Gonzaga Duque
Certas
idades da crítica não foram criadoras
no
sentido usual do termo; bem o sei: o espírito do
homem
buscava nelas inventariar os próprios tesouros,
separar
o ouro da prata e a prata do chumbo,
avaliar
as jóias e nomear as pérolas. Porém, todas as
idades
criadoras foram também críticas. Pois que é o
espírito
crítico que engendra as fôrmas novas
Oscar
Wilde, em A Crítica e a Arte
Antes
de entrar na Exposição Geral de Belas Artes, em 1905, na então capital federal
do Brasil, o crítico Gonzaga Duque viu passar uma bela dama, “encantadoramente
cingida por um costume-tailleur côr
de musgo” (1929, p.115) que lhe chamou muito a atenção. O rápido encontro, com
ares de ficção, é descrito com minúcias no texto “Salão de 1905”, publicado
inicialmente na revista Kosmos e
posteriormente reunido em seu livro póstumo, intitulado Contemporaneos. Não passou despercebido ao seu autor a elegância
com que a mulher de cabelos negros e chapéu de palha galgou os degraus,
levando-o a ver nesse acontecimento o sinal de um bom augúrio. Com o olhar
fascinado por essa espécie de passante baudelaireana, o homem envolve-a no seu
deslumbramento, percebendo nela o reflexo de um desdém, no entanto, um desdém
que “não ofende nem repele, porque apenas tem um vago de indiferença no
indeciso de uma surpresa. É o instante de todas as mulheres bonitas diante do
estranho que as contempla”. Ela olha para o enfeitiçado e se afasta, criando para si uma imagem que,
ao oscilar entre a presença e a ausência, só confirma a sua condição espectral,
etérea, fantasmática. A mulher não nomeada poderia figurar entre aquelas que
povoam o imaginário dos artistas da belle
époque, como a Salambô, retratada por Helios Seelinger, que, segundo
Gonzaga Duque, se confunde entre uma “vaga imagem lendária de um perdido
passado e a figura inquietante, sinistramente suspeita, observada dia a dia no
cenário costumeiro da irrequieta, aguda, absorvente e destruidora existência
contemporânea”. O flâneur, aturdido,
entra, então, na Exposição e, transformado pelo sintomático
encontro-desencontro, passa a comentar quadros de Fernando Gomez, Augusto
Petit, Heitor Malagutti, Eugéne Morand, Rodolfo Chambelland, entre outros.
Encontra um senhor “baixote e atarracado, rebarbativo”, e com ele dialoga sobre
aquilo que vê. Ironiza algumas “marinhazinhas”, nas quais percebe apenas
“barquinhos” e “praiasinhas”. Mas quem rouba a cena é a jovem atraente que
reaparece exuberante no final do passeio:
Diante das medalhas
do Sr. Augusto Girardet reencontro a esvelta senhora em costume-tailleur côr de musgo.
Ha nas suas pupilas o
quebranto de um goso, toda a ternura dos delicados espiritos embevecidos na
contemplação dum objecto d´arte. E sorri glorificando a luz do seu inexprimível
sorriso a obra do Sr. Girardet. Sorri e retira-se (1929)
O que se passa entre
ele e a jovem misteriosa, segundo Vera Lins, alegoriza a relação do crítico com
a arte, “a surpresa e o aturdimento que a desconhecida lhe causa, o
aproximar-se e o afastar-se e depois a fuga, a impossibilidade de alcançá-la. A
crítica não desfaz o enigma da arte, o objeto lhe escapa”, como sugere Vera Lins.
A
crítica que me interessa é justamente essa que parece estar consciente do abismo que separa a sua
atividade das certezas de um método seguro, pleno de si, autônomo e suficiente.
Tal crítica, a meu ver, consegue garantir justamente a inacessibilidade de que nos fala Agamben, em Estâncias, com
isso conseguindo reinventar a cada passo seus métodos, seus olhares, suas
posições, seus abismos, fazendo de sua atividade uma máquina de produzir imagens, ou seja, um caleidoscópio. O narrador do “Salão de 1905”, ao concluir o passeio, perguntou
quem seria aquela formosa dama de lindos olhos que partiu. Para, então,
responder:
Ora, que me importa
saber quem seria tão donairosa senhora! Uma deusa talvez descida á terra para
dar a um pobre mortal, arruinado e triste, a alegria necessária à sua penosa
missão... De qualquer forma, verdadeira ou imaginaria, deusa ou simples madama três
estrelinhas, de qualquer forma, uma linda mulher! Isto basta (DUQUE, 1929)
Segundo Vera Lins, os textos de Gonzaga Duque são marcados por imagens
que fazem pensar sobre uma crítica de artes como tradução de linguagens que
“escapam aos limites do conceito se articulando com imagens que contém ideias,
um pensamento que inclui a sensibilidade e a sensualidade. Como se a reflexão
se desdobrasse nessas passagens de uma linguagem a outra”. Dessa
forma, produz-se uma linguagem crítica que incorpora o enigma, a imagem, e a
força poética dessa crítica que escapa ao rigor do método e ao fechamento do
conceito “mais provoca o pensamento do que o torna claro”. Logo,
impossível separar aqui sua crítica da própria poesia.
Talvez seja hora de lermos com mais atenção a crítica poética deste desconhecido chamado Gonzaga Duque, que ao escrever sobre pinturas incorpora o próprio universo da imagem em seus textos. Ler a sua obra equivale assim a visitar uma exposição, por que não?
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