“A
potência ao aplicar-se sobre um ponto ou atuar na extensão, o faz sempre
acompanhada da imago, a mais profunda unidade conhecida entre o estelar e o
telúrico. Se a potência atuasse sem a imagem, seria tão-somente um ato
auto-destrutivo e sem participação, mas todo ato, toda potência é um
crescimento infinito, uma desmesura, em que o estelar assinala o telúrico. A imagem
ao participar do ato entrega como que uma visibilidade momentânea, que sem ela,
sem a imagem como único recurso ao alcance do homem, seria uma desmesura
impenetrável.”
Lezama Lima, em Fugados
1.
O escritor Jorge Luis Borges, em um de
seus contos mais instigantes, “O Aleph”, descreve a imagem de um ponto mágico,
não maior do que dois ou três centímetros, que guardava dentro de si todo o
espaço cósmico. O Aleph estaria situado numa antiga casa da rua Garay, em um
bairro de Buenos Aires. O narrador, convidado a travar contato com a
experiência extraordinária, acomoda-se num determinado lugar do porão da sala
de jantar, surpreendendo-se com o que vê: “Cada coisa (o cristal do espelho,
digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do
universo” (2001, p.170). A possibilidade do Aleph seria a de apresentar
todos os fenômenos do universo presentes no passado, presente e futuro,
simultaneamente.
Poderíamos estender a descrição,
apresentando algumas das imagens evocadas com destreza pelo escritor argentino.
Uma das mais ousadas talvez seja aquela em que o narrador espia o próprio
leitor, feito um Jeff Jeffries latino-americano[1], mas as linhas do texto seriam
insuficientes para guardar tamanha mônada.
A imagem do Aleph, ponto que guarda
todos os outros pontos, é uma excelente metáfora barroca: “Nesse instante
gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto
como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem
transparência” (2001, p.169). O narrador, no entanto, confessou a incapacidade
de traduzi-lo em palavras sem que o evento fosse engolido pelo abismo da
representação, prisioneira de um processo sucessivo na linguagem escrita. Não
somente todos os espaços estavam ali gravados, mas também todos os tempos.
Impossível no Aleph organizar a realidade como a conhecemos.
Uma leitura mais atenta do conto de
Borges nos faz pensar na possibilidade da literatura como um fenômeno
anacrônico, o que não significa abolir o tempo, mas pensá-lo apenas como um
acontecimento paralelo à história. Colocar em “xeque” esse tempo como
desencadeador de puras relações causais entre eventos poderia exigir o
reconhecimento de alguma teoria da física que sustentasse uma suspensão da
lógica temporal-linear, porém bastaria lembrar que a curiosidade que movimenta
este texto talvez seja semelhante àquela que motivou o narrador imaginado por
Borges a buscar a visão de um Aleph.
Borges
Como essa totalidade está além das
pretensões deste artigo e talvez só seja alcançada numa ficção, ou até mesmo em
uma experiência mística, contento-me em experimentá-la entrando não na casa de
Jorge Luis Borges, mas no labirinto [2] de Lezama Lima, um dos mais
representativos escritores latino-americanos. Mas como entrar no labirinto? Uma
chave é necessária. Onde está a chave? A estranha resposta vem de Autran
Dourado: “Dentro, no centro ordenador, na matriz mesma do labirinto. Para se
achar a chave, tem-se que entrar no labirinto. Mas sem a chave, como entrar?”
(1982, p.66).
O paradoxo da chave serve para
ilustrar uma leitura que pretende “entrar” no labirinto de Lezama, procurando
uma saída, mas que aceita o fato de não possuir a chave sagrada da
hermenêutica. Arriscaríamos entrar sem a chave ao perceber que as curvas são
constitutivas de um jogo que se impõe ao leitor em forma de desafio. O
labirinto de Lezama, então, seria apenas uma metáfora que alude aos contornos
de uma escrita proliferante.
Lezama Lima optou por formular o seu
próprio labirinto, uma espécie de sistema poético, transformando a
história em eras imaginárias. Ao operar com a noção de logos poético,
Lezama interpreta a história como ficção do sujeito, livrando-a das malhas do
historicismo, tal como Borges rende-se aos encantos de um Aleph.
2.
“Sólo
lo difícil es estimulante”. É
com esta afirmação que Lezama Lima inicia a primeira das cinco conferências que
proferiu no Centro de Altos Estúdios Del Instituto Nacional de la Havana, em
1957, e que seriam posteriormente reunidas no livro La Expresión Americana[3]. A frase ilustra a postura desse
poeta cubano, etrusco de la Habana vieja, apaixonado pela cultura
latino-americana, e que foi um dos fundadores de uma das principais revistas
americanas de arte, Orígenes[4], veiculada nas décadas de 40 e 50. Nove anos depois, o
escritor publicou o romance Paradiso[5], seu projeto artístico mais ousado.
Haroldo de Campos considerou o texto como uma “proliferante e protéica
obra-prima” (CAMPOS in LEZAMA LIMA,1993, p.9). A proliferação a que se
refere Haroldo, não funcionando como um mero aumento de palavras
(amplificação), é analisada por Irlemar Chiampi no livro Barroco e
Modernidade. A proliferação se constitui como uma geração de sistemas[6] que deslocam a noção de “centro”:
Amplificação e proliferação coincidem enquanto
dilatação ornamental do discurso, sempre que se entenda o aumento, não como uma
adjunção inerte, mas sim como adjunção dotada de função estrutural. Ambas
pressupõem, ainda, um centro de irradiação dos signos; porém, enquanto a
amplificação sustenta a centralidade de um ponto de referência, na proliferação
tende-se a multiplicá-lo e a dilui-lo pelo movimento exacerbado de afastamento
do foco gerador (CHIAMPI, 1998, p. 129).
A proliferação barroca não está
presente apenas em Paradiso, mas em toda a produção de Lezama, inclusive
nos seus ensaios. A leitura de seus textos solicita a coragem de não ceder
diante dos desafios impostos por um pensador que, antes de tudo, deve ser lido
como um poeta pensante.
É importante perceber que a
dificuldade de que fala o escritor, no início da primeira conferência de La
Expresión Americana, mais do que fazer referência a um estilo, alude ao
projeto do ensaio, que reflete, antes de qualquer outra questão, sobre a
resistência americana no processo de receptividade de influências. Talvez seja
justamente essa resistência o elemento mais estimulante que leva Lezama a
mergulhar na astúcia da afirmação. Por
meio de uma escrita espermática, a cultura americana é exaltada desde os
mitos indígenas até os escritos contemporâneos, passando pela poesia popular do
século XIX.
Perceber tanto as considerações mais óbvias quanto
as mais obtusas dos seus ensaios torna iluminadora a leitura de sua poesia.
Cumpre ressaltar que não há um corte - uma ruptura - entre a sua poesia e seus
ensaios. A princípio, essa diluição de gêneros torna seu trabalho mais
complexo, já que todos os seus textos acabam, assim, fazendo parte de um
programa crítico. Por outro lado, em seus ensaios é um poeta que fala,
transformando o saber em refinado sabor, sem ceder aos encantos de uma crítica
imediatista.
Essa ausência de fronteiras entre a
escrita crítica e a escrita literária está ligada ao fato de que não há uma
essência que confira um centro a cada um dos modos de escrever. Cada elemento
só poderia se constituir a partir do rastro de outros elementos, o que Derrida
chama de jogo sistemático de diferenças: “Nada, nem nos elementos nem no
sistema, está, jamais, em qualquer lugar, simplesmente presente ou ausente. Não
existe, em toda parte, a não ser diferenças e rastros de rastros” (DERRIDA,
2001, p. 32).
Em La Expresión Americana,
Lezama diferencia o logos hegeliano do logos poético. Hegel vê a
história como um processo que conduz ao desenvolvimento. O logos poético,
ao contrário, vê a história como um conjunto de imagens. Essa é uma concepção
que transforma o “ser” em “imago”. Essa perspectiva pretende desenvolver uma
visão histórica, porém, não historicista. Uma visão histórica da forma como uma
grande paisagem. A paisagem não seria outra senão a própria cultura, que surge
quando o espírito é revelado pela natureza[7].
A história, então, é concebida como uma profusão de
imagens. Se tudo é imagem, como o sujeito pode aspirar à verdade? A questão é
fundamental para Lezama. Todo
discurso histórico, pela impossibilidade de reconstituir a verdade, é uma
ficção, uma exposição poética: “Así, si la historia y la poesía se cunfunden en
la misma 'mentira poética', qué puede restar verdad a la operación del logos
poético?” (CHIAMPI,1993, p. 17). O poeta cubano não está interessado na
essência ou na origem do homem americano, já que o que resta são apenas
imagens. Agora, o próprio sujeito é visto como um “sujeito metafórico”.
Questionando a noção hegeliana de
temporalidade como uma sucessão de acontecimentos direcionados a um telos,
Lezama percebe que as noções espaciais e temporais não devem ser enfocadas sob
a noção progressiva e linear. O poeta cubano, na sua “constelación
supra-histórica”, abre mão da objetividade para mergulhar na ressonância de um
programa que transcende a noção tradicional de história. Idéia semelhante é
sustentada por Walter Benjamin, no texto “Sobre o conceito de histórica”,
escrito em 1940, um pouco antes do suicídio do filósofo alemão, no estopim da
Segunda Guerra:
O historicismo se contenta
em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum
fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se
transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem
estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a
desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário (BENJAMIN,
1994, p. 232).
Benjamin
Giorgio Agamben, num interessante
ensaio sobre o tempo e a história, presente no livro Infância e História -
Destruição da experiência e origem da história, levanta uma série de
questões ligadas à concepção linear e não-linear do tempo, traçando uma espécie
de panorama, dos filósofos gregos aos contemporâneos, das formulações
filosóficas preocupadas com o assunto. Posicionando-se contra a noção
aristotélica e cristã de tempo, e pensando também no marxismo, o filósofo
italiano observa:
Verdadeiro materialista histórico não é aquele que
segue ao longo do tempo linear infinito uma vã miragem de progresso contínuo,
mas aquele que, a cada instante, é capaz de parar o tempo, pois conserva a
lembrança de que a pátria original do homem é o prazer (AGAMBEN, 2005, p. 128).
A relação prazer/tempo, que já pode ser observada
em Aristóteles, está ligada ao fato de que o prazer tem o poder de suspender o
tempo, assim como as proliferações de Paradiso.
Uma experiência capaz romper com a lógica
tradicional de tempo pode ser encontrada no jogo (do latim jocus, que
alude a uma brincadeira). Analisando o livro Pinóquio, de Lucignolo,
Agamben lembra da cena em que a personagem entra no “País dos Brinquedos”. Lá
todos faziam a maior algazarra. As brincadeiras eram tantas que o lugar tinha
como efeito “uma paralisação e uma destruição do calendário” (AGAMBEM, 2005, p.
82).
Se a quebra do tempo hegeliano é um dos efeitos do
prazer desencadeado pelo jogo, poderíamos pensar que o sistema poético de Lezama
Lima funciona como um jogo. O labirinto não seria nada mais que um jogo. Essa
constatação apontaria para o seu “cosmopoético” não mais como problema, mas
como uma solução, uma saída para uma história teleológica, seja ela,
apocalíptica ou redentora.
O “cosmopoético” lezamiano pretende construir uma
visão histórica mediante o filtro da imagem. A profusão de imagens faz com que
o poeta abandone a vertente racionalista do pensamento ocidental. A recusa do
historicismo pode ser percebida no conceito de “Eras Imaginárias”: “Una era
imaginaria coincide, aparentemente con una cultura, por el hecho de poder
constituir un ‘campo inteligible’(...)” (CHIAMPI,1993, p.19).
Uma “era imaginária” pode ser representada pelo
“afloramento” uma cultura - nesse caso a América figuraria como uma “era
imaginária”. É impostante lembrar que esse conceito é trans-geográfico e
trans-histórico, o que faz com que uma “era imaginária” possa aflorar em outra:
A través de esos enlaces retrospectivos, precisamos la vivencia de la aporroia
de los griegos, de su concepto de la evaporación, y cómo esa tendencia para el
anegarse en el elemento neptunista o ácueo del cuerpo, ha estado presente con
milenios de separación, en un poeta contemporáneo, en un monólogo de Hamlet, en
los peculiares modos de conversación de un emperador romano y en los conceptos
movilizados casi con fuerza oracular por el pueblo griego (LEZAMA LIMA, 1993a, p. 60).
A reconciliação do sujeito metafórico com a
perspectiva das “eras imaginárias” permite uma “queda na linguagem”. Uma
espécie de mergulho que, ao meu ver, desloca a noção de leitura como
interpretação para a caracterização da leitura como intervenção. Mais do que
encontrar um determinado sentido no texto, Lezama age sobre ele, devolvendo
potência ao objeto. Essa é a “técnica do contraponto”, que funciona
principalmente como um elogio à liberdade. É o que o escritor desenvolve, por
exemplo, na leitura de Popol Vuh, relacionando-o com fragmentos da
Bíblia, da Odisséia, e do Baghavad Gita.
O método do contraponto opera em prol de um
movimento em busca de analogias que façam o texto funcionar. Essa força, no
entando, não deve ser pensada sem as imagens: “Se a potência atuasse sem a
imagem, seria tão-somente um ato auto-destrutivo e sem participação” (LEZAMA, 1993,
p. 88).
O elogio da imagem não é um fenômeno
restrito ao trabalho de Lezama Lima. O filme Blow-up, de Michelangelo
Antonioni, é um caso interessante. O filme foi lançado no mesmo ano que o poeta
cubano publicou Paradiso, em 1966. Antonioni, que participara ativamente
do cinema neo-realista italiano, apresentava, em Blow-up [8], uma visão bastante interessante
sobre a relação entre a imagem e a realidade. O enredo quase caótico da
produção parece levantar uma séria reflexão sobre a capacidade das imagens suplantarem
a realidade e, conseqüentemente, a própria história.
Thomas, um fotógrafo fatigado pelo
“cotidiano de estéril fixidez”, resolve passear por um bosque nos arredores de
Londres. Lá, encontra um casal desconhecido e resolve fotografá-lo. Quando revela
as fotografias, percebe um suposto assassinato. Todos os indícios apontam para
a concretização do ato criminoso, no entanto, Thomas está fadado ao fracasso,
já que não consegue prová-lo. Cansado da realidade e impossibilitado de
abstrair os fatos, transformando hipóteses em provas, o fotógrafo entra no
“jogo” das imagens. É o que pode ser visto na seqüência final do filme, na cena
em que Thomas assiste a uma partida imaginária de tênis, jogada por um casal de
mímicos. Num determinado momento, os jogadores pedem para que o fotógrafo pegue
a bola imaginária que escapara da quadra. Thomas resolve apanhá-la e devolvê-la
aos mímicos.
A metáfora dos jogadores é válida,
pois seria preciso “jogar” para não ser “engolido” pelo real. É como se o
fotógrafo, ao invés de buscar a realidade fora da caverna de Platão, se
contentasse com as sombras projetadas nas paredes da caverna. Não haveria,
assim, um dentro ou um fora, mas apenas um entre-lugar, uma paisagem, um
“espaçamento” fugidio. Muito semelhantes e completamente outros, Antonioni e
Lezama talvez pertençam a uma mesma “era imaginária”, aquela que tem a
(in)consciência de um real entre aspas.
3.
Em Lezama, a discussão sobre
imagem-tempo não deve ser dissociada de uma aproximação com o movimento
barroco.
Já em 1948, em um estudo sobre o
pintor Roberto Diago, Lezama observa que o verdadeiro barroco se realiza em
plenitude no Novo Mundo[9]. Num exercício lúdico com a
linguagem, o poeta substitui a noção de arte da contra-reforma por arte da
contra-conquista. Essa seria a grande afirmação da cultura americana em relação
à cultura européia. No Brasil, uma força semelhante pode ser encontrada nos
ideais da antropofagia de Oswald de Andrade. O autor de Poesia Pau-Brasil, de
1925, seria um entusiasta de uma arte que tenta fundar seus pilares na síntese
entre Europa e Brasil, seja ela de vertente vanguardista, industrial,
internacional ou nacional, natural e pré-colombiana.
O barroco de que fala Lezama é um
outro barroco, não especificamente o movimento do século XVII, reinventado por
estudos literários do século XIX, como os de Wöllflin, mas um barroco
“pulsante”, impossível de ser desvinculado da constatação de que ele não pode
ser caracterizado apenas como uma expressão do século XVII, já que o tempo é
uma miragem. Esse Barroco trans-histórico do escritor se contrapõe
violentamente ao barroco tradicional:
Cuando era un divertimento, en el siglo XIX, más que
la negación, el desconocimiento del barroco, su campo de visión era en extremo
limitado, aludiéndose casi siempre con ese término a un estilo excesivo,
rizado, formalista, carente de esencias verdaderas y profundas, y de riego
fertilizante (LEZAMA LIMA,1993a, p.79).
Ao contrário de Antonio Candido, que
defenderia alguns anos depois, no livro Formação da Literatura Brasileira[10], a literatura do século XIX como
produto e elemento produtor da nação, Lezama percebe no barroco o momento
privilegiado do nascimento da cultura americana. Por meio do barroco, o
americano é que conquistaria o europeu, na mestiçagem da obra, na síntese entre
o estilo europeu e americano.
O barroco americano não teria
necessariamente as mesmas características que o barroco europeu. Dois de seus
fortes elementos seriam: a tensión e o plutonismo. A tensão não
seria a mera justaposição de elementos díspares - como no caso do europeu - mas
uma combinação que pretenderia alcançar uma “forma unitiva”. O plutonismo[11] romperia as imagens em fragmentos e
as reunificaria. O elemento seria responsável por estabelecer uma nova ordem
cultural. Analisando a imagem do plutonismo, Lezama observa a etimologia
da palavra “diabo”, do grego dia-ballein (separar, romper). A imagem
demoníaca é citada várias vezes pelo escritor, associada, por exemplo, com a
lepra de Aleijadinho.
No barroco europeu, ocorreria uma
acumulação sem tensão e assimetria sem plutonismo. É justamente nesses dois
pontos que o barroco americano iria se diferenciar do barroco tradicional. O
esforço do movimento americano seria o de encontrar uma forma unitiva que, ao
mesmo tempo, valorizasse a estética barroca e imprimisse na obra a arte da
contra-conquista, ao valorizar a acumulação e a assimetria. As catedrais, por
exemplo, figurariam traços europeus e pré-colombianos. Um dos exemplos
apontados em La Expresión Americana é exatamente o da arquitetura:
En
la portada de San Lorenzo, de Potosí, en medio de los angelotes larvales, de
las colgantes hojas de piedra, de las llaves que como galeras navegan por la
piedra labrada, aparece, suntuosa, hierática, una princesa incaica, con todos
sus atributos de poderío y desdén (Lezama LIMA, 1993a, p. 83).
Não é à toa Lezama encontra em Aleijadinho a
manifestação da grande lepra criadora do barroco americano. Antonio Francisco
Lisboa é interpretado como o autor da grande síntese entre a forma grandiosa da
cultura européia e as culturas africanas. A lepra que atinge Aleijadinho é a
“raiz proliferante” da sua arte, já que a obsessão por não ser visto o leva a
trabalhar à noite, escondendo-se sob um chapéu, entregando-se completamente ao
trabalho: “llega como el espíritu del mal, que conducido por el angel, obra em
la gracia” (LEZAMA LIMA,1993a, p.106).
4.
Josely Vianna Baptista, no texto
“Cardume Argênteo de peixes verbais”, afirmou que “Lezama criou, com a unidade
de sua linguagem e movente geometria de luzes em que um texto ilumina outro, um
universo literário e cultural de intrigante beleza” (BAPTISTA in LEZAMA
LIMA,1993, p.111). A chave do labirinto só serviria para fornecer o pensamento
confortante de que se pode sair ileso dele. Talvez bastasse dizer que o
labirinto, assim como o cardume de peixes verbais, também é só uma imagem. E se
tudo é uma grande ficção, experiência de um Aleph, nunca estivemos
dentro ou fora da casa do Minotauro. Lezama quebra os muros, desconstruindo seu
próprio labirinto. A imagem, assim, transcende o tempo. A constatação é a
expressão de um “impossível realizado”, Aleph tornado real.
Natureza, cultura, imagem e “estória”
convivem, assim, numa harmonia mágica capaz de oferecer ao europeu o turbilhão
audacioso da expressão americana. Subentende-se, em Lezama, o ideário de uma
catequese ministrada agora pelo colonizado. Nada seria mais estranho na
arquitetura, na pintura, ou na literatura, que uma subserviência ao regime
hostil do “pai” colonizador, já que o “Novo Mundo” já existia antes de
Colombo.
Mais do que uma tensão iluminadora, a
perspectiva barroca de Lezama permite que a cultura americana possa ser pensada
como um banquete antropofágico, à maneira de Oswald de Andrade. A expressão
desse espaço gnóstico se justificaria num mundo pré-lógico, poético por
excelência, onde mito e poesia seriam amalgamados. Tal ousadia literária
permite que o “etrusco de la Habana vieja” relacione saberes oriundos das mais
diversas culturas, sejam elas americanas, européias, ou orientais, inventando
um tempo que suplanta a história e um espaço que semeia no telúrico a potência
do estelar.
5
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Infância e
História: Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2005.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito da
História. In: Magia e Técnica, Arte e Política. 7 ed. São Paulo:
Brasilense, 1994. (Obras Escolhidas vol I) (p.222-232)
BORGES,
J. L. Aleph. Rio
de Janeiro: Globo, 2001.
CAMPOS, H. de. O seqüestro do
barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos.
2ed. Salvador: FCJA, 1989.
CHIAMPI, I. Barroco e Modernidade.
São Paulo: Perspectiva-FAPESP, 1998.
DERRIDA, J. Posições. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
DOURADO, A. Proposições sobre
labirinto. In: O meu mestre imaginário. Rio de Janeiro: Record, 1982.
(p.67-77)
LIMA, J. L. Em uma exposición de
Roberto Diago. In: La Visualidad Infinita. Cuba: Editorial Letras Cubanas, 1994.
(p.269-274)
____. Fugados. São Paulo:
Iluminuras, 1993.
____.
La Expresión Americana. México: Fondo de Cultura Económica, 1993a.
____. Paradiso. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
MARTINEZ,
R. M. Paradiso, Cuartena Años.
SARIOL,
J. P. Los años de Orígenes. In: VIZCAINO, C; GALBAN, E. S. (ORG). Poesía: Coloquio
Internacional sobre la obra de José Lezama Lima. Espanha: Espiral/Fundamentos, 1984. (p.37-57)
[1] Jeff
Jeffries é o nome da personagem protagonizada por James Stewart, em Rear Window
(Janela Indiscreta), de Alfred Hitchcock. Jeff é um jornalista que observa com
um binóculo os dramas privados da vizinhança. A personagem imagina ter
presenciado um assassinato.
[2] Abel Prieto, em oposição a essa concepção, defende a idéia
de que Lezama Lima não construiu labirintos:
“Si
algo puede sintetizar la diferencia entre Borges y Lezama, es el amor del
primero hacia los laberintos que puede generar la cultura, y la obsesión del
segundo porque la cultura nos ayude a derribar los muros que segmentan el
pensamiento de los hombres, su forma de concebir el universo y de relacionarse
con él. Frente al dédalo borgiano, se extiende el espacio gnóstico que Lezama
fundó para Nuestra América” (PRIETO apud MARTÍNEZ, 2006, p.4).
[3] Em 1988,
a editora Brasiliense publica uma tradução do livro, realizada pela professora
Irlemar Chiampi.
[4] A
revista contou com a participação de escritores como Eliseo Diego, Fina García
Marruz, René Portocarrero e Citio Vitier. José Prats Sariol, no artigo “La
Revista Orígenes”, apresentado no Colóquio Internacional sobre a obra de José
Lezama Lima, realizado em Potitiers, na França, em 1982, observa: “(...) era
una revista abierta al talento, sin parcializaciones cronológicas o sectarismos
estilísticos (...). La
plena conciencia de lo nacional, sin absurdos chauvinismos retardatarios, no
sólo se ejemplifica en la actitud y en los pronunciamientos de los principales
autores del grupo, sino también en la inclusión de algunos artículos de
escritores extranjeros” (1984, p. 48-50).
[5] Lezama já
vinha publicando esparsamente na revista Orígenes capítulos do livro. Paradiso,
uma espécie de romance-barroco em que a experiência erótica com a linguagem é
levada ao extremo, narra a história de José Cemí, bem como o seu encontro com a
poesia. Em torno da figura de Cemí, Lezama conta a história de sua própria
família e de seu país. A poeta Josely Vianna Baptista trans-criou o
livro para o português. A versão brasileira completa vinte anos, em 2007.
[6] Chiampi
observa que essa proliferação acontece em quatro níveis: a proliferação de tipo
sintático, que desvia o curso da narrativa pela inserção de um relato; a
proliferação de tipo narracional, que consiste na multiplicação dos
signos da enunciação, em que o narrador surpreende o leitor com a mudança da pessoa
responsável pela emissão do relato; a proliferação de tipo verbal, em
que os objetos, por exemplo, são descritos por meio da multiplicação de
significantes; e, por fim, a proliferação semântica, que é definida como
a produção de signos, não em torno de uma palavra, mas em torno de um efeito de
sentido (CHIAMPI, 1998, p. 130-131).
[7] Essa
visão está presente na concepção romântica de Schelling.
[8] Blow-up,
traduzido para o português como Depois daquele Beijo, foi inspirado no
conto “Las babas del diablo”, de Cortázar, presente no livro Las armas
secretas.
[9] O artigo
pode ser encontrado no livro La Visualidad Infinita, de Lezama Lima,
1994.
[10] Haroldo
de Campos, em 1989, publica O seqüestro do barroco na formação da literatura
brasileira: o caso Gregório de Mattos, em que questiona a gênese proposta
por Antonio Candido.
[11]
Derivado de Plutão, deus do fogo, dos infernos, o fogo originário.
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