domingo, 1 de maio de 2016

OS SENTIDOS DA COLEÇÃO: VALÊNCIO XAVIER E POTY LAZAROTTO A PROPÓSITO DE FIGURINHAS



“Você pode contar nos dedos as pequenas delícias da vida,
entre elas a figurinha premiada da bala Zequinha,
um e outro conto de Tchecov”

Dalton Trevisan

Num dos fragmentos do texto “Sobre o conceito da História”, escrito em 1940, Walter Benjamin defende que o cronista que narra os acontecimentos, sem distinção entre os grandes e os pequenos, ao fazê-lo tem em conta esta verdade: “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado como perdido para a história” (1994: 223). Tratar das figurinhas das balas Zéquinha significa travar um contato com cacos da história. A recriação desse universo operada por Valêncio Xavier e Poty Lazarotto propiciou não só uma redescoberta desses cacos, escavados por meio de um trabalho de cunho arqueológico, mas principalmente a possibilidade de reinventar a história, já que o passado abordado por ambos nunca cessa de se reconfigurar em suas imagens. Esse jogo criado por Valêncio e Poty poderia ser pensado a partir de uma noção benjaminiana de tempo, não cabendo dizer que o passado ilumina o presente ou que o presente ilumina o passado. Os textos fazem parte daquelas imagens nas quais o pretérito encontra o agora num “relâmpago” capaz de formar uma “constelação”. A partir de uma perspectiva anacrônica poderíamos arriscar dizer que, nessa constelação, o escritor e o gravurista, mais do que resgatar uma história perdida seriam, à maneira de Kafka, lido por Jorge Luis Borges, os precursores das famosas figurinhas. Não é outro o interesse de George Didi-Huberman quando observa que “ante una imagen – tan antigua como sea -, el presente no cesa jamás de reconfigurarse” (...). Ante una imagen  - tan reciente, tan contemporánea como sea -, El pasado no cesa nunca de reconfigurarse”(2006: 12). Nesse sentido, a imagem deveria ser pensada como uma construção da memória, sendo mais durável que o próprio ser que a mira -, e para entendê-la devemos, tal como defendia Benjamin, leitor de Freud, escavar como um arqueólogo, chamando a atenção para o fato de que o lugar dos objetos descobertos nos fala tanto quanto os próprios objetos.
A partir dessa afirmação tentarei, em um movimento a contrapelo, desembrulhar as balas, ou melhor, desembrulhar as imagens criadas por Valêncio Xavier e por Poty Lazarotto no livro A propósito de figurinhas, lançado em 1986. Poderíamos começar observando que ambos operam uma desmontagem da história, desenvolvendo um conhecimento mais sutil e mais completo do tempo, tendo consciência de que o resgate do passado, se não acontecesse aqui por meio de um procedimento poético, seria de antemão uma aposta perdida. Tal tarefa não seria estranha a um filósofo como Walter Benjamin, que soube encontrar na poesia de Charles Baudelaire as imagens dialéticas desencadeadas por um processo em que o passado se vê chocado e interpenetrado pelo presente. Valêncio e Poty, que assim como Baudelaire poderiam ser considerados bons trapeiros da memória[1], conseguem devolver potência à literatura no momento em que escapam de um passado fixo, propondo uma leitura da história a partir de um modelo dialético. Com isso quero dizer que a re-criação das figurinhas de coleção, desenvolvida na literatura, sem a pretensão de reproduzir o passado ou meramente abandoná-lo[2], reorganiza, reescreve a própria história como um fenômeno dialético.   
Em 1973, Valêncio Xavier desembrulhou pela primeira vez na literatura as balas Zéquinha. E ao desembrulhá-las embaralhou a história das famosas figurinhas que acompanhavam as balas. O estudo ganhou um nome sugestivo: “Desembrulhando as balas Zéquinha”. Treze anos depois, Valêncio convidou o gravurista Poty Lazarotto para confeccionar com ele a re-criação do universo de Zéquinha, o personagem que aparecia nas figuras. O trabalho consistia em propor uma leitura pessoal do personagem, um “direito de todo curitibano”, re-escrevendo uma narrativa que já na década de 20 era alinear e fragmentária. Poty desenhou com seu traço expressionista o personagem Zéquinha em diversas situações; Valêncio elaborou um pequeno texto para cada uma das ilustrações. Já no primeiro fragmento, aquele que se refere à figurinha n°1 (Tomando banho) e à figurinha n°2 (Pensando), podemos perceber que a questão do tempo está em jogo no livro A propósito de figurinhas:                               

            O Zequinha diz:
Pensando prevejo o passado
Passado a limpo penso perfeito
Pensamento que parto
Preste ou não preste
Passo pra frente
Portanto pondere:
Se presta prestigie, pegue procê

Se não presta, passe prô próximo (1986: s/p).

Nos textos, situados numa zona de indeterminação entre a prosa e a poesia, Valêncio gravou os escombros de uma história em ruínas, matéria prima, aliás, presente em grande parte de sua literatura intersemiótica. Não é à toa que tenha encontrado nas figurinhas uma das vertentes da literatura visual:

É preciso lembrar que a literatura em imagens tem suas vertentes, que são as histórias em quadrinhos, a poesia visual e mesmo as figurinhas de coleção – desta última cito o extraordinário romance biográfico de um indivíduo chamado Zequinha, contado fora da ordem cronológica, que são as 200 figurinhas das balas Zequinha, publicadas em Curitiba a partir de 1928 (XAVIER, 2002: s/p).

Não seria fortuito observar que no Paraná há uma forte tradição dessa literatura visual, principalmente nas revistas ilustradas, desde a Joaquim até as mais recentes.

1.      No tempo das balas Zéquinha

As balas Zéquinha surgiram em Curitiba em 1928. Foram criadas pela fábrica Brandina, dos irmãos Sobania, com desenhos de Alberto Tile e outros, impressas pela Impressora Paranaense. A série das figurinhas foi aumentando gradativamente, contando com 200 figurinhas algum tempo depois de lançadas. A distribuição foi encerrada em 1940. No mesmo ano, a Fábrica de Irmãos Franceschi relançou o famoso personagem em suas balas, que circulou até 1955.  Na seqüência, a Fábrica de Balas São Domingos, de E. J. Gabardo e Massochetto, as fez circular até 1967.  Depois disso, as balas só voltaram a aparecer em 1974, por pouco tempo.
As cenas retratadas nas figurinhas apresentavam situações vivenciadas por seu personagem. A maioria das ações eram típicas, como um passeio, um descanso, um banho, mas em outras, Zéquinha poderia nos surpreender fazendo uma viagem à lua, fumando, participando de uma tourada, ou mesmo cometendo suicídio. Esse estranho personagem, uma espécie de Macunaíma curitibano, poderia ser entendido como um sinônimo do homem que faz de tudo; nas palavras de Valêncio Xavier um sinônimo de nós mesmos, “que temos que enfrentar qualquer batente para garantirmos o pão nosso de cada dia, se possível com manteiga fresca” (XAVIER, 2000: s/p). Enfim, essa história alinear poderia ser lida como um romance sobre a vida de um curitibano típico, um romance onde “a imaginação, a fantasia e a incoerência andam de mãos dadas” (XAVIER, 2000: s/p).
Devemos considerar que as figurinhas não estão dissociadas do largo processo industrial desencadeado no século XIX. No texto “Antes das figurinhas de coleção”, publicado na Gazeta do Povo, Valêncio apresenta uma breve história:

Ela teria surgido no último quartel do século 19, na Europa, inicialmente nos pacotes de fósforos e depois em alimentos enlatados. No Brasil as figurinhas foram introduzidas pelas fábricas de charutos do Norte do país, ao final do século 19, trazendo imagens eróticas. E logo vieram para o Sul através dos maços de cigarros, e mais tarde nas balas, atingindo assim o público infantil (XAVIER, 2000: s/p).

 Com o aprimoramento da indústria gráfica, que permitia a impressão em série e em boa qualidade, as figuras se espalharam pelo mundo e bem poderiam figurar entre aqueles objetos “antiquados”, que foram objeto de interesse a partir do século XIX e que seriam valorizados pelos surrealistas no século XX. Walter Benjamin percebeu que os surrealistas foram os primeiros a descobrir a mitologia moderna embutida no século XIX, bem como as energias revolucionárias que aparecem nas coisas “antiquadas”. Logo, esses pequenos pedaços de papel, que fariam parte da mitologia paranaense nas primeiras décadas do século XX, nos dizem mais do que aparentemente mostram.
Não é à toa que Benjamin em Passagens, obra que se debruça sobre o século XIX, tenha dedicado um de seus capítulos à figura do colecionador. O grande mérito do colecionar estaria, para o filósofo, relacionado ao fato de desligar o objeto de todas as suas funções primitivas (2006: 239). Essa atividade estaria situada sob a categoria singular da completude, oposta a qualquer idéia de utilidade. Mas que vontade de completude seria essa? O escritor das Passagens responde: “É uma grandiosa tentativa de superar o caráter totalmente irracional de sua mera existência através da integração em um sistema histórico novo, criado especialmente para este fim: a coleção” (2006: 239). Se o colecionador seria responsável por criar um sistema histórico novo é porque a desfuncionalização dos objetos (in-operance, diria-nos Jean-Luc Nancy), e uma possível reorganização do todo, o permite fazê-lo. O encantamento do colecionador consistiria em inserir a coisa particular em um espaço mágico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre um último estremecimento (o estremecimento de ser adquirida). É o que o autor das Passagens conclui ao pensar na noção de percepção proposta por Henri Bergson:

Ao final de Matière et Mémorie, Bergson desenvolve a idéia de que a percepção é uma função do tempo. Poder-se-ia dizer que, se vivêssemos segundo outro ritmo – mais serenos diante de certas coisas, mais rápidos diante de outras -, não existiria para nós nada “duradouro”, mas tudo se desenrolaria diante de nossos olhos, tudo viria de encontro a nós. Ora, é exatamente isso que se passa com o grande colecionador em relação às coisas. Elas vão de encontro a ele. Como ele as persegue e as encontra, e que tipo de modificação é provocada no conjunto das peças por uma nova peça que se acrescenta, tudo isto lhe mostra suas coisas em um fluxo contínuo (2006: 239-240).

Poderíamos pensar, à luz das ponderações misteriosas de Walter Benjamin, que o colecionador vive um pedaço de vida onírica, “pois também no sonho o ritmo da percepção e da experiência modificou-se de tal maneira que tudo – mesmo o que é aparentemente mais neutro – vai de encontro a nós, nos concerne” (2006: 240). Mas não é apenas nas Passagens que Walter Benjamin analisa essa figura. Em um dos fragmentos de Rua de Mão Única, ele elabora um discurso sobre o colecionador. No excerto intitulado “Desempacotando minha biblioteca”, o que o teórico fala sobre a coleção de livros poderia servir para as figurinhas, que alimentam uma paixão semelhante a do colecionador de livros. Os dois casos configurariam o caos das lembranças. A existência desse apaixonado é uma tensão entre os pólos da ordem e da desordem e até mesmo o encontro do elemento pueril com o elemento senil. Aliás, nesse fragmento, o filósofo não esquece as figurinhas:

Eis que agora, por fim, caíram em minhas mãos dois volumes encadernados com papelão desbotado: dois álbuns de figurinhas que minha mãe colou quando criança e que herdei. São as sementes de uma coleção de livros infantis que ainda cresce constantemente ainda que não seja no meu jardim (2000: 234).

Caberia perguntar se a figura de Valêncio Xavier estaria mais próxima do colecionador ou do alegorista. Para Walter Benjamin, o alegorista é por assim dizer o oposto do colecionador:

Ele desistiu de elucidar as coisas através da pesquisa do que lhes é afim e do que lhes é próprio. Ele as desliga de seu contexto e desde o princípio confia na sua meditação para elucidar seu significado. O colecionador, ao contrário, reúne as coisas que são afins; consegue, deste modo, informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou de sua sucessão no tempo (2006: 245).

No entanto, Benjamin não deixa de considerar que em cada colecionador esconde-se um alegorista e em cada alegorista, um colecionador[3]. Para o colecionador, a coleção nunca está completa. Se lhe falta um objeto, a obra estará incompleta, será fragmentária, como é desde o princípio para o alegorista. Já este nunca terá acumulado coisas suficientes, sendo que uma delas “pode tanto menos substituir a outra que nenhuma reflexão permite prever o significado que a mediação pode reivindicar para cada uma delas” (2006: 245). Cabe lembrar que o interesse de Benjamin pela alegoria não surge nas Passagens. Já em Origem do drama barroco alemão o filósofo está interessado na esfera do alegórico, em que a imagem aparece como fragmento e ruína.

2.      Colecionando figurinhas

Vejamos um fragmento do livro, a figurinha n° 16 (Na Guerra). Trata-se da simulação de uma projeção cinematográfica. A ilustração de Poty explicita o fato ao apresentar o tema do texto, a guerra, em um fotograma de película. Entre o homem e a guerra, a lente da câmera, a tela de cinema como prótese do olhar[4], a construção de uma realidade “outra”:

Paguei entrada para ver a guerra e daqui não saio antes de estourar a cabeça do último boche.
A guerra só vimos na tela. Nem eu nem você vimos a guerra de perto com a FEB na Itália, com as forças de paz em Suez.
Pichando muros, lutamos para não nos mandarem para a Coréia, nem prô Vietnam. E não fomos.
Já para a República Dominicana não deu e lá fomos passar vergonha. Fomos porque fomos obrigados. Era noite sem lua e brilhavam as estrelas nas fardas verde-oliva dos generais. Tivemos que ir. Mas, nunca mais.
Esta terra sem dono (1986: s/p). 


Outro fragmento, o da figurinha de n° 39, também nos mostra que o universo de Zéquinha na literatura não é romântico, nem desinteressado. Uma preocupação com as questões histórico-sociais vão se delineando ao longo do álbum. Neste caso, a figurinha alude ao golpe militar de 1964. Na ilustração, podemos perceber uma espécie de alaúde mesclado ao rosto de Zéquinha. No caixote está contida uma espada e na parte superior, um quepe militar. A combinação dos elementos poderia ser lida como uma metáfora do fim da ditadura. Em 1986, abria-se o processo de redemocratização, permitindo aos autores reverem criticamente – ou melhor, dialeticamente -, a história recente do Brasil:  



Primeiro de abril, abril o curral e as vacas fardadas vieram comer na nossa horta.
Bão-ba-lalão, senhor capitão, espada na cinta ginete na mão. Baixa o cacete sem dó nem perdão.
Marcha civil, cabeça de papel, se não marchar direito vai preso prô quartel.
Quartel pegou fogo promova o general. Acuda o dedo-duro de óculos escuro.
Um, dois, o pior vem depois. Três, quatro, falta feijão no prato.
Aí cinco, seis, azar de vocês. Vinte anos, todos nos danamos.
Viva a Revolução, salve a corrupção. Suba a inflação, lugar de brasileiro é na prisão. Acuda acuda acuda a bandeira nacional (1986: s/p). 

Poderíamos pensar que Valêncio Xavier e Poty, ao forçarem um remanejamento da ordem anterior, função da própria coleção, ressignificam o passado e os objetos. Esse processo, tão caro à alegoria, não esquece a sua principal característica: a tendência para o fragmentário. Os textos são pequenos recortes que lembram a prosa sintética alcançada por Dalton Trevisan ao longo dos anos 90. Contribui para esse fato as gravuras de Poty, aliás, ilustrador de alguns livros de Trevisan. Lembram também os poemas concisos de Chico Alvim, com seus retratos mordazes das situações cotidianas que constroem “pedaços” precisos de toda uma história social. Ou mesmo os pequenos Incidentes, em que Roland Barthes retrata cenas de uma viagem que fez ao Marrocos. Lembram a coleção de monstruosidades de Farnese e Francisco Brenand. Esses fragmentos não estariam desvinculados de uma escritura que descortina no mínimo poético o múltiplo real. Colecionar esses incidentes seria também uma “forma de recordação prática e de todas as manifestações profanas da ‘proximidade’, a mais resumida” (BENJAMIN, 2006: 239). Poderíamos perguntar até que ponto essas construções conseguem captar o “real”, mas a pergunta seria infrutífera num momento em que esse “real” deixou de ser para nós um lugar seguro, delimitado, circunscrito, verificável. Essa realidade talvez seja apenas um jogo, ou mesmo uma tela de cinema, uma prótese da percepção, como nos diria Susan Buch-Morss. O que importa é que tais imagens nos ajudam a escrever um olhar, ao apontarem para uma estranha questão:
Por um lado, o objeto memorizado se aproximou de nós: pensamos tê-lo “reencontrado”, e podemos manipulá-lo, fazê-lo entrar numa classificação, de certo modo temo-lo na mão. Por outro, é claro que fomos obrigados, para “ter” o objeto, a virar pelo avesso o solo imaginário desse objeto, seu lugar agora aberto, visível, mas desfigurado pelo fato mesmo de pôr-se a descoberto: temos de fato o objeto, o documento, mas seu contexto, seu lugar de existência e de possibilidade, não o temos como tal. Jamais o tivemos, jamais o teremos (DIDI-HUBERMAN, 2006: 176).


  1. Referências

BUCH-MORSS. The Cinema Screen as prothesis of perception: an historical account. IN: The Senses Still. Perception and Memory as Material Culture in Modernity. Ed. C. Nadia Seremetakis, Chicago and London: The University of Chicago Press, 1994.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas; v.I)
____. Rua de mão única. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. (Obras Escolhidas; v. II)
____. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
____. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
DIDI-HUBERMAN, G. Ante el tiempo: historia del arte y anacronismo de las imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2006.
____. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
XAVIER, V. As figurinhas mostram o Brasil. In: Gazeta do Povo. Curitiba, 2002. (7 de maio de 2000). (s/p)
____. A tragédia de um amor em figuras. In: Gazeta do Povo. Curitiba, 2002. (5 de maio de 2002). (s/p)
____. Figurinha manjada. In: Gazeta do Povo. Curitiba, 2000. (29 de março de 2000). (s/p).
XAVIER, V.; LAZAROTTO, P. A propósito de figurinhas. Curitiba: Studio R. Krieger, 1986. 





[1] Charles Baudelaire, no poema “O Vinho dos Trapeiros”, presente nas Flores do Mal, associa a figura do trapeiro à do poeta. Walter Benjamin, em Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo, observa que “os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico” (1994: 78). Valêncio Xavier e Poty Lazarotto, em A propósito de figurinhas, parecem também colher, à maneira de Dalton Trevisan, trapeiro dos “inferninhos”, o lixo da sociedade nas ruas e na vida privada. Esse lixo aparece na figura do embriagado, do louco, do sonâmbulo entre outras imagens. Em todos os casos, são restos da sociedade e ruínas da história.   
[2] Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos olha, comenta o mérito da noção de imagem dialética, proposta por Walter Benjamin: “A grande lição de Benjamin, através da sua noção de imagem dialética, terá sido nos prevenir de que a dimensão própria de uma obra de arte moderna não se deve nem à sua novidade absoluta (como se pudéssemos esquecer tudo), nem à sua pretensão de retorno às fontes (como se pudéssemos reproduzir tudo)” (1998: 193).
[3] Parece-nos que Valêncio está mais para um alegorista do que para um colecionador. Prova disso são as figuras fora de ordem, de tempo. Ele elege algumas e oblitera outras. Reescreve-as segundo as impressões mais absurdas, que estariam distantes de qualquer pretensão “positivista” de resgate histórico. São apenas 30 figuras apresentadas no livro. Da primeira e da segunda o salto é para a figura 28. A leitura paródica que faz de Zéquinha é mais um sintoma da profanação alegórica do livro.
[4] Susan Buck-Morss, no texto “The Cinema Screen as prothesis of perception: an historical account”, desenvolve uma análise da tela de cinema como prótese de percepção, um instrumento capaz de tornar ausente o real: “O que conta é o simulacro, o objeto não corpóreo por detrás. Na cognição protética do cinema, a diferença entre documentário e ficção, portanto, é apagada. Claro que ainda “sabemos” que são diferentes. Mas habitam a superfície da tela como equivalentes cognitivos. Ambos o acontecimento real e o encenado estão ausentes” (1994: 5-6).  

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