio pelo Brasil. Numa outra passagem do mesmo texto, José
Castelo lembra que certa vez encontrou a Clarice na rua, em frente a uma
vitrine. Ele se aproximou e percebeu que ela observava manequins nus. É que
Clarice tinha obsessão pelo vazio. Escreve para chegar ao silêncio, e este me
parece ser um projeto radical. Sem contar que muitas vezes não sei dizer se os
seus textos se tratam de prosa ou poesia. Esse é um dos grandes problemas pra
quem estuda poesia, pois qual é a essência que faz com que um texto seja
considerado prosa ou poesia? Talvez fosse interessante relermos os Formalistas
Russos.
Enfim, voltando
a minha primeira leitura de Clarice, eu nunca tinha lido nada parecido. Desde
então, depois da leitura de “A hora da estrela”, a literatura para mim nunca
mais foi a mesma. Eu acho que estudamos aquilo que
desejamos ou aquilo que tememos. Eu confesso que desejo e temo ao mesmo tempo a
escritura de Clarice. Ao mesmo tempo que encanta, apavora.
Quase nunca escrevi nada sobre Clarice e quando fui movido a esta escrita a primeira coisa que pensei foi na
impossibilidade de falar qualquer coisa sobre a sua literatura sem mergulhar no
íntimo de sua escritura. Nesse sentido, acredito que deveríamos ler de “dentro”
a sua obra, como fizeram vários de seus “seguidores”, e não de fora, como faria
um analista com pretensões metódicas e científicas. A questão me faz pensar no
próprio papel que a crítica exerce, ou pelo menos deveria exercer. Mais do que
decifrar uma obra ou explicar, talvez fosse mais interessante partir da
premissa que essa seria uma aposta de antemão perdida. Eu não sei o que significa
a barata de A paixão segundo GH. Eu
não sei o que é Macabéa, eu não sei o que é o ovo, a galinha de Laços de Família, eu não sei o que
significa uma Felicidade Clandestina.
Mas desconfio que todas essas coisas, todos esses objetos não identificados são
tão interessantes justamente por desterritorializar certezas, nos colocando num
lugar incômodo e ao mesmo tempo tão revelador.
Quando disse que
deveríamos ler de “dentro” a obra de Clarice, quis dizer que me parece
impossível falar sobre ela sem levar em conta que se trata de um texto
escritível e de gozo, “só podendo se falar de dentro dele”, como diria Roland
Barthes. Assim, uma leitura – que não deixa de ser também uma espécie muito
especial de escrita – deveria tomar a consciência que não há uma ruptura entre
a crítica e a própria literatura. Essa foi uma das grandes lições que
aprendemos com os românticos alemães, ou Agamben mais recentemente. A crítica, mais do que julgar, deveria
partir do pressuposto de que talvez já não faça mais sentido para o crítico
apenas julgar uma obra como se fosse um juiz do tribunal da Santa Inquisição. O
que dizer dos textos críticos que Jorge Luis Borges escreveu, é literatura ou
crítica? Acho que não precisamos responder. Castello define muito bem essas
questões: “Só os que entram em harmonia com a escrita de Clarice, os que
conseguem oscilar como ela entre a palavra e o susto, podem seguir adiante”.
Então, ao partir
dessas questões levantadas gostaria de observar que se o texto de Clarice é um
texto “escritível”, no sentido que Barthes pensou a noção de “escritível”, isso
significa que ao ler o texto dessa escritora ucraniana radicada no Brasil,
somos convidados, ou melhor, convocados, a escrever junto com ela tal texto.
Clarice, certa vez escreveu em uma crônica que pode ser encontrada em A descoberta do mundo: “O personagem
leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente
individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que
na verdade ele, o leitor, é o escritor”.
Essa seria também uma função da crítica, ao se
deparar com o texto. Que sentido teria dizer que A Hora da Estrela é um livro ruim, ou que Macabéa seria um símbolo
da nordestina ignorante que vai morar na cidade grande? Não seria Macabéa uma
alegoria daquilo que em nós não é humano – o inumano? Não seria a representação
personificada da barata de GH, ou mesmo a barata de Kafka, ambas baratas que
estão além ou aquém do que é humano? Falo isso apenas para apontar a armadilha
que poderia vir a ser uma leitura interpretativa de seus textos.
Isso é tão forte para mim que prefiro até
trocar a palavra interpretação (muitas vezes ligada ainda a uma certa tradição
do significado pleno, transcendental), pela palavra Intervenção, muito mais
interessada naquelas coisas que muitas vezes um texto não diz, ou mesmo
naquelas que só começam a fazer sentido quando lemos. Vou dar um exemplo.
Quando li As tentações de Santo Antão,
de Flaubert, achei uma livro interessante, aquele desfile de monstros, o
anacoreta a meditar e a se deparar com o demônio que é o próprio texto, etc e
tal, e ponto – ponto final. Depois, descobri um prefácio (ou posfácio) que o Foucault
escreveu para a obra – um texto que vocês podem encontrar na coleção Ditos e Escritos (III). Pois bem, li o texto de Foucault e só nele descobri a maravilha que
é As Tentações de Santo Antão.
Foucault não explicou a obra, mas me parece que fez algo muito mais
interessante do que isso. Ele reinventou o livro de Flaubert. Isso significa
que um texto crítico, ou uma fala sobre uma obra, como essa aqui, tem um poder muito maior do que parece. Ele pode interferir na
própria obra. E para mim deve ter “sabor”, como a própria literatura. Aquele
sabor que Barthes procurava na sua Aula inaugural. Esse é o poder que vocês,
como leitores, professores ou pesquisadores da literatura, têm. Um poder que muitas vezes
passa despercebido – um poder, no bom sentido, tão forte quanto o poder do
próprio autor, um "dom". Somos mais importantes no mundo da literatura do que pensamos. Então,
eu gostaria que a minha fala fosse mais um depoimento, de alguém que é
apaixonado pelos textos de Clarice, e não necessariamente um artigo, uma escrita que seja busca principalmente do sabor da literatura e não apenas do saber
que ela poderia comunicar.
Um dos textos
mais curiosos que li da Clarice foi o Água
Viva, o texto que escolhi para a fala de hoje. Um texto que ela começa a
trabalhar em 1970 e que só seria publicado em 1973. Em 1970, ela intitula esse
texto como Atrás do pensamento: monólogo
com a vida. O livro posteriormente seria chamado de Objeto Pulsante e por fim, receberia o título Água Viva. Penso que esses três títulos nos dizem muito sobre o
texto – um texto que já não podemos chamar de conto, novela, ou romance. As
tipologias parecem não dar conta do objeto. Clarice caracterizaria o texto como
ficção, um texto que ultrapassava as classificações convencionais da narrativa
literária, nas palavras de Clarice. O texto tinha aproximadamente 280 páginas.
Mas Clarice não estava satisfeita com o resultado final. Em 1972, ela volta a
trabalhar no texto e elimina as alusões à própria biografia, o que faz com que
o texto sofra significativa diminuição. Uma diminuição apenas de tamanho,
porque a meu ver ela mantém a complexidade do objeto. Uma das amigas que lê o
texto é Nélida Piñon, participando com sugestões. Ainda insegura quanto ao
livro, Clarice busca um amigo, Carlos Scliar, famoso pintor para que pintasse
um retrato seu.
O retrato pode, de certa forma, nos ajudar a ler o livro. Até
porque a narradora se diz pintora, uma pintora que descobre a possibilidade de
pintar a própria escritura – substituindo uma linguagem por outra. No quadro,
Clarice aparece apenas com traços e a idéia de “traço” nos ajuda a pensar sua
obra. Em Água Viva, a escritora se
rarefaz, se apaga na medida em que escreve. Em 1973, recebe uma carta de
Alberto Dines sobre o livro: “Você venceu o enredo (...) A gente vai
encontrando a todo instante situações-pensamento. (...) É menos um livro-carta
e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia”.
Enfim, algumas
coisas que eu gostaria de pensar:
·
Que
tipo de experiência está em jogo na escrita de Clarice no livro Água Viva, experiência que, por sinal,
não está dissociada da escritura de Clarice em outros textos?
·
A
que outras forças essa força de Água Viva
está interligada? Falo em força e não em forma porque esse livro – Água Viva – parece que está muita além
de qualquer ideia de forma. É mais do que isso.
É uma força que
não se define, como uma forma pode ser definida. Nesse sentido, a literatura de
Clarice se coloca muito além das pretensões modernistas. Ela é um corpo
estranho no modernismo, como em qualquer outro movimento. Assim penso também a
literatura de Guimarães Rosa. Impossível situá-los no contexto de uma vanguarda,
porque as vanguardas morrem e a literatura de Lispector e Rosa não. Dois
bruxos.
Mas o meu
objetivo principal, procurando delimitar um pouco melhor essa questão é ler o Água Viva a partir da ideia do Neutro,
tal como Roland Barthes procura desenvolver num curso de literatura no Collège de France, entre 1977 e 1978.
Num curso intitulado O neutro, o
teórico francês procurou analisar várias figuras a parir dessa noção,
principalmente na literatura. Foi o segundo curso que ele ministrou na
instituição. As aulas aconteciam todos os sábados e antes de dar as aulas
Barthes anotava apontamentos sobre o que falaria aos seus alunos. Depois de sua
morte, uma trágica morte - Barthes tinha sido atropelado por uma caminhonete de
uma lavanderia depois de almoçar com François Miterrand -, as anotações foram
reunidas e publicadas. No Brasil, em 2003, foi publicada uma versão desse
curso. Quando eu li Água Viva, eu
imaginei na hora que se tratava de uma coisa (talvez seja a melhor definição do
livro), de uma coisa à procura do neutro.
Mas o que Barthes nos diz a respeito do neutro?: “Defino o Neutro como
aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o
paradigma. (...). Paradigma é o quê? É a oposição de dois termos virtuais dos
quais atualizo um, para falar, para produzir sentido”:
“Neutro: tempo do ainda
não, momento
em que na indiferenciação original, começam a
desenhar-se, tom sobre tom, as primeiras diferenças: madrugada; espaço
daltônico (o daltônico não consegue opor vermelho e verde, mas distingue áreas
de luminosidade, intensidade diferente)” (BARTHES, 2003, p. 108).
Ovo ainda não
eclodido: antes do sentido, ou seja, tríptico fechado de Bosch, do Jardim de Delícias
Vamos pensar que
toda a cultura ocidental está baseada nessa lógica do binarismo. Feio-bonito;
certo-errado; bom-mal. O objetivo do neutro seria burlar essa lógica. O
paradigma seria este esquema. O neutro seria a tentativa de remover esse
paradigma. Mesmo a ideia na linguística saussureana, de que há um
significante-significado. Se só conseguimos explicar uma palavra por meio de
outras palavras isso significa que um significante só nos leva a outro
significante e assim ad infinitum. O
mundo é a própria linguagem. O desejo do neutro é em primeiro lugar suspensão
das ordens, leis, arrogâncias, terrorismos, intimações. Interessante perceber que uma guerra dos EUA,
por exemplo, contra o terrorismo se dá justamente pela crença de um
significado, a luta entre o bem e o mal. A procura do silêncio, transformar a
linguagem em balbucio, é um desejo de neutro em Clarice. Vale lembrar que aquilo
que está fora do campo da racionalidade, para Barthes, pode ser considerado
como um elemento do neutro. Em Paixão
segundo GH, muitas vezes, Clarice afirma ser homem e mulher ao mesmo tempo.
É uma forma de romper com esses binarismos. O neutro é combinação dos sexos.
Em Água Viva, os pensamentos de Clarice
parecem não ter palavras. Daí a recorrência da expressão “Atrás do pensamento”,
que também é recorrente em Paixão segundo
GH: “Será que isto que estou te escrevendo é atrás do pensamento?
Raciocínio é que não é. Quem for capaz de parar de raciocinar – o que é
terrivelmente difícil – que me acompanhe”. A frase já serve para mostrar a
dificuldade de falar ou escrever sobre Água
Viva, já que qualquer explicação racional estaria fadada, como já falei no
início, fadada ao fracasso. Pois Água
Viva estaria atrás do pensamento, podendo denunciar o fim do próprio
pensamento. É claro que o fim do pensamento desencadearia o fim da própria
escritura. Daí a angústia da narradora. Como traduzir em palavras esse tipo de
sensação? Há um texto muito interessante do filósofo italiano Giorgio Agamben,
que por sinal foi aluno de Heidegger, intitulado O fim do pensamento. O jogo linguístico explorado por Clarice
poderia ser lido como uma busca pela in-fans, algo que segundo Agamben, estaria
antes da linguagem, mas que só poderia ser encontrado por meio da linguagem.
Acho que isso cabe muito bem em Clarice. A busca pela in-fans. Em A paixão segundo GH, Clarice beira a
ontologia, uma metafísica, cuja finalidade é desvelar o ser, como diria Olga de
Sá sobre a autora. Desvelar o ser contra a linguagem (fazendo linguagem), A
barata seria uma espécie de fonte do ser – uma fonte que Clarice busca por meio
da linguagem. A Água Viva não seria a
personificação exata dessa fonte? Uma “coisa cristalina”, como diria o cantor e
compositor Wando. Aí, aparece uma Clarice ao mesmo tempo filósofa e mística,
por mais que essa associação possa parecer paradoxal, pois o neutro estaria
também além da própria filosofia, já estaria na mística. Nesse sentido,
poderíamos dizer que a intuição é mais importante que o entendimento.
Uma vez,
na escola, eu deveria ter uns 6 ou 7 anos, a professora levou um microscópio na
sala de aula e colocou um piolho para que todo mundo pudesse observar. Eu olhei
aquele bichinho pelo aparelho e não vi nenhum piolho ali. Eu vi um monstro.
Aquele piolhinho tinha se transformado num monstro horrível. Eu fico imaginando
um cientista que pega o texto de Clarice e coloca no microscópio. Ele vê uma
coisa ali que não é mais a Clarice. Eu acho que o excesso de teorização pode
alterar aquele texto que estamos vendo. Talvez por isso a Clarice tenha falado
várias vezes que a intuição e o sentimento seriam mais importantes que o
próprio entendimento. Tem algo ali que não se explica. Posso fazer uma análise
estrutural da narrativa, uma análise linguística, mas sempre tem algo ali que
nos escapa, algo que é da ordem do imprevisto, do susto. Ouso dizer: “Largas
todos os ismos, ficar só com os sustos”. Se a Clarice se sentia insegura diante
do mundo, o que diremos nós diante dos textos de Clarice? Seguros é que não
estamos. Mas isso não significa que a sua obra seja hermética. Ela pode ser
complexa, mas hermética ela não é.
Numa entrevista, Clarice contou que um
professor universitário a procurou para contar que tinha lido A paixão segundo GH várias vezes, e não
tinha entendido. E que uma adolescente a procurou para contar que entendia o
texto, e que era seu livro de cabeceira. O que pensar diante disso? Pensem
sobre isso. Eu, particularmente, acho que não há segredos na obra de Clarice.
Caio Ricardo Bona Moreira
Fragmentos com os quais me propus a dialogar:
“Sinto que não
humano é uma
grande realidade, e que isso não significa desumano, pelo contrário: o não
humano é o centro irradiante de um amor neutro em ondas hertzianas”
(LISPECTOR, 1968, p.
207).
“(...) só realizaria o meu destino especificamente
humano se me entregasse,
como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano”
(LISPECTOR, 1968, p. 216).
Fragmento da Carta de Alberto Dines para a Clarice Lispector sobre o Água Viva:
“Você venceu o enredo
(...) A gente vai encontrando a todo instante situações-pensamento. (...) É
menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma
sinfonia”
(DINES apud GOTLIB, 2004, p.
33).
“Sei o que estou fazendo aqui: estou
improvisando. Mas que mal tem isso? Improviso como no jazz improvisam música,
jazz em fúria, improviso diante da platéia”
(LISPECTOR, 1980, p. 23).
“E não adiantaria
explicar porque a explicação exige uma outra explicação que exigiria uma outra
explicação e que se abriria de novo para o mistério”
(LISPECTOR, 1980, p.
31).
José Castello sobre Clarice:
“Perseguia o neutro,
isto é, aquilo que escapa toda identidade e, portanto, a toda filiação. O que é
autônomo e inalcançável, que é selvagem e que, ainda assim, nos rejeita. Em vez
e falar de si, Clarice falava do real, essa esfera da vida que sempre nos
escapa”
(CASTELLO, 2007, p.
47).
“Mas esses dias de
alto verão de danação sopram-me a necessidade de renúncia. Renuncio a ter um
significado, e então o doce e doloroso quebranto me toma”
(LISPECTOR, 1980, p.
26).
Ouve apenas
superficialmente o que digo e da falta de sentido nascerá um sentido como de
mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve”
(LISPECTOR, 1980, p.
25).
“E esta é uma festa
de palavras. Escrevo em signos que são
mais um gesto que voz”
(LIESPECTOR, 1980, p.
24).
“Não tenho palavras
para exprimir, e falo então em neutro”
(LISPECTOR, 1968, p.
192).
Início de Água Viva:
“É com uma alegria
tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, que se funde com o mais
escuro uivo humano da dor de separação mas é o grito de felicidade diabólica.
Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já
estudei matemática que é a loucura do raciocínio – mas agora quero o plasma –
quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda
de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é
feito por mim? Ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma
desenvoltura de toureiro na arena. Eu te digo: estou tentando captar a quarta
dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um
novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela
é. Quero apossar-me do é da coisa.”
(LISPECTOR, 1980, p.
9)
“Tente entender o que
pinto e o que escrevo agora. Vou explicar: na pintura como na escritura procuro
ver estritamente no momento em que vejo – e não ver através da memória de ter
visto num instante passado. O instante é este. O instante é de uma iminência
que me tira o fôlego. O instante é em si mesmo iminente. Ao mesmo tempo em que
eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante”
(LISPECTOR, 1980, p.
77).
“Quero escrever-te
como quem aprende. Fotografo cada instante”
(LISPECTOR, 1980, p.
14).
“E se digo “eu” é
porque não ouso dizer “tu”, ou nós ou “uma pessoa”
(LISPECTOR, 1980, p.
13).
“Estou num estado
muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de
não poder pintá-lo ou escrevê-lo.”
“Quero pôr em
palavras mas sem descrição a existência da gruta que faz algum tempo pintei – e
não sei como”
(LISPECTOR, 1980, p.
15).
“A harmonia secreta
da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz.
Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio”
(LISPECTOR, 1980, p.
12).
“Estou me fazendo. Eu
me faço até chegar ao caroço”
(LISPECTOR, 1980, p.
41).
“Amor neutro. O
neutro soprava. Eu estava atingindo o que havia procurado a vida toda: aquilo
que é a identidade mais última e que eu havia chamado de inexpressivo”
(LISPECTOR, 1968, p.
159).
“Esse murmúrio, sem
nenhum sentido humano, seria a minha identidade tocando na identidade das
coisas. Sei que, em relação ao humano, essa prece neutra seria uma
monstruosidade. Mas em relação ao que é Deus, seria: ser”
(LISPECTOR, 1968, p.
161).
Referências:
AGAMBEN, G. Infância e História: Destruição da
experiência e origem da história. Belo horizonte:
UFMG, 2005.
BARTHES, R. O
neutro. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
CASTELLO, J. Inventário
das sombras. Rio
de Janeiro: Record, 1999.
____. Laços literários. In: Entrelivros. São Paulo: Segmento
e Ediouro, 2007. (46-50).
____. Literatura na
poltrona. Rio de Janeiro: Record, 2007.
GOTLIB, N. B. A
descoberta do mundo. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo:Instituto
Moreira Salles, 2004.
LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984.
____.
Água Viva.
5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
____. A
paixão segundo GH. 2
ed. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1968.
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