Alberto Pucheu
Há algum tempo venho pensando no ensaio como o
lugar privilegiado onde tem se dado o idílio entre a crítica e a arte, a
filosofia e a poesia. Isso não é novidade. Muitos têm refletido sobre o diálogo
entre a filosofia e a literatura no gênero ensaio ao longo da história, de
Montaigne a Agamben, mas cumpre ainda lermos como essa relação tem se
desdobrado na crítica do presente e como ela tem produzido gestos importantes
para a produção crítica e literária na contemporaneidade, transformando a nossa
maneira de pensar a crítica bem como a literatura do presente. Poderíamos citar um crítico como Alberto Pucheu que tem há algum tempo apontado para a
fertilidade de um exercício crítico pautado pela indiscernibilidade entre a
crítica, a filosofia, e a própria literatura. É o caso, por exemplo, de
sua leitura da obra de Antonio Cícero, publicada aliás em uma série destinada a
pensar nos limiares entre a crítica e a poesia. Refiro-me à Coleção Ciranda da Poesia, idealizada e
organizada por Ítalo Moriconi. No prólogo da Coleção aponta-se para um exercício
que motiva não apenas o trabalho de Pucheu, mas de outros críticos/poetas ou
poetas/críticos contemporâneos, participantes ou não da coleção:
Ciranda da Poesia é roda de leitura.
Poeta lê poeta que lê poeta. Crítico lê poeta que lê poema. Poema leitura de
poema, poesia e crítica, poesia é crítica. Leitura/escrita em movimento. A
Coleção Ciranda pretende levar ao leitor de poesia exercícios de análise
literária das obras de poetas contemporâneos. Aprender a ler poesia pela
prática da análise. Conhecer mais de perto alguns nomes significativos da
poesia e da crítica de hoje. Celebrar o trabalho do poeta. Estimular o trabalho
da crítica (MORICONI in PUCHEU, 2010, s/p - orelha).
Das
aventuras crítico-poéticas de Pucheu poderíamos apontar ainda o já citado livro
sobre Roberto Corrêa dos Santos, interessado em pensar no poema contemporâneo
enquanto ensaio teórico-crítico-experimental. Ou seja, trata-se nesse caso de
pensar filosoficamente e poeticamente na potência crítica, teórica e ensaística
da obra de Roberto Corrêa dos Santos. Segundo Pucheu, o poeta em questão leva a
demanda de uma crítica enquanto "atividade simultaneamente filosófica e
artística ou criadora ao extremo, acatando-a não apenas em seu texto como
também na própria concepção dos livros-objetos, de livros-de-artista"
(2012, p.10). Depreende-se da leitura crítica de Pucheu a poesia do poeta
Alberto Pucheu, tanto em relação à obra de Roberto quanto a de Giorgio Agamben.
Tal riqueza se manifestaria, então não apenas na obra de Roberto, mas também na
de Alberto[1].
Observemos um outro momento de leitura que se coloca em diálogo com essa
questão. Em um livro dedicado ao estudo da obra-pensamento de Giorgio Agamben,
Pucheu escreve:
Ao invés de se apropriar de seu objeto,
crítico é o pensamento que, através, de seus elementos constitutivos
colocadores dos signos de uma negatividade absoluta, resguarda a
inapreensibilidade e a inacessibilidade do objeto, mantendo sua pura e
constante liberdade. Fluente, deslizante no abismo do nada, tudo que se relaciona
com o positivo fica mantido em inteira contingência e suspensão. Ao invés de
apenas uma busca pelas condições de possibilidade do conhecimento, a crítica é,
primeiramente, uma garantia das condições de inacessibilidade ao objeto de
conhecimento do qual, entretanto, não abre mão, e de sua inapropriabilidade.
Destinando-se à reunificação da palavra ocidental fraturada, ela mistura o
filosófico ao poético na presentificação do negativo enquanto negativo, como
uma estância que se apropria do inapropriável devolvendo-o enquanto
inapropriável (PUCHEU, 2010a, 38-39).
Em
outros dois momentos do mesmo estudo, o poeta/professor/crítico avalia:
Se ainda se pode dizer que, como
sinalizadora da unificação possível do literário e do filosófico, a experiência
crítica trata da verdade, deve-se ao fato de que, no duplo sentido de seu
risco, nela, a verdade se arrisca e, arriscando-se, a crítica, como a
literatura e a filosofia, se apropria da linguagem da irrealidade, alcançando a
tarefa mais ambiciosa que jamais um ser humano confiou a uma criação sua (idem,
p. 39-40).
Isso não significa abolir um cancelar
para sempre as possibilidades de distinção entre os modos literários e
filosóficos da linguagem, mas, simplesmente, jogando com elas, brincando com
elas, restituindo-as à potência que as anima, amá-las, acreditar nelas a ponto
de as devermos destruir, falsificar, fazer delas uma nova felicidade, profaná-las,
usá-las e atualizá-las de maneira mais condizente com nosso tempo (idem, p. 42)[2].
Novamente,
o amor aparece como elemento fundamental da crítica em questão. E amar não está
desvinculado, aqui, de profanar.
Roberto Correa dos Santos
Alberto Pucheu, cuja crítica vem nos interessando sobremaneira nos últimos anos, tem apontado, num franco e fértil diálogo com a obra de Giorgio Agamben, para um pensamento que suplanta o mero caráter judicativo, alcançando a própria poesia, na sua dimensão inapreensível. Tal experiência pode ser tocada pelo universo da maquiagem, no qual a crítica "desenha, retoca, aumenta, retira, alonga, cobre, suaviza, interfere, enfim, ativamente no outro texto, descobrindo no antigo, novas redes de relações, outras possibilidades de contornos não antevistos, até chegar a composição de um novo texto" (2012, p. 60). Tal ideia é desenvolvida a partir da leitura da obra de Roberto Corrêa dos Santos, que pratica uma espécie de "ensaio-teoria-crítica-romance-poesia-conceito", levando a crítica ao que, no contexto das artes plásticas, foi chamado por Rosalind Krauss de "campo ampliado" ou "campo expandido". Trata-se de pensar a crítica a partir de um gesto interventivo (intervenção e não interpretação), ou mesmo a partir de "uma prática instauradora" (2012, p. 52). Escreve Pucheu ainda sobre Roberto: "Diante do texto abordado, diante do crime a ele cometido, tem-se uma crítica que assume para si a crueldade, a crueldade de uma crítica entendida, literária e criticamente, enquanto amor" (2012, p. 50).
[1]
Sobre a interessante e prolífica produção crítica de Alberto Pucheu destaco a
recente publicação do livro Kafka Poeta (2015),
no qual o ensaísta nos apresenta um olhar inusitado e poético sobre a "obra
menor", entenda-se textos curtos, do autor de O Processo; bem como o livro intitulado apoesia contemporânea (2014), que reúne boa parte de sua produção
crítica.
[2] Vejamos mais uma passagem de Pucheu sobre a
negatividade na arte/crítica contemporânea:
Nascido nesta ambiência, o
crítico enfrenta a contradição de encontrar o morto quando procurava o vivo, de
encontrar a sombra quando procurava a luz, de encontrar o inautêntico quando
procurava o autêntico, de encontrar o negativo quando procurava o afirmativo.
Esquecendo a arte, com seu conteúdo morto, sombrio, inautêntico, negativo; a
crítica aborda a arte com seu conteúdo. Do mesmo modo que, no império da
avaliação sob a medida do bom gosto, a arte procurou o mau gosto como saída
privilegiada, a arte do século XX se inclinou em direção ao que não pertencia à
arte, ou seja, estabeleceu como seu o privilégio da não arte, da arte. Fato que
ocorreu em manifestações como o ready made (...), causando a reversão da
compreensão do ato criador. Não à toa, aqui no Brasil, um dos artistas mais
importantes das últimas décadas do século XX foi Arthur Bispo do Rosário que,
interno na Colônia Juliano Moreira, nunca quis fazer arte, mas segundo suas
próprias palavras, obrigações a serem apresentadas perante o divino no dia do
Juízo Final (PUCHEU, 2010a, p. 36).
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