domingo, 6 de março de 2016

Canibais... interculturais


CENA 1 - Lembro aqui de uma imagem, ou melhor, de um quadro, que hoje se encontra no MALBA, Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires. O quadro está a poucos passos da obra de Frida Kahlo, intitulada Autorretrato con chango y loro (1942), e de painéis de Antonio Berni, como La gran tentación o La gran ilusión (1962), ou Manifestación (1934). Trata-se de O Abaporu, de Tarsila do Amaral, diante do qual, em certa tarde, permaneci durante minutos, sem pressa, a mirá-lo como que imaginando o autor de Memórias Sentimentais de João Miramar em sua casa há quase 100 anos a fazer o mesmo. Em uma entrevista para o jornal Estado de Minas (13/05/1928) Oswald de Andrade confessou que o termo Antropofagia, em sua obra, teria sido possivelmente inspirado nesse quadro, que lhe fora ofertado pela esposa no período  como presente de aniversário em 1928, ano do famoso Manifesto Antropófago. Não à toa, Tarsila o reproduziu em bico de pena para ilustrar o primeiro número da revista de Antropofagia. Os pés grandes do grande comedor de gente, que ilustra o quadro, destoam do tamanho de sua cabeça, pequena, possivelmente numa alusão a uma "desobediência cultural", para usar uma expressão do cubano Raúl Fornet-Betancourt, brilhante fomentador da filosofia cultural (pela qual comecei a me interessar depois de participar de uma banca examinadora, cujo objeto de pesquisa era este). A proximidade da personagem do quadro, pode-se pensar, é com a sua terra e não com a tradição europeia ou com a racionalidade do colonizador. Ou melhor, há uma relação com a cultura do "colonizador", mas ela é uma relação tensa e fértil ao mesmo tempo. Tarsila, efetivando a subversão da proporcionalidade clássica da pintura realista numa possível alusão à valorização da cultura primitiva, ou seja ao universo telúrico, do homem com os pés no chão, produziu uma obra vanguardista que hoje nos ajuda a pensar a filosofia intercultural em um possível e protéico diálogo com o pensamento de Oswald de Andrade.


CENA 2 - O viajante e escritor Pero Magalhaes de Gandavo, do séc. XVI, que tanto inspirou Oswald de Andrade, principalmente no livro Poesia Pau Brasil, de 1925,  em seu Tratado da Terra do Brasil, depois de descrever rituais de canibalismo, lembra que entre os indígenas brasileiros, os tapuias, na prática da antropofagia, possuíam um costume mais espantoso:

"Também há uns certos índios junto do rio do Maranhão da banda do Oriente, em altura de dous graus pouco mais ou menos, que se chamam tapuias, os quais dizem que são da mesma nação destes aimorés ou pelo menos irmãos em armas, porque ainda que se encontrem, não ofendem uns a outros. Esses tapuias não comem a carne de nenhuns contrários, antes são inimigos capitais daqueles que a costumam comer, e os perseguem com mortal ódio. Porém pelo contrário têm outro rito muito mais feio e diabólico, contra a natureza, e digno de maior espanto. E é que quando algum chega a estar doente de maneira que se desconfia de sua vida, seu pai, ou mãe, irmãos ou irmãs, ou quaisquer outros parentes mais chegados o acabem de matar com suas próprias mãos, havendo que usam assim com ele de mais piedade, que consentirem que a morte o esteja senhoreando e consumindo por termos tão vagarosos."  



Penso que esta passagem de Gandavo expõe uma faceta pouco comentada da antropofagia dos indígenas brasileiros. Aqui, o canibalismo não é vingança, como se fazia comumente com os inimigos, mas sim homenagem. O sentido da prática inverte-se e se por um lado ela continua sendo abjeta, por outro perde o caráter negativo do aniquilamento do outro, já que o que interessa aqui é assimilar o ser amado ou que se respeita e admira, tê-lo em suas entranhas. Penso que é nesse sentido que devemos pensar a metáfora da Antropofagia de Oswald de Andrade. Segundo Bina Friedman Maltz, há que se cuidar para não cair na interpretação ligeira de pensar a Antropofagia de Oswald como sinônimo do festival canibalista em que se matava e comia o inimigo por gula ou vingança, o que reduziria o ato à simples destruição, quando ele deve ser pensado de forma dialética: "Destruir para construir em cima. Deglutir para, de posse do instrumental do inimigo, poder combatê-lo e superá-lo. Deglutir o velho saber, transformando-o em matéria-prima do novo" (1993). Portanto, ao mesmo tempo, Oswald recusou, incorporou e questionou a cultura e os modelos e repertórios literários dominantes, "revisando-os e assimilando-os criticamente à realidade cultural brasileira" (1993, p. 11). Nesse sentido, o movimento seria construtivista, e não niilista, ou bélico, como muitos dos movimentos de vanguarda europeus do mesmo período. 


CENA 3 - CENA 3 - Não podemos desconsiderar a presença da América Latina na fomentação de projeto filosófico e (inter)cultural que está fortemente marcado na literatura brasileira. Vale lembrar que Macunaíma, de Mário de Andrade - só para citar um exemplo -  considerada por Oswald de Andrade como uma obra que materializou com presteza seus ideais antropofágicos, insere-se no universo da interculturalidade. Aliás, a personagem Macunaíma foi colhido de um dos mitos indígenas na Venezuela.
Vale lembrar que a consciência do herói transcende a ideia de nação, situando-se numa perspectiva pós-nacionalista, para usar um termo de Décio Pignatari. É a consciência de um latino-americano a do personagem. O próprio livro nos indica essa perspectiva. Antes de ir para a cidade grande, recuperar a Muiraquitã, que lhe fora ofertada por Ci, mãe do mato, Macunaíma passa no Rio Negro para deixar sua consciência. Quando volta para a sua terra, a personagem não mais encontra a consciência. Então, o herói pega a consciência de um hispano-americano, “botou na cabeça e se deu bem da mesma forma”. A busca macunaímica por um caráter nacional e uma definição espiritual e civilizatória confunde-se, assim, com a dos próprios países da América Latina.
O escritor e crítico José Lezama Lima, que assim como Fornet-Betancourt era cubano, em uma das passagens de sua magnânima obra A Expressão Americana, diferencia o logos hegeliano do logos poético. Hegel vê a história como um processo que conduz ao desenvolvimento. O logos poético, ao contrário, vê a história como um conjunto de imagens. Essa é uma concepção que transforma o “ser” em “imago”. Essa perspectiva pretende desenvolver uma visão histórica, porém, não historicista. Uma visão histórica da forma como uma grande paisagem. A paisagem não seria outra senão a própria cultura, que surge quando o espírito é revelado pela natureza. A história, então, é concebida como uma profusão de imagens. Se tudo é imagem, como o sujeito pode aspirar à verdade? A questão é fundamental para Lezama. Todo discurso histórico, pela impossibilidade de reconstituir a verdade, é uma ficção, uma exposição poética.


Num exercício lúdico com a linguagem, Lezama defende o barroco latino americano como arte da contraconquista, diferente do barroco europeu, definido tradicionalmente como arte da contra-reforma. Usando exemplos de artistas latino-americanos, mestiços por excelência, como o Aleijadinho e o Índio Kondori, que esculpiu a igreja de San Lorenzo de Potosí, Lezama Lima observa que ao produzir uma síntese (e por que não dizer aqui a prática de uma interculturalidade?) entre a cultura do colonizador, por meio dos códigos do barroco, e a cultura do colonizado, com seu espírito indígena ou africano, o artista latino-americano teria forjado uma arte genial capaz de produzir uma espécie de contraconquista, ou seja um gesto de resistência, ou ainda sintoma de uma arte em que o colonizado colonizaria o colonizador por meio da arte. Ou seja, o barroco americano seria político na estética por excelência. 



Há uma política pleiteada pelo barroco para um modo americano de ser, de pensar, ou de criar, por meio da apropriação do outro, mescla e síntese, ou seja uma Antropofagia. Portanto, para usar uma expressão de Irlemar Chiampi, poderíamos pensar em Aleijadinho como precursor da Antropofagia oswaldiana, ao apropriar-se das características do barroco europeu, em suas esculturas religiosas, sincretizando por exemplo a feição dos santos com a feição do mestiço, mostrando, assim, ao colonizador que o latino-americano seria tão ou mais capaz que o europeu para produzir arte.  O esforço do movimento americano seria o de encontrar uma forma unitiva que, ao mesmo tempo, valorizasse a estética barroca e imprimisse na obra a arte da contra-conquista. As catedrais, por exemplo, figurariam traços europeus e pré-colombianos. Um dos exemplos apontados em La Expresión Americana é exatamente o da arquitetura:

En la portada de San Lorenzo, de Potosí, en medio de los angelotes larvales, de las colgantes hojas de piedra, de las llaves que como galeras navegan por la piedra labrada, aparece, suntuosa, hierática, una princesa incaica, con todos sus atributos de poderío y desdén (Lezama LIMA, 1993a, p. 83).

 Penso que esses gestos poderiam nos ajudar a pensar a filosofia da interculturalidade tal como a pequisadora aborda no trabalho, porque tal filosofia propõe a descolonização de nossa compreensão da filosofia. Como essa filosofia não estaria distante da arte não seria difícil pensarmos na antropofagia de Oswald como uma ética/estética da deglutição em busca também de uma descolonização. Tocam-se as duas culturas. Se por um lado a filosofia veio para nossas terras junto com a dominação, poderíamos pensar que por outro, hoje, a filosofia pensada como intercultural, poderia servir contra a dominação em prol da liberdade e autonomia nos sujeitos. Que seja bem-vinda essa filosofia do porvir, gestada também com a arte da poesia.
Em uma das passagens do belo trabalho "A devoração intercultural: o encontro da filosofia intercultural com a filosofia antropofágica", de Vanessa Aparecida Petters, cuja banca participei, ela escreve: "A inspiração antropofágica na filosofia se efetivaria quando o filosofo antropofágico retirasse do autor lido o que lhe interessasse para elaborar seus próprios pensamentos, desfigurá-lo e encaixá-lo em outro contexto, desvirtuar suas ideias em favor de outras causas,convertendo seu interesse, portanto, em alteridade". Espero ter seguido as palavras da pesquisadora, ao devorar e jantar seu texto.

Obs: Certa vez, visitando a Igreja de São Francisco, em  Salvador, cuja beleza barroca me comoveu, entre os santos católicos e elementos culturais do barroco europeu, encontrei talhados  índios, ciganas, bem como máscaras africanas. Penso que estes elementos inseridos pelos escravos e outros trabalhadores da obra são mais importantes do que parecem do jogo da contraconquista proposta por Lezama Lima ou também da filosofia da interculturalidade de Fornet-Betancourt.



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