Em
2004, o artista plástico argentino Jorge Macchi inseriu sobre um mapa de Buenos
Aires uma placa de vidro partida. De um ponto preciso, na esquina entre a rua Mexico e Santiago del Estero, oito linhas de fuga foram surgindo ao azar,
formando, assim, uma trajetória que percorria a cidade em várias direções.
Nesses caminhos, quarenta e seis pontos de interesse foram escolhidos. Na
maioria deles, tratava-se de esquinas, ou seja, de pontos de encontro, de
intersecção de coordenadas que, ao azar, se encontravam na linha do quadro
fissurado. O artista convidou a escritora María Negroni para escrever sobre os
pontos da cidade e o músico Edgardo Rudnitzky para produzir a trilha sonora.
Vidro quebrado e itinerário de Buenos Aires traçado
a partir da fissura
O
resultado foi a exposição “Buenos Aires Tour”, que ocorreu entre novembro de
2003 e fevereiro de 2004 na galeria de Arte Contemporânea Distrito 4[1],
em Madri. A instalação reuniu um conjunto de imagens, sons e palavras que convidavam
o espectador, de maneira desinteressada, a passear por essa outra Buenos Aires.
Digo desinteressada porque o acaso apontava muitas vezes para pontos
contingentes, banais, transitórios, que passavam a existir plenamente, ou pelo
menos ganhar atenção, a partir da exposição. Dois anos depois, María Negroni
publicou o livro de poemas em prosa também chamado de Buenos Aires Tour, que revisitava o projeto. É dele que tratamos
aqui. Trata-se de quarenta textos breves que formam uma publicação cuja capa
apresenta um mapa da cidade de 1874, colhido do Atlas de Buenos Aires, organizado por Horacio A. Difrieri.
Mapa coletado por Difrieri que integra a capa de Buenos Aires Tour, de María Negroni
Ler
o livro é refazer o percurso do acaso, promovido pela fissura de Macchi,
transformando o azar em passeio, ou seja, em produtividade. Saavedra
y Belgrano, Zepita y Luna, Uruguay y Corrientes, Sarmiento y Callao são
apenas alguns exemplos de ruas que se encontram e desencontram no livro de
Negroni. Há também lugares precisos como o Museu de Belas Artes, o Cemitério da
Recoleta, ou a fonte de Lola Mora, que em sua imprecisão convidam o leitor a
perder-se pela cidade como uma forma de conhecê-la. Escrever é perder cidades,
diria-nos Enrique Vila-Matas. O livro, em certo sentido, transcria a experiência da instalação no plano verbal. Sobre esse
aspecto, David Oubiña, no texto “Palabras en combustión espontânea”, observa
que do objeto original, ou seja, da exposição, o livro de Negroni conservou os
pontos de interesse, no entanto, os organizou em uma cartografia diferente:
“Aislados de las imágenes y de los sonidos para los que habían sido concebidos,
los textos adquieren otro sentido, recuperan su configuración distintivamente
literária” (in NEGRONI, 2006, p. 7).
Os poemas não se caracterizam apenas como uma versão da exposição, mas sim como
um objeto novo. Oubiña
ainda escreve que “los sitios que se describen ya no son una escala dentro de
un itinerario, sino pequeños destellos de una constelación imaginaria” (in NEGRONI, 2006, p. 7). Aliás,
é como constelação que a cidade se apresenta para quem a sobreboa durante a
noite. Buenos Aires é um palco na terra todo estrelado. É céu ao avesso.
Se
por um lado o mapa poderia ser lido como um conjunto de coordenadas que visam à
orientação, por outro, como sugere María Negroni no prólogo do livro, pode ser
visto como um conjunto que perturba a localização, levando-nos ao cansaço e à
entrega. Mapa e livro podem ser entendidos, assim, não só como guias de
localização e entendimento, mas também como convite ao extravio e à deriva. Nesse
jogo, é a própria escritora que aproxima as coordenadas de um mapa à escritura.
Esta como aquela seriam
“el sueño de unos paseos interminables por paisajes olvidados, una grafía
incierta donde cada lugar es un mundo (un espacio interior) (…)” (2006,
s/p). Nesse sentido, perder-se na cidade talvez seja uma forma de conhecê-la. A
escritura surge como uma forma não só de perder cidades ou países, como nos
indicou em poema Fernando Pessoa, mas também de imaginar outras geografias
poéticas possíveis.
A
questão da cidade parece ser uma constante na obra de María Negroni. Em seu
mais recente livro, o Pequeño Mundo
Ilustrado, a escritora inclui dois textos sobre o tema. No primeiro,
discute o projeto de vida nômade da cidade Nova Babilônia, projetada pelo
arquiteto Constant, em 1956, que se transformou em um ícone da Internacional
Situacionista e que estava dividido entre o mapa e o poema dadaísta. No
segundo, Negroni, seguindo os passos de Baudelaire, analisa a cidade como topos privilegiado no mundo literário
moderno. Em uma das passagens, comentando sobre o fascínio da cidade sobre o
poeta, a escritora analisa:
Recorrer la ciudad en busca de cachivaches (o
imágenes) constituye, en esencia, una forma de curiosidad, pero es también una
manera de inducir, a partir de huellas o indicios, una suerte de profecía retrospectiva,
como la que formularía un detective especializado en lo insoluble (…) La ciudad
que emerge en ellos se parece a algo que hemos visto, pero es también, sin
duda, lo que nuestro deseo imaginó o creyó robar a lo vivido, como una memoria
inspirada que se anticipa a aquello que perderá (…) (2011, p. 148).
A
alusão ao escritor como detetive, que lê a cidade a partir dos indícios, das
marcas de um crime, buscando reconstituí-lo no momento de sua desaparição, faz
lembrar de Roger Caillois (1972) que, ao situar a promoção do ambiente urbano à
qualidade de épico no século XIX, encontra a gênese desse processo na
transformação do romance de aventuras em romance policial. A questão da relação
íntima entre cultura e cidade moderna, pautada na inserção da cidade como topos da literatura a partir de
Baudelaire, não aparece apenas no ensaio “Paris, mito moderno”, de Caillois,
mas é também constantemente tematizada por Walter Benjamin, como no projeto das
Passagens e no livro sobre o poeta
das Flores do Mal[2].
Raúl Antelo, no texto “De cidade/city/cite a Babel”, com o título extraído do
poema sugestivo de Augusto de Campos, ao esboçar a genealogia da cidade
euro-atlântica, de Nietzsche a Derrida, observa que entre a cidade entendida
como sede de virtude civilizatória, em Voltaire, e a cidade como território de
vício e degradação em William Blake, aparece a cidade de Baudelaire situada
para além do bem e do mal. Dele, derivará a ideia de uma cidade disseminada.
Para Antelo, a configuração urbana da cidade disseminada “configura uma rede
incessante de deslocamentos e usos, não só do próprio e do alheio, mas também
do público e do privado, em que toda noção de origem surge como plenamente
ilusória” (2010, p. 2). É nessa lógica disseminada que o pesquisador insere a
Buenos Aires cubificada por Duchamp, artista que não intervém na cena urbana da
cidade modernizada nem para o “registro” (memória), nem para a formalização
(representação). Antelo ainda nos lembra que na estereoscopia Duchamp escolhe
um limite, a “orla do rio-mar”, e torna-o um “limiar”:
Duchamp
posiciona-se pois no cais e nele contempla o rio-mar. É o infinito. E aí capta
uma cena de origem, virando as costas, precisamente, para o nascimento da Ninfa
(uma alegoria do nascimento de Vênus, e da própria Renascença como pureza,
ideia materializada na escultura de Lola Mora, recém instalada naquele passeio
(2010, p.3).
Para
Antelo, a linha de fuga da imagem celebratória da Ninfa, sentada à beira da
concha, poderia ser ilustrada com os trabalhos de Macchi e Negroni, em Buenos Aires Tour. As relações fazem
sentido. No texto de número 26, intitulado a “Bienvenidos a Buenos Aires
Green”, sobre a fonte de Lola Mora, Negroni simula um guia turístico convidando
o turista-leitor a mirar a Fonte
Monumental das Nereidas, criada pela escultora Dolores Mora Veja, vulgo
Lola Mora:
Usted está aquí. Ha penetrado a La Zona por el
costado Sur. No se asuste. No se desanime. No se demore. (El arte busca hacer
más extraño lo extraño.) A su izquierda, La Fuente Movediza de las Conchas
Gigantes y los Jinetes del Apocalipsis. A su derecha, familias con viandas y
autito propio, El fin del verano y el comienzo de Otro País (2006, p. 42).
Negroni,
assim como Duchamp, vira as costas para a Ninfa, dessacralizando a
monumentalidade da Fonte ao associá-la a fatos corriqueiros. Na Cidade-Musa, estão
contidas não apenas as esculturas mitológicas da fonte, mas também os cachorros
que nela caminham, “traições passivas e ativas”, um “abismo de simulacros”, “baratas
cosmopolitas”, o “trino de pássaros”. Todavia, não estamos diante do mero
registro. A cidade não se entrega aos caprichos do clic fotográfico de um turista aprendiz. Também não estamos diante
da mera representação, já que é impossível nomeá-la. A cidade disseminada de
Negroni está repleta de silêncios. Nesse jogo de esquecimento, ruínas e imagens,
talvez seja possível nomear a cidade pelo que ela não é. É assim no fragmento
sobre a esquina entre Zepita y Luna, que desemboca no início da Vila 21, famosa favela de Buenos Aires. Nela,
Negroni não vê nenhuma igreja. Lá, não se escutam buzinas, não existem
jogadores de tênis, nem senhores bem vestidos e com cabelos cortados. Não
existem cortejos fúnebres, nem liquidações de inverno. Não há lojas de flores,
nem repartições públicas, nem organizações não governamentais. O que existe é a
nuvem, um vazio, uma nostalgia impalpável pelo que não foi, bem como a bandeira
argentina ondeando orgulhosa sobre a vila. A questão do vazio, que é recorrente
em outros textos do mesmo livro, aparece, por exemplo, na esquina entre Ayacucho y Peña, onde Negroni percebe
que a arquitetura está ausente, não há ateliers de artistas, nem construções
impalpáveis. A esquina está desprovida de mar, de árvores, de céu. É apenas o
ponto onde nasce Peña, ou morre. O que aparece como enigma, é solucionado pela
escritora-detetive na esquina entre Bartolomé
Mitre y Rodríguez Peña: “Las palabras no existen para nombrar sino para
crear el vacío (...)” (2006, p. 45). Não interessam à escritora os feitos e os
atos. Sua potência nasce da impotência. A escritura carece de inclinação para
as coisas. Seu jogo é oscilante, como
tudo o que perdeu a possibilidade da história, como sugere a esquina entre Medrano y Del Signo. Sua dimensão, a la
Duchamp é a da pós-história. O que restam são as ruínas, como aquelas da
ditadura, sugeridas na esquina entre Chile
y Perú, onde encontramos a plazoleta
Rodolfo Walsh, dividida entre a tragédia política e o passeio do homem com
seus cães. Nela, escreve
Negroni:
Hay un hombre con dos pequineses, un banco, una
palangana de plástico. Pasan taxis vacíos, un colectivo de la línea 86, un
Falcon verde, con patente. Atrás, desde algún lado, una musiquita del litoral.
Pobrísima La plazoleta de piedra. Compañeros Fusilados, Jorge A. Ulla, Ana
Maria Vilarreal, Mario Delfino, Presentes. Disculpe, dice El hombre de los pequineses, ?qué fecha es hoy? No contesto
(2006, p. 25).
O ensaio completo que produzi sobre o livro pode ser lido no link abaixo:
http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/eventos/seminario/anais%201/Caio_Moreira.pdf
[1] Segundo
informações do site da Galeria de Arte Contemporânea Distrito 4, Buenos Aires Tour
é uma exposição de arte conceitual, com fotos, objetos e vídeos, bem como
textos de María Negroni, e efeitos sonoros de Edgardo Rudnitsky:
Buenos Aires Tour consists of 8 itineraries which
reproduce the network of lines drawn when a piece of glass is broken over the
map of Buenos Aires. 46 points of interest have been chosen at random above
these lines which match points where streets interconnect. Buenos Aires Tour
presents photographic material as well as objects texts and sounds for each of
these points (2004, s/p).
O site traz ainda, além da apresentação
da exposição e biografia dos artistas idealizadores, várias fotos da
instalação.
[2]
As Passagens poderiam ser lidas, no bom
sentido, como “mapa desorganizado” ou “disseminado” da vida moderna. As
temporalidades implicadas em sua rede anacrônica, em sua mesa de montagem,
parecem produzir um modelo alternativo de pensar a história e a vida da cidade.
Nesse sentido, parece estar muito próximo do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, em que a memória é pensada como um
puzzle anacrônico. O acaso que muitas
vezes está presente em seu modus operandi
produz no conjunto das imagens montadas e remontadas novos sentidos e outras constelações
possíveis.
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