Giorgio Agamben
Giorgio
Agamben, no prefácio de Estâncias chama
a atenção para o fato de que se a crítica se identifica hoje com a obra de
arte, “isso não acontece por ela também ser criativa, mas sim por ela ser
também negatividade” (2007, p. 10). Nesse sentido, mais do que reencontrar o
objeto, dissecá-lo, como fizeram os estruturalistas, na expectativa de explicar
o funcionamento de um aparelho, de uma máquina, de um corpo, a crítica deveria
garantir “as condições da inacessibilidade desse objeto”. Ainda no prefácio, o
filósofo italiano, tocado pelas questões da negatividade, lembra de uma cisão
que se produziu desde a origem de nossa cultura e que se costuma aceitar como
realidade natural. Agamben se refere à cisão entre a filosofia e a literatura,
que se solidificou a partir de Platão. Resultado: A poesia acabou gozando do
objeto sem o conhecer. E a filosofia, por sua vez, conhecendo o objeto sem o
possuir.
O
que Agamben está querendo mostrar é que essa cisão merece ser interrogada já
que a poesia pode se voltar para o conhecimento, assim como a filosofia pode se
voltar para o gozo, para a alegria. E
aqui, abrindo um parêntese em nossa reflexão, não poderíamos nos furtar de
perceber o interesse que um filósofo como Agamben vem nutrindo pela literatura,
como uma possibilidade para o próprio filosofar, assim como uma série de
críticos literários vêm se interessando cada vez mais pela filosofia como uma
forma de refletir sobre a literatura. As colocações de Agamben sobre a cisão incitam
a uma reflexão sobre a crítica, que “não representa nem conhece, mas conhece a
representação” (AGAMBEN, 2007, p. 13). Essa operação nos convida a “buscar o
gozo daquilo que não pode ser possuído”, bem como “a posse daquilo que não pode
ser gozado” (2007, idem). O que nos leva a questionar o significado da crítica,
problematizando-a a parir da etimologia da palavra, que vem do grego Krinein que quer dizer “julgar”. Tristão
de Ataíde referiu-se ao tríplice movimento em que se processa a crítica: “O da
submissão à obra, o da dissecação da obra e o da recomposição da obra através
das impressões recebidas” (ATAÍDE apud COUTINHO,
1975, p. 155). Mas hoje, pergunto, que sentido tem para um crítico perguntar
simplesmente se determinada obra é boa ou má, em um momento em que as certezas,
os julgamentos de valor, são cada vez mais abaladas?
Alceu Amoroso Lima, vulgo Tristão de Ataíde
A pesquisadora Leyla
Perrone-Moisés observa que “no mal-estar de um julgamento cada vez mais
desprovido de critérios estáveis, a crítica, modesta, contentou-se em explicar
os textos ou, “científica”, pôs-se a analisar” (1998, p. 9). Depois de uma obra
como o “Urinol”, de Duchamp, como julgar todas as outras? Tocamos nessas
questões apenas para pontilhar os impasses com os quais convive a tarefa do
crítico. Se a sua tarefa é garantir as condições da inacessibilidade de um
objeto, parece cair por terra o binômio bom/mal que encerra um julgamento de
valor e a figura do crítico como um juiz do Tribunal da Santa Inquisição.
Bastaria lembrar das colocações de Walter Benjamin sobre a fissura criada pelos
românticos na tradicional concepção de crítica:
Apenas
com os românticos se estabelece de uma vez por todas a expressão “crítico de
arte” em oposição à expressão mais antiga “juiz da arte”. Evitava-se a
representação de um tribunal constituído diante da obra de arte, de um veredito
fixado de antemão como lei escrita ou não escrita (...) (BENJAMIN, 2002, p.58).
Tradicionalmente,
o crítico é aquela figura autorizada que, antes de dar o veredito, decifra os
mistérios da obra, como se o livro se constituísse como um manancial de segredos
merecedores ora de um “sim”, ora de um “não”. Mas ao invés de falar em
segredos, prefiro pensar em enigmas. Para Mallarmé, na poesia deve sempre haver
enigma, ele é o objetivo da literatura. O mesmo enigma - o indizível - que
Agamben (2006) apontaria no poema “Eleuzis”, de Hegel, dedicado a Hölderlin.
Advém daí uma concepção de poesia enigmática, em que tudo o que é sagrado e
quer permanecer sagrado se envolve em mistério, como diria o poeta de “Um lance
de dados”, no artigo “L´Art pour le tous” (PEYRE, 1983, p. 37). Se o enigma é o
objetivo da literatura, porque não o seria também da crítica?
Mallarmé
Um dos filósofos
que se dedicou ao estudo do enigma foi Walter Benjamin. Em uma das passagens de
seu ensaio Las afinidades electivas de
Goethe, Benjamin contrapõe o comentador ao crítico, descrevendo aquele como
uma espécie de químico e este como um alquimista. Pensemos numa fogueira em chamas: enquanto
que para o químico só interessa como objeto de análise madeiras e cinzas, para
o alquimista só a chama mesma conserva um enigma: o da vida (BENJAMIN, 2000, p.
14). Reflexões semelhantes aparecem na tese de
Benjamin sobre o barroco. Nela, Benjamin pressupõe a crítica como mortificação
das obras, “não um despertar da consciência nas que estão vivas, mas uma
instalação do saber nas que estão mortas” (1984, p. 203-204). Manter o objeto
inacessível é manter o enigma e não eliminá-lo, devolvendo potência a ele,
fazendo sua força entrar em contato com outras forças. É também, para usar uma
terminologia do crítico argentino Raul Antelo, lendo Murilo Mendes, entender o
texto como “museu imaginário”, um museu que “acena para as virtualidades de
texto muito mais de que para as realizações de texto, para suas falhas muito
mais do que para suas falas” (2001, p.111).
Um comentário:
Criticar é também "colocar em crise" em um certo sentido, não? (não lembro onde li isso).
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