domingo, 29 de maio de 2016

Gonzaga Duque e o enigma da arte, ou a crítica como uma linda mulher


Gonzaga Duque


Certas idades da crítica não foram criadoras
no sentido usual do termo; bem o sei: o espírito do
homem buscava nelas inventariar os próprios tesouros,
separar o ouro da prata e a prata do chumbo,
avaliar as jóias e nomear as pérolas. Porém, todas as
idades criadoras foram também críticas. Pois que é o
espírito crítico que engendra as fôrmas novas

Oscar Wilde, em A Crítica e a Arte


Antes de entrar na Exposição Geral de Belas Artes, em 1905, na então capital federal do Brasil, o crítico Gonzaga Duque viu passar uma bela dama, “encantadoramente cingida por um costume-tailleur côr de musgo” (1929, p.115) que lhe chamou muito a atenção. O rápido encontro, com ares de ficção, é descrito com minúcias no texto “Salão de 1905”, publicado inicialmente na revista Kosmos e posteriormente reunido em seu livro póstumo, intitulado Contemporaneos. Não passou despercebido ao seu autor a elegância com que a mulher de cabelos negros e chapéu de palha galgou os degraus, levando-o a ver nesse acontecimento o sinal de um bom augúrio. Com o olhar fascinado por essa espécie de passante baudelaireana, o homem envolve-a no seu deslumbramento, percebendo nela o reflexo de um desdém, no entanto, um desdém que “não ofende nem repele, porque apenas tem um vago de indiferença no indeciso de uma surpresa. É o instante de todas as mulheres bonitas diante do estranho que as contempla”. Ela olha para o enfeitiçado e se afasta, criando para si uma imagem que, ao oscilar entre a presença e a ausência, só confirma a sua condição espectral, etérea, fantasmática. A mulher não nomeada poderia figurar entre aquelas que povoam o imaginário dos artistas da belle époque, como a Salambô, retratada por Helios Seelinger, que, segundo Gonzaga Duque, se confunde entre uma “vaga imagem lendária de um perdido passado e a figura inquietante, sinistramente suspeita, observada dia a dia no cenário costumeiro da irrequieta, aguda, absorvente e destruidora existência contemporânea”. O flâneur, aturdido, entra, então, na Exposição e, transformado pelo sintomático encontro-desencontro, passa a comentar quadros de Fernando Gomez, Augusto Petit, Heitor Malagutti, Eugéne Morand, Rodolfo Chambelland, entre outros. Encontra um senhor “baixote e atarracado, rebarbativo”, e com ele dialoga sobre aquilo que vê. Ironiza algumas “marinhazinhas”, nas quais percebe apenas “barquinhos” e “praiasinhas”. Mas quem rouba a cena é a jovem atraente que reaparece exuberante no final do passeio:

Diante das medalhas do Sr. Augusto Girardet reencontro a esvelta senhora em costume-tailleur côr de musgo.
Ha nas suas pupilas o quebranto de um goso, toda a ternura dos delicados espiritos embevecidos na contemplação dum objecto d´arte. E sorri glorificando a luz do seu inexprimível sorriso a obra do Sr. Girardet. Sorri e retira-se (1929)

O que se passa entre ele e a jovem misteriosa, segundo Vera Lins, alegoriza a relação do crítico com a arte, “a surpresa e o aturdimento que a desconhecida lhe causa, o aproximar-se e o afastar-se e depois a fuga, a impossibilidade de alcançá-la. A crítica não desfaz o enigma da arte, o objeto lhe escapa”, como sugere Vera Lins.



A crítica que me interessa é justamente essa que parece estar consciente do abismo que separa a sua atividade das certezas de um método seguro, pleno de si, autônomo e suficiente. Tal crítica, a meu ver, consegue garantir justamente a inacessibilidade de que nos fala Agamben, em Estâncias, com isso conseguindo reinventar a cada passo seus métodos, seus olhares, suas posições, seus abismos, fazendo de sua atividade uma máquina de produzir imagens, ou seja, um caleidoscópio. O narrador do “Salão de 1905”, ao concluir o passeio, perguntou quem seria aquela formosa dama de lindos olhos que partiu. Para, então, responder:

Ora, que me importa saber quem seria tão donairosa senhora! Uma deusa talvez descida á terra para dar a um pobre mortal, arruinado e triste, a alegria necessária à sua penosa missão... De qualquer forma, verdadeira ou imaginaria, deusa ou simples madama três estrelinhas, de qualquer forma, uma linda mulher! Isto basta (DUQUE, 1929) 

Segundo Vera Lins, os textos de Gonzaga Duque são marcados por imagens que fazem pensar sobre uma crítica de artes como tradução de linguagens que “escapam aos limites do conceito se articulando com imagens que contém ideias, um pensamento que inclui a sensibilidade e a sensualidade. Como se a reflexão se desdobrasse nessas passagens de uma linguagem a outra”. Dessa forma, produz-se uma linguagem crítica que incorpora o enigma, a imagem, e a força poética dessa crítica que escapa ao rigor do método e ao fechamento do conceito “mais provoca o pensamento do que o torna claro”. Logo, impossível separar aqui sua crítica da própria poesia.
Talvez seja hora de lermos com mais atenção a crítica poética deste desconhecido chamado Gonzaga Duque, que ao escrever sobre pinturas incorpora o próprio universo da imagem em seus textos. Ler a sua obra equivale assim a visitar uma exposição, por que não?

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