CENA 1 - Lembro aqui de uma imagem, ou melhor, de um
quadro, que hoje se encontra no MALBA, Museo de Arte Latinoamericano de Buenos
Aires. O quadro está a poucos passos da obra de Frida Kahlo, intitulada Autorretrato con chango y loro (1942), e
de painéis de Antonio Berni, como La gran
tentación o La gran ilusión (1962), ou Manifestación
(1934). Trata-se de O Abaporu, de
Tarsila do Amaral, diante do qual, em certa tarde, permaneci durante minutos,
sem pressa, a mirá-lo como que imaginando o autor de Memórias Sentimentais de
João Miramar em sua casa há quase 100 anos a fazer o mesmo. Em uma entrevista
para o jornal Estado de Minas (13/05/1928) Oswald de Andrade confessou que o
termo Antropofagia, em sua obra, teria sido possivelmente inspirado nesse
quadro, que lhe fora ofertado pela esposa no período como presente de aniversário em 1928, ano do
famoso Manifesto Antropófago. Não à
toa, Tarsila o reproduziu em bico de pena para ilustrar o primeiro número da
revista de Antropofagia. Os pés grandes do grande comedor de gente, que ilustra
o quadro, destoam do tamanho de sua cabeça, pequena, possivelmente numa alusão
a uma "desobediência cultural", para usar uma expressão do cubano Raúl Fornet-Betancourt, brilhante fomentador da filosofia cultural (pela qual comecei a me interessar depois de participar de uma banca examinadora, cujo objeto de pesquisa era este). A proximidade da personagem do quadro, pode-se
pensar, é com a sua terra e não com a tradição europeia ou com a racionalidade
do colonizador. Ou melhor, há uma relação com a cultura do "colonizador", mas ela é uma relação tensa e fértil ao mesmo tempo. Tarsila, efetivando a subversão da proporcionalidade clássica da
pintura realista numa possível alusão à valorização da cultura primitiva, ou
seja ao universo telúrico, do homem com os pés no chão, produziu uma obra
vanguardista que hoje nos ajuda a pensar a filosofia intercultural em um
possível e protéico diálogo com o pensamento de Oswald de Andrade.
CENA 2 - O
viajante e escritor Pero Magalhaes de Gandavo, do séc. XVI, que tanto inspirou
Oswald de Andrade, principalmente no livro Poesia Pau Brasil, de 1925, em seu Tratado
da Terra do Brasil, depois de descrever rituais de canibalismo, lembra que
entre os indígenas brasileiros, os tapuias, na prática da antropofagia,
possuíam um costume mais espantoso:
"Também
há uns certos índios junto do rio do Maranhão da banda do Oriente, em altura de
dous graus pouco mais ou menos, que se chamam tapuias, os quais dizem que são
da mesma nação destes aimorés ou pelo menos irmãos em armas, porque ainda que
se encontrem, não ofendem uns a outros. Esses tapuias não comem a carne de
nenhuns contrários, antes são inimigos capitais daqueles que a costumam comer,
e os perseguem com mortal ódio. Porém pelo contrário têm outro rito muito mais
feio e diabólico, contra a natureza, e digno de maior espanto. E é que quando
algum chega a estar doente de maneira que se desconfia de sua vida, seu pai, ou
mãe, irmãos ou irmãs, ou quaisquer outros parentes mais chegados o acabem de
matar com suas próprias mãos, havendo que usam assim com ele de mais piedade,
que consentirem que a morte o esteja senhoreando e consumindo por termos tão
vagarosos."
Penso
que esta passagem de Gandavo expõe uma faceta pouco comentada da antropofagia
dos indígenas brasileiros. Aqui, o canibalismo não é vingança, como se fazia
comumente com os inimigos, mas sim homenagem. O sentido da prática inverte-se e
se por um lado ela continua sendo abjeta, por outro perde o caráter negativo do
aniquilamento do outro, já que o que interessa aqui é assimilar o ser amado ou
que se respeita e admira, tê-lo em suas entranhas. Penso que é nesse sentido
que devemos pensar a metáfora da Antropofagia de Oswald de Andrade. Segundo
Bina Friedman Maltz, há que se cuidar para não cair na interpretação ligeira de
pensar a Antropofagia de Oswald como sinônimo do festival canibalista em que se
matava e comia o inimigo por gula ou vingança, o que reduziria o ato à simples
destruição, quando ele deve ser pensado de forma dialética: "Destruir para
construir em cima. Deglutir para, de posse do instrumental do inimigo, poder
combatê-lo e superá-lo. Deglutir o velho saber, transformando-o em
matéria-prima do novo" (1993). Portanto, ao mesmo tempo, Oswald
recusou, incorporou e questionou a cultura e os modelos e repertórios
literários dominantes, "revisando-os e assimilando-os criticamente à
realidade cultural brasileira" (1993, p. 11). Nesse sentido, o movimento
seria construtivista, e não niilista, ou bélico, como muitos dos movimentos de
vanguarda europeus do mesmo período.
CENA 3 - CENA
3 - Não podemos desconsiderar a presença da América Latina na fomentação de projeto
filosófico e (inter)cultural que está fortemente marcado na literatura brasileira. Vale lembrar que Macunaíma, de Mário de Andrade - só para citar um exemplo - considerada por Oswald de Andrade
como uma obra que materializou com presteza seus ideais antropofágicos,
insere-se no universo da interculturalidade. Aliás, a personagem Macunaíma foi
colhido de um dos mitos indígenas na Venezuela.
Vale
lembrar que a consciência do herói transcende a ideia de nação, situando-se
numa perspectiva pós-nacionalista, para usar um termo de Décio Pignatari. É a
consciência de um latino-americano a do personagem. O próprio livro nos indica
essa perspectiva. Antes de ir para a cidade grande, recuperar a Muiraquitã, que
lhe fora ofertada por Ci, mãe do mato, Macunaíma passa no Rio Negro para deixar
sua consciência. Quando volta para a sua terra, a personagem não mais encontra
a consciência. Então, o herói pega a consciência de um hispano-americano,
“botou na cabeça e se deu bem da mesma forma”. A busca macunaímica por um
caráter nacional e uma definição espiritual e civilizatória confunde-se, assim,
com a dos próprios países da América Latina.
O
escritor e crítico José Lezama Lima, que assim como Fornet-Betancourt era
cubano, em uma das passagens de sua magnânima obra A Expressão Americana, diferencia o logos hegeliano do logos
poético. Hegel vê a história como um processo que conduz ao desenvolvimento. O
logos poético, ao contrário, vê a história como um conjunto de imagens. Essa é
uma concepção que transforma o “ser” em “imago”. Essa perspectiva pretende
desenvolver uma visão histórica, porém, não historicista. Uma visão histórica
da forma como uma grande paisagem. A paisagem não seria outra senão a própria
cultura, que surge quando o espírito é revelado pela natureza. A história,
então, é concebida como uma profusão de imagens. Se tudo é imagem, como o
sujeito pode aspirar à verdade? A questão é fundamental para Lezama. Todo
discurso histórico, pela impossibilidade de reconstituir a verdade, é uma
ficção, uma exposição poética.
Num
exercício lúdico com a linguagem, Lezama defende o barroco latino americano
como arte da contraconquista, diferente do barroco europeu, definido
tradicionalmente como arte da contra-reforma. Usando exemplos de artistas
latino-americanos, mestiços por excelência, como o Aleijadinho e o Índio
Kondori, que esculpiu a igreja de San Lorenzo de Potosí, Lezama Lima observa
que ao produzir uma síntese (e por que não dizer aqui a prática de uma
interculturalidade?) entre a cultura do colonizador, por meio dos códigos do
barroco, e a cultura do colonizado, com seu espírito indígena ou africano, o
artista latino-americano teria forjado uma arte genial capaz de produzir uma
espécie de contraconquista, ou seja um gesto de resistência, ou ainda sintoma
de uma arte em que o colonizado colonizaria o colonizador por meio da arte. Ou
seja, o barroco americano seria político na estética por excelência.
Há uma
política pleiteada pelo barroco para um modo americano de ser, de pensar, ou de
criar, por meio da apropriação do outro, mescla e síntese, ou seja uma
Antropofagia. Portanto, para usar uma expressão de Irlemar Chiampi, poderíamos
pensar em Aleijadinho como precursor da Antropofagia oswaldiana, ao
apropriar-se das características do barroco europeu, em suas esculturas
religiosas, sincretizando por exemplo a feição dos santos com a feição do
mestiço, mostrando, assim, ao colonizador que o latino-americano seria tão ou
mais capaz que o europeu para produzir arte.
O esforço do movimento americano seria o de encontrar uma forma unitiva que,
ao mesmo tempo, valorizasse a estética barroca e imprimisse na obra a arte da
contra-conquista. As catedrais, por exemplo, figurariam traços europeus e
pré-colombianos. Um dos exemplos apontados em La Expresión Americana é exatamente o da arquitetura:
En la portada de San Lorenzo, de Potosí, en medio de
los angelotes larvales, de las colgantes hojas de piedra, de las llaves que
como galeras navegan por la piedra labrada, aparece, suntuosa, hierática, una
princesa incaica, con todos sus atributos de poderío y desdén (Lezama LIMA,
1993a, p. 83).
Penso que esses gestos poderiam nos ajudar a
pensar a filosofia da interculturalidade tal como a pequisadora aborda no
trabalho, porque tal filosofia propõe a descolonização de nossa compreensão da
filosofia. Como essa filosofia não estaria distante da arte não seria difícil
pensarmos na antropofagia de Oswald como uma ética/estética da deglutição em
busca também de uma descolonização. Tocam-se as duas culturas. Se por um lado a
filosofia veio para nossas terras junto com a dominação, poderíamos pensar que
por outro, hoje, a filosofia pensada como intercultural, poderia servir contra
a dominação em prol da liberdade e autonomia nos sujeitos. Que seja bem-vinda
essa filosofia do porvir, gestada também com a arte da poesia.
Em
uma das passagens do belo trabalho "A devoração intercultural: o encontro da filosofia intercultural com a filosofia antropofágica", de Vanessa Aparecida Petters, cuja banca participei, ela escreve: "A inspiração
antropofágica na filosofia se efetivaria quando o filosofo antropofágico
retirasse do autor lido o que lhe interessasse para elaborar seus próprios pensamentos,
desfigurá-lo e encaixá-lo em outro contexto, desvirtuar suas ideias em favor de
outras causas,convertendo seu interesse, portanto, em alteridade". Espero
ter seguido as palavras da pesquisadora, ao devorar e jantar seu texto.
Obs: Certa vez, visitando a Igreja de São Francisco, em Salvador, cuja beleza barroca me comoveu, entre os santos católicos e elementos culturais do barroco europeu, encontrei talhados índios, ciganas, bem como máscaras africanas. Penso que estes elementos inseridos pelos escravos e outros trabalhadores da obra são mais importantes do que parecem do jogo da contraconquista proposta por Lezama Lima ou também da filosofia da interculturalidade de Fornet-Betancourt.
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