Um
dos primeiros poetas brasileiros que escreveu sobre o negro foi o baiano
Gregório de Mattos, considerado por José Veríssimo, de uma forma pouco
carinhosa, como um "malcriado rabugento". O Gregório é uma figura curiosa. Apesar
de louvar a beleza da negra e da mulata, nutria uma particular ojeriza por
negros e mulatos, os quais chamava de "cães". Isso no século XVII.
No mesmo século, o Padre Vieira - que era
português, mas passou boa parte da vida no Brasil -, dedica-se incansavelmente a
defender os índios, os judeus e os negros, mas, por questões estratégicas,
questões políticas também, defende a escravidão. Ele sabia da importância da
escravidão no processo de consolidação da economia portuguesa. Ele vê o negro
como uma figura valorosa, mas destinada por Deus ao serviço dos outros. E ele,
como é comum nos seus sermões, fundamenta sua posição com passagens
bíblicas. No Sermão Décimo Quarto, que é
um sermão que ele pregou para escravos e senhores, ele defende que os negros
são filhos de Maria e de Deus, e deveriam aceitar a vida que lhes era imposta
não como desterro, cativeiro e desgraça, mas como milagre, já que o fato de
serem trazidos para o Brasil era uma forma de se tornarem cristãos abandonando
a vida “sem cultura” e “sem religião”, entenda-se, aqui, sem uma religião
cristã, o que para o Padre Vieira representava a perdição. Sob o ponto de vista
dele, Infelizes seriam aqueles que permaneciam na África, adorando falsos
deuses e sem a possibilidade da salvação. Vieira compara o sofrimento dos
escravos aos de Cristo, na santa Cruz, como se isso justificasse o seus
sofrimentos. E chega a observar que os negros deveriam ser felizes e
agradecidos aos donos que lhes propiciavam a possibilidade de alcançar a vida
eterna. Eu não quero aqui diminuir a obra daquele que considero um dos maiores
prosadores da literatura brasileira, o imperador da língua portuguesa como
diria Fernando Pessoa. Quero apenas apontar para o fato de um discurso da época
ser materializado nesse sermão. Um discurso que, fundamentado na religião da
época, ao mesmo tempo que humanizava o negro, intentava legitimar a escravidão.
Ainda no século XVII, encontramos a pintura intitulada "Mulher Negra", de Albert
Eckhout, um holandês que veio para o Brasil com a frota de Nassau, nas Invasões
holandesas. O quadro é um dos primeiros documentos etnográficos da
sobrevivência dos valores africanos por meio da imponência corporal e das
vestimentas. É um retrato um tanto quanto ficcional, mas que já constrói um
lugar social hierarquicamente inferior para a mulher negra ao configurar sua
imagem dividida entre o animal e a coisa, como uma espécie de objeto inclusive sexual
para o homem branco.
No
século XIX, encontramos uma litografia do alemão Johann Moritz Rugendas, que
veio para o Brasil em 1821, com a Expedição do barão Langsdorff, ou seja,
alguns anos depois de Debret que veio na Missão Artística Francesa, em 1916. O
quadro, intitulado “Mercado de negros” apresenta com uma luz branda uma cena do
cotidiano da escravidão: humanos tratados como coisas, exibidos e postos à venda
como mercadorias. Apesar de ter como pano de fundo uma bela paisagem, a cena é
triste. No segundo plano vemos uma igreja católica e a natureza. No primeiro
plano, vemos um comerciante e um freguês, provavelmente discutindo um negócio.
Aparecem vários cativos. Em torno do fogo se reúnem mulheres, alguns homens
estão sentados sobre esteiras, um trio de pé conversa com uma vendedora negra,
outro fica observando a paisagem, debruçado na mureta. Mas o que me chama a
atenção nesse quadro é um pequeno detalhe, que faz toda a diferença. Há um
negro na extrema esquerda que está desenhando sobre a parede, um pouco alheio
ao que se passa no ambiente. Outros estão observando. Perceberam? A cena pode
ser inverossímil, mas é altamente informativa. O Rugendas parece sugerir a
preservação da humanidade em meio a uma situação hostil, além de revelar a
cultura artística como uma prática entre os negros escravizados. Ou seja,
durante a escravidão, quando a expressão dos negros era restrita, um escravo se
vale das artes como meio de autorrepresentação. O quadro é analisado pelo
Roberto Conduru no livro "Arte Afro-Brasileira".
Há
um quadro que aprecio bastante, de 1895, do pintor Modesto Brocos, intitulado
“A redenção de Cã”. Apesar de ser um quadro bastante realista, criado com base
nos moldes acadêmicos do final do século XIX, é alegórico. Nele vemos uma avó
que agradece a Deus pelo progressivo branqueamento da sua família. Esse tipo de
representação está intimamente ligado com preconceito racial do final do século
e o desejo de purificação da raça. Ou seja, está muito próximo das correntes
cientificistas da época que, como bem analisou a Lilia M. Schwarcz, no livro
Espetáculo das Raças, criou um paradigma que era defendido por médicos,
intelectuais, escritores, cientistas, de que o negro era inferior e que a
mestiçagem era um fator de degeneração das raças e por extensão da própria
nação. Um paradigma que vai ser problematizado por Gilberto Freire em Casa
Grande & Senzala, que, assim como o cubano José Vasconcellos, via na
mestiçagem um fator positivo e não negativo para a nação. Na Europa, já sabemos
o resultado desse pensamento racial purista: Medidas biopolíticas: Campo de
Concentração!
Na literatura brasileira do final do século XIX e início do século XX é
muito comum encontrarmos esse paradigma cientificista, que produz um racismo
exacerbado, ou que pelo menos o representa: Canaã, de Graça Aranha, O mulato,
do Aluísio Azevedo, O Bom Crioulo, do Adolfo Caminha, que aliás é o primeiro
romance homossexual da nossa literatura. O Monteiro Lobato, para vocês terem
uma ideia, chegou a defender em uma carta dirigida ao seu amigo Godofredo
Rangel, que o Brasil só seria uma nação bem desenvolvida quando possuísse uma
Ku Klux Klan. São várias as cartas em que ele se refere de forma pejorativa aos
negros. Na sua prosa também. O fato vem rendendo uma discussão nacional, se
algumas de seus textos devem ser retirados de livros didáticos, o que acho lamentável,
porque ele escrevem numa sociedade cujo paradigma científico era extremamente
violento em relação aos negros. Sem contar o fato de que apresentar esses
textos aos nossos alunos é uma forma de discutir a questão também. Mas o
Governo tomou uma posição que acho importante que é a de não censurar os
textos, mas de contextualizá-los, propiciando assim a discussão. Há um livro
interessantíssimo do Monteiro Lobato, intitulado “O presidente negro”, que ele
publica em 1926. No livro, ele prevê a eleição de um presidente negro nos
Estados Unidos para 2256. A profecia se fez bem antes do previsto, mas é
importante lembrar que o escritor vê nessa eleição algo muito negativo para a
nação norte-americana, justamente porque se tratava de um negro.
Enfim, analisássemos com mais atenção, encontraríamos muitas obras que poderiam ser chamadas de racistas. Mas o discurso do racismo, apesar de ser dominante - porque esteve ligado à classe dominante, ao longo de nossa história -, não é o único. Nem tudo assim é
escuridão, como diria a poeta Hilda Hilst. Há também o discurso oposto, produzido pelos negros, que afirma a sua dignidade, talento e capacidade. Não seria fortuito lembrar que dois dos
nossos maiores escritores do final do século XIX são afro-descendentes: Na
prosa, Machado de Assis; na poesia, Cruz e Sousa. O que já basta para desconstruir
o paradigma cientificista da época. Há um inconformado, chamado Lima Barreto,
que em Clara dos Anjos, expõe de forma visceral o problema do preconceito
enfrentado pelos negros, encerrando o romance de maneira bastante pessimista.
Há
a obra de Aleijadinho, que ao misturar o barroco europeu com a expressão da
negritude, produziu aquilo que o escritor cubano José Lezama Lima chamou de
arte da contra-conquista. Para Lezama, o nosso barroco não era a arte da
contra-reforma, mas sim a arte da contra-conquista: o mestiço, pela capacidade
de assimilar a cultura do colonizador, mesclando-a com a sua, daria uma
resposta não só estética, mas política ao europeu, provando que é tão capaz
quanto ele de produzir arte. Nesse sentido poderíamos chamar a arte de
Aleijadinho de pré-antropofágica, pensando em Oswald de Andrade.
O que o
Aleijadinho fez no Brasil ao esculpir anjos barrocos com a feição do mestiço, o Índio Kondori, fez na portada da Igreja de San Lorenzo de Potosí, na Bolívia,
ao mesclar os anjos europeus com figuras da mitologia inca. Esse gesto parece
ser mais radical do que aquele que vemos no cubismo de Picasso, em que podemos
perceber a sobrevivência da cultura africana por meio das máscaras e
esculturas. Por exemplo no quadro: Les
demoiselles d'Avignon.
Para finalizar
gostaria de lembrar de mais dois exemplos. Primeiro, o mais recente romance
de Chico Buarque, Leite Derramado, que apresenta de forma sutil e muito
inteligente o problema do preconceito no nosso país. O narrador do romance, Eulálio
D´Assumpção, que representa a fidalguia decadente, apesar de se apaixonar por
uma mulata, a Matilde, e aceitar a mistura de raças na sociedade, decepciona-se
ao ouvir a namorada de seu bisneto o chamá-lo, de momento do amor, “de negão”,
por representar no corpo os traços raciais da bisavó. O Chico, como um legítimo
Buarque de Holanda, seguindo os passos do pai, o Sérgio Buarque de Holanda, tem
levado essa discussão sociológica para o âmbito da literatura e da música
também. É o caso da música Sinhá, que integra o mais recente disco lançado pelo
compositor, há uns dois meses. Na música, encontramos a história de um escravo
que é capturado próximo ao açude onde se banhava nua a mulher do senhor. O
senhor, acreditando que o negro estava espiando sinhá, decida castigar o negro,
que é o narrador de toda a canção, com exceção da última estrofe em que o
narrador, é o próprio Chico que se diz descendente tanto do negro quanto do
senhor. Nesse sentido a música é belíssima por materializar a própria estória
do Brasil. Peço licença a vocês para ler na integra a letra, chamando a atenção
para os dois narradores da música e para o fato de Chico usar de 3 formas
diferentes um mesmo pronome de tratamento: vosmecê, vosmincê, vassuncê. A
palavra vai se transformando ao longo da música, como se sofresse a cada
chibatada. Por outro lado, a transformação indica a própria mudança de tempo,
como se a música, como disse, fosse um retrato da própria história de nosso
país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário