Centro não há.
Disseminação. É como quando você fala. A palavra cai no ouvido desse, daquele.
Você não sabe em que planta a semente vai dar. Mas que ela pega, isso te
garanto. A palavra produz outras palavras que caem em outros ouvidos, lavouras
e lavouras de palavras, um universo. As lavouras são de quem? Falo das
palavras. De todos e de ninguém. (SCHÜLER, 2005, p.
131).
As palavras acima, com sabor de Guimarães Rosa, são de Donaldo Schüler, no romance Império Caboclo. A partir dela, podemos traçar um breve esboço do conceito de disseminação, para Derrida, tão fecundo. Voltemos no tempo. Lembremos da conversa transcrita por Platão, em que Sócrates discute com Fedro, condenando o uso da escrita. Para o filósofo a escrita tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Diz Sócrates:
Também as
figuras pintadas têm a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar
conservar-se-ão gravemente caladas (...). Uma vez escrito, um discurso sai a
vagar por toda parte, mas não só entre os conhecedores mas também entre os que
não o entendem, e nunca se pode dizer para quem serve e para quem não serve.
Sócrates trata o discurso
escrito como um simulacro do discurso vivo e animado. Isso porque o texto
escrito estaria distante das verdades da alma, porque é o simulacro de uma voz
que por sua vez já é um simulacro dos estados da alma. É justamente essa
condenação que vai levar Derrida a interrogar o pensamento platônico sobre a
escrita que sobrevive na história ocidental, inclusive nos postulados
linguísticos de Ferdinand Saussure que, assim como Sócrates, rebaixa a escrita.
O filósofo da desconstrução chegou a escrever um estudo, A Farmácia de Platão, em que problematiza a escrita tratada
apenas como veneno ou remédio, como aparece no mito egípcio do surgimento da
escrita, figurado no diálogo entre Thoth e Tamuz, um mito que por sinal é
recuperado por Platão, em Fedro. O
que Derrida estava querendo dizer é que a ausência de um centro amplia
indefinidamente o jogo da escritura. A questão mereceria várias páginas, mas o
que nos interessa aqui é observar que tanto a escrita quanto a fala brotam da différance. A própria fala passa a ser
entendida como uma forma de escrita, e ambas são destituídas de um centro, de
um significado transcendental.
Em
vários momentos de sua trajetória intelectual, principalmente nos anos 70,
Roland Barthes chamou a atenção para o fato de que um texto não deve ser
tratado como uma estrutura de significados, mas uma galáxia de significantes. O contato com a obra de Bakhtin, via
Julia Kristeva, e com os escritos de Derrida, foram responsáveis pela
transformação não só das reflexões de Barthes, mas da sua própria escrita. A
idéia de disseminação passa a ser constante em seus textos, a partir da publicação
de S/Z. A mudança das noções de texto operam também uma radical transformação
das concepções de leitura. Trata-se de entender a interpretação não mais como a
busca de um significado original, de uma origem, de uma unidade de sentido, tal
como postulava a hermenêutica, mas de jogar com as oposições e contradições de
um texto, o que Derrida vinha pensando já no início dos anos 60, com a prática
do desconstrucionismo.
Em 1971, no ensaio “Da obra ao texto”, Barthes
afirma que o Texto é plural. Com isso, não está querendo dizer apenas que um
texto tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido. Se o
texto é tratado como passagem, como travessia, não depende então de uma
interpretação, mas de uma disseminação.
Nota-se o quão importante foram as reflexões de Derrida para Barthes. Em uma
das passagens de "Posições", o filósofo da desconstrução discorre sobre a
disseminação. Vale a pena citar na íntegra suas observações:
Em última
instância, Disseminação não quer nada dizer, não podendo ser reunida em
uma definição. Não tentarei fazê-lo aqui e prefiro remeter ao trabalho dos
textos. Se não se pode resumir a disseminação, a différance seminal, em
seu teor conceitual, é porque a força e a forma de sua ação perturbadora fazem
explodir o horizonte semântico. A atenção dada à polissemia ou ao
politematismo constitui, possivelmente, um progresso relativamente à
linearidade de uma escrita ou de uma leitura monossêmica, ansiosa por se
amarrar ao sentido tutelador, ao significado principal do texto, até
mesmo ao seu referente primordial. Entretanto, a polissemia enquanto tal
organiza-se no horizonte implícito de uma retomada unitária do sentido, até
mesmo de uma dialética - Richard fala de uma dialética em sua leitura temática
de Mallarmé; Ricoeur, sua teoria Essai sur Freud (e a hermenêutica de
Ricoeur, sua teoria da polissemia, tem muita afinidade com a crítica temática,
o que é reconhecido por Richard), de uma dialética teleológica e totalizante
que deve permitir a um momento dado, por mais distanciado que ele seja, de
voltar a reunir a totalidade de um texto na verdade de seu sentido,
constituindo o texto em expressão, em ilustração, e anulando o
deslocamento aberto e produtivo da cadeia textual. A disseminação, ao
contrário, por produzir um número não-finito de efeitos semânticos, não se
deixa reconduzir a um presente de origem simples ("A disseminação",
"A dupla sessão", "A mitologia branca" são re-colocações
em-cena - re-colocações práticas - de todas as falsas partidas, de todos os
começos, incipits, títulos, exergos, pretextos fictícios, etc.: decapitações)
nem a uma presença escatológica. Ela marca uma multiplicidade irredutiva e gerativa.
O suplemento e a turbulência de uma certa falta fraturam o limite do texto,
interditam sua formalização exaustiva e clausurante ou, ao menos, a taxonomia
saturante de seus temas, de seu significado, de seu querer-dizer.
Um
significante não remete a um significado transcendental, porque estamos no
universo de palavras. Palavras que nos levam a outras palavras, ad infinitum. A palavra é tratada como lavoura, semente. A
própria etimologia da palavra disseminação sugere a ideia de fecundação, doação
de vida por meio do sêmen.
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