terça-feira, 26 de abril de 2016

Joaquim Serapião do Nascimento (da série: Origens da poesia em Porto União da Vitória)


Em 2016, comemora-se 100 anos da intervenção poética de Serapião do Nascimento na cidade de União da Vitória, quando no dia da inauguração da Ponte Machado da Costa, em novembro de 1906


Em União da Vitória, o nome do professor Serapião é associado à escola que leva seu nome. Sabe-se que o poeta nasceu em Iguapé, no Estado de São Paulo, em 1847 e que, ainda jovem, veio para o Paraná, onde abraçou o magistério. Dirigiu o Colégio Nossa Senhora da Luz, em Curitiba, e fundou o Colégio Santana do Iapó, no município de Castro, em 1882. Veio para União da Vitória em 1901, onde lecionou durante vários anos, vindo a falecer em Curitiba , em 11 de junho de 1911. Serapião foi também dramaturgo, deixando as seguintes peças de teatro: "13 de Maio", "O Cocheiro", "Arte na Roça", "José do Egito", "O Nascimento de Jesus", "O Filho Pródigo", "O Sr. Aprígio em Apuros", "A Carta que Dá Dinheiro", a "Vítima do Jogo" e "Honrarás teu Lar". Aliás, estas duas últimas, montadas na década de 50 pelo Teatro Experimental do Guaíra e dirigida por nada mais nada menos que Dalton Trevisan.

Fora isso, pouco se sabe sobre sua vida e sua obra. Quem visitar as dependências da escola Serapião do Nascimento não encontrará fotos de seu patrono. E se procurar sua imagem em arquivos públicos, tampouco. Até o momento não há fotografias conhecidas do eminente professor. Sua imagem sobrevive no legado da obra e em um desenho de Dirceu Marés de Souza, provavelmente produzido a partir de descrições, pois quando Dirceu nasceu o poeta já havia morrido. É possível que a imagem tenha sido inspirada nas mesmas descrições apontadas por Alvir Riesemberg, em um texto lido no Clube Apolo, em comemoração ao centenário do Grupo Escolar Professor Serapião, que descreve o mestre: Estatura alta e compleição robusta. O cabelo branco atirado para trás, o bigode torcido em gui fina, o cavanhaque prolongando-se em ponta. Expressão franca, olhar inteligente, gesto largo. Indumentária sóbria e bem cuidada"um 'croisé' de alasticotina emoldurado com a gola de seda o peito engomado da camisa, sobre cuja alvura nitente enlaçava-se a gravata preta" (apud MELO JÚNIOR, 1990, p.110). 

A descrição reproduz o depoimento de seus contemporâneos. Dupla condição do fato: Alvir relembra Serapião, mas o que lembra é a lembrança de outros. Difícil saber onde termina a realidade e começa a ficção.      

Estamos diante de um mistério. Seria o seu cabelo tão avolumado quanto nos mostra o esboço? Seriam o seu bigode e cavanhaque tão discretos assim? Os traços de Dirceu fazem de seu modelo uma figura semelhante a Trotsky. Não apenas pelo cabelo e cavanhaque mas também pelo rosto anguloso e olhar profundo e revolucionário. Se o desenho não condiz com a realidade, não importa. A ilustração de Dirceu nos legou um Serapião. Temos uma imagem para o poeta. E ela nos basta. Talvez algum dia uma fotografia apareça. E se a imagem de Serapião for o seu avesso, não faz mal. Teremos a foto em que o poeta é e  o desenho onde ele é o que poderia ter sido. Por enquanto, fiquemos com a imagem de poeta e professor revolucionário que já atuava no magistério quando o líder bolchevique nasceu.



Lev Davidovich Bronshtein, "Lvov", "Pero", "Trotsky"


Uma outra observação pode nos ajudar a formar uma imagem do poeta-professor. Alvir Riesemberg escreve que um antigo aluno de Serapião o comparou aos Mosqueteiros de Dumas, "não só pela aparência física, mas também pela reação pronta e viva do espírito, sempre segundo a mais bela padronagem moral, em face das solicitações da vida"(apud MELO JÚNIOR, 1990, p. 111).


Douglas Fairbanks como D'Artagnan, em 1921, no cinema

Chama a atenção não apenas a esparsa obra do intelectual, cujos originais em sua maioria foram extraviados, mas principalmente a atitude poética presente na trajetória de Serapião, provavelmente nosso primeiro poeta performático. Há um episódio que ilustra bem esse fato. No dia 26 de novembro de 1906, em comemoração à inauguração da Ponte Ferroviária Machado da Costa, o poeta escreve um famoso poema dedicado à União da Vitória e o espalha pela cidade no grande dia. Aquele era um momento de grande otimismo não só na cidade mas em todo o mundo, tendo em vista que vivíamos uma época de intensas transformações técnicas e mecânicas. Nesse sentido, "progresso" era uma palavra de ordem que aparecia no poema de Serapião como sintoma de seu tempo.

Vale lembrar que no mesmo ano em que se deu a inauguração da ponte - que para o município simbolizava uma época desenvolvimentista -, Santos Dumont realiza seus voos em Paris com o 14BIS. Em 12 de novembro de 1906, em Bagatelle, duas semanas antes de Serapião escrever o poema, o pai da aviação aprimora sua máquina de voar, realizando com o Oiseau de Proie III o voo que lhe rendeu o Prêmio do Aeroclube da França e o reconhecimento internacional.

Segundo o registro de Alvir Riesemberg, o dia de inauguração da ponte foi magnífico. A cidade decorada com bandeiras e guirlandas comemorava ouvindo a banda de música de João Holmann, que viera de Ponta Grossa especialmente para o evento. Foguetes eram lançados ao céu e, à noite, em uma sessão solene no Clube União, uma "cabocla bonita do jararaca", a Luíza Amâncio, descalça e toucada de flores, representava União da Vitória: "Diante dela, o Professor Serapião declamou, fremido, o poema que compusera naquele dia" (apud MELO JÚNIOR, 1990, p. 113):    

Selvagem qual bugre nu:
Banhada pelo Iguaçu,
À beira dele nasceste,
Linda cabocla indolente!
A dormir em mata ingente,
Entre colinas cresceste! 

Como criança da roça,
Foi teu berço uma palhoça
Erguida em férteis zonas,
Foi teu primeiro luzeiro
O vaporzinho CRUZEIRO
Do Coronel Amazonas! 

Qual cordilheira dos Andes,
Vazada em cadinhos grandes,
Cogitavas inativa! 
Então ribombou por tudo,
Assim como um grito agudo,
A voz da locomotiva. 

Do ventre a saltar fumaça,
Ei-la ligeira que passa
Do Estado a maior ponte:
É o progresso nos trilhos
Em procura de outros brilhos
De cintilantes horizontes! 


Eis a cabocla bendita
De pé, no banco da glória!
Cercada de lindas flores,
Ao som de cantos de amores,
Eis a UNIÃO DA VITÓRIA! 

O poema composto predominantemente por sextilhas, em um conjunto de versos heptassílabos com rimas emparelhadas - esquema muito comum na tradição da poesia popular de língua portuguesa -  faz lembrar a estrutura rítmica romântica de Castro Alves e Casimiro de Abreu, cuja lírica é exaltante e grandiloquente, ou seja, entendida como linguagem em estado de ânimo. Como era comum no final do século XIX e início do século XX a leitura dos poetas do romantismo, é provável que Serapião tenha deles sofrido forte influência. Não seria fortuito comparar o sentimento de amor por União da Vitória em seus versos com o ufanismo da "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, cujo poema é também formado por sextilhas emparelhadas - como em Castro Alves e Casimiro de Abreu, no entanto, agora de versos heptassílabos. A diferença é que nos versos de Serapião não estamos diante de um exilado e sim de alguém que adotou a terra estrangeira como seu legítimo chão. Dificilmente, um estrangeiro conseguiria traduzir com eficiência um sentimento tão forte pela terra que lhe deu guarida se não considerasse seu espírito como parte dessa realidade.      

O fato de o poema na sua última estrofe contar com apenas cinco versos, e não seis como nas estâncias anteriores, cria um efeito inusitado - semelhante ao do soneto que nas duas últimas estrofes possuem um verso a menos do que nos quartetos iniciais -, pois à medida que deixa a impressão de estar faltando o último verso, como que deixando o leitor a espera de um final, desloca a atenção para o nome da cidade. Independente desse efeito ter sido ou não planejado pelo poeta, o seu resultado é eficiente.

Outro aspecto que chama a atenção no poema é a forte carga imagética que ele materializa, como a pintar um quadro vivo da cidade em pleno processo de transformação, do estado natural - em que a cidade é percebida e personificada como um bugre nu, uma cabocla indolente, uma criança da roça -,  passando pelo processo da colonização, figurada na referência ao Vapor Cruzeiro do Coronel Amazonas, ao momento de desenvolvimento técnico e econômico, cujo caminho é a glória. Da predominância de vocábulos com pouca sonoridade (bugre nu / Iguu / dormir), que sugerem uma espécie de estado selvagem da própria língua, o poema passa à recorrência de palavras sonoras: (glória, linda, Vitória, locomotiva), como que a constatar a metamorfose da cidade em prol do progresso e da civilização.

É uma pena que o tempo tenha tratado de apagar a obra poética de Serapião. Não encontrei mais do que seis poemas de sua verve: o poema sobre União da Vitória, o poema escrito em 1910, em homenagem a João Gualberto e aos militares do Tiro Rio Branco, depois de serem recebidos como heróis em Curitiba, dois poemas para Amélia, sua esposa, e o outro escrito quando completou sessenta e dois anos de idade que tem como tema uma reflexão sobre a sua vida.  Há também um poema sobre a cidade de Morretes: 



Caio Ricardo Bona Moreira

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