Caio Ricardo Bona Moreira
A própria foto não é em nada animada
(não acredito em fotos “vivas”)
mas ela me anima:
é o que toda aventura produz.
R. Barthes
“Fotografia” quer dizer “escrever com a luz”.
Fotos. Grafeim. É o que o Pires faz.
Um poeta que escreve com a luz.
Logo vi.
P. Leminski
1 INTRODUÇÃO
Esse
artigo é o resultado de uma aventura.
Posso
interrogar-me inicialmente para ver se descubro o motivo de tal escolha. Por
que falar sobre a relação entre fotos e poemas? Em que momento a palavra deixa
de cumprir seu desígnio, entregando-se às impressões imediatas da fotografia,
que assume a função de dizer? Por que a foto me anima se não é em nada animada?
Num
primeiro momento, bastaria desenvolver uma reflexão para descobrir que a
relação entre a fotografia e a poesia, que transcende um método de análise, não
é uma simples questão de código. Fotos e poemas escapam daquilo que caracteriza
cada uma de suas peculiaridades, aproximando-se daquela afirmação do fotógrafo
Mário Rui Feliciani: “O homem fotografa o que não consegue descrever e descreve
o que não consegue fotografar”.
O
objetivo dessa aventura é pensar o livro Quarenta clics em Curitiba,
como um passeio pela cidade de Curitiba, bem como pelo Dia do Juízo, anunciado
por Giorgio Agambem. A publicação é o resultado de uma parceria criativa entre
Paulo Leminski e Jack Pires.
Pesquisando
na Fundação Cultural de Curitiba, entre alguns dos textos originais de Leminski,
encontrei Quarenta Clics em Curitiba[1].
Há alguns anos alimentara o desejo de manuseá-lo. Quarenta clics não era
mais visto em livrarias, bibliotecas, ou em sebos. No Brasil, muitos textos
interessantes deixaram de ser reeditados, chegando ao esquecimento do grande
público. Ao mirar as fotografias do livro, imaginei a cidade de Curitiba
reinventada pelos dois poetas, um da palavra, outro da foto. A história que
vemos na imagem é também nossa, aquela que inventamos no texto.
A
Curitiba do livro é uma cidade de gente simples, dos pipoqueiros, dos menores
abandonados, da velha senhora que, sentada no banco na praça, olha para lugar
nenhum. É uma Curitiba que não existe mais, apesar de os personagens, mesmo
escondidos, continuarem sendo os mesmos.
2 QUARENTA CLICS EM CURITIBA
O projeto do livro nasceu no final do inverno de 1976. Toninho Vaz
lembra que a iniciativa foi do empresário Luiz Henrique Garcez de Oliveira
Mello, que fundara a Editora Etecetera e escolhera como trabalho de estréia a
edição de um livro de Leminski (2001, p. 191). Jack Pires vinha tirando
fotografias da cidade de Curitiba há algum tempo. A idéia era de misturar as
fotos com poemas. Para a época, a idéia era inovadora, pois não era comum que
poetas realizassem esse tipo de experimentação. Nesse caso, as fotografias
exerciam uma outra função, não funcionando apenas como elementos meramente
ilustrativos, mas como um fator constitutivo de seu conjunto. Logo, não são as
fotos que ilustram os poemas. Ambos dialogam na construção de um terceiro
texto, aquele que demonstra que a cidade é feita de imagens e palavras, e o
livro é a própria cidade.
Jack Pires era um paulista especialista em fotos do cotidiano. Toninho
Vaz lembra o encontro do fotógrafo com o poeta:
(...)
certa vez ele apareceu na Cruz do Pilarzinho com dezenas de fotos 18 X 24, que
seriam espalhadas pelo chão para permitir um a visão global do material.
Leminski buscou uma pasta de poemas no escritório e, junto com Alice, passaria
horas selecionando os textos que se identificavam melhor com as fotos (VAZ,
2001, p. 192).
As páginas não foram numeradas, o que criou a idéia de que esse mapa
urbano não teria centro, periferia, começo e fim. O livro da dupla saiu um ano
depois de Catatau, aquele que seria considerado o texto mais
significativo da produção de Leminski. Quarenta clics parece ser uma
tentativa de transcender as maneiras tradicionais de dizer. Logo, o lançamento
do livro participa daquilo que chamo de pós-literatura, pois Leminski não se
satisfaz com a literatura tradicional. O trabalho imprimiu-se num espaço em que
o processo de criação estava além do que tradicionalmente se caracteriza como
literatura. Esse exercício permitiu que o poeta se lançasse numa produção
intersemiótica, não se contentando com as “maneiras convencionais de dizer”,
apesar de, ao mesmo tempo, nunca abandoná-las, visto que a idéia de velho/novo,
em Paulo Leminski, tem uma outra dimensão[2].
No mesmo período, Leminski voltou-se para a música popular compondo, por
exemplo, como Ivo Rodrigues, do grupo Blindagem; Marinho Galera; Moraes
Moreira; Itamar Assunção e Guilherme Arantes.
Não foi por acaso que o poeta afastou-se do Concretismo, partindo da alta
racionalidade prevista pelo movimento para a radicalidade da poesia feita para
ser cantada: “quero fazer uma poesia que as pessoas entendam” (LEMINSKI e
BONVICINO, 1999, p. 111).
Foi nessa época, depois da publicação de Catatau, em 1975, que começou a trocar cartas com Régis Bonvicino,
um amigo responsável por estabelecer uma ponte entre a capital paranaense e a
efervescência cultural do eixo Rio-São Paulo. Numa das cartas, o curitibano
afirmava serem os tropicalistas os responsáveis por essa mudança estética:
“[...] foi Caetano e Gil quem furou o papo do concretismo, e veja que a revolução
do Caetano e do Gil dependeu enormemente do plano pragmático: do livro para o
disco, para o show” (idem, p. 111). Pode ser percebida nessas cartas a paixão
do poeta que não separava a arte da vida. Essa paixão apontou para a urgência
da comunicação e da fomentação de uma produção cultural séria e contínua. É o
que pode ser lido no fragmento em que Paulo Leminski coloca seu trabalho num
horizonte além da literatura:
[...] acho que estamos depois da literatura / não é preciso mais
combatê-la / o que nós estamos fazendo já não é ela / a produção dos signos /
de bens simbólicos / de mensagens / já ultrapassou a barreira da cultura verbal
/ em plena conquista de um espaço intersemiótico (idem, p. 33 – 34).
Influenciado pelas leituras da semiótica desde o início de sua relação
com os concretistas, passando pela forte presença que a reflexão sobre
linguagem marcou em Catatau em toda a
sua poesia, Leminski levava agora ao extremo a idéia de que a revolução da
poesia passava necessariamente pelo plano pragmático. Esse gesto em que a
comunicação começa a ganhar peso na discussão de Leminski, falo da década de
70, faz com que o poeta afirme a necessidade de escrever para muitos, tomando
cuidado, ao mesmo tempo, para não deixar que a arte perca o rigor. Basta
lembrar que Catatau foi considerado
por muitos, como um texto difícil, o que fez com que o poeta repensasse o seu
trabalho num contexto de aproximação da poesia com o universo do cotidiano:
“quero ser claro. Quero ser comunicação. Banal – nunca. Óbvio – jamais” (1999,
p. 149). Nota-se agora o motivo do imediato entusiasmo que levou Leminski a
trabalhar com Jack Pires.
3 IL GIORNO DEL GIUDIZIO
O que chama a atenção na
fotografia não é propriamente o ato de parar o fluir da vida, permitindo que
alguém observe atentamente cada detalhe, mas principalmente a sensação de
movimento que não cessa com a fotografia, projetando seus efeitos numa dimensão
quase mágica, aquela do “isso ainda está aqui”, ou “isso realmente aconteceu”.
O momento da rápida impressão se estende num reflexo daquilo que ainda poderia
estar acontecendo e também sobre a maneira como determinado ato está sendo
interpretado. Aqui, o que interessa, então, não é apenas o significado de uma
imagem, tomado como o outro lado de um determinado significante, mas a própria
expressão que engloba a si mesma como constituinte da significação. Nesse caso,
poesia e fotografia acabam criando um universo próprio, como se o livro não
fosse nada mais do que uma cidade, e a cidade, nada mais do que palavras e
imagens.
Mas o que a fotografia reproduz? A resposta vem de Barthes, um escritor
apaixonado pela Fotografia:
O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete
mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o
acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ele reproduz sempre o corpus
de que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a
Contingência soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a
Foto) em suma a Tique, a ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão
infatigável (BARTHES, 1984, p.13).
O registro fotográfico do cotidiano seria impossível na metade do século
XIX, pois o movimento das pessoas, marcado na cadência dos transeuntes, ficaria
ausente da imobilidade das coisas; as casas, praças e esquinas não andam. Logo,
o cotidiano não seria nada mais do que dois tipos de fantasmas, os que não
aparecem[3],
pois não estão parados, neste caso, os homens, e aqueles que ganham um
semblante fantasmagórico justamente por estarem parados, como o francês que
engraxava seus sapatos em Boulevard du Temple. É esse gesto ínfimo de
“ficar parado” que revela a grandiosidade do registro do cotidiano por meio da
fotografia. É o que Agambem cita como Il Giorno del Giudizio:
Non saprei fantasticare un’immagine piú adequata Del Giudizio
Universale. La folla degli umani – anzi l’umanità intera – è presente, ma non
si vede, perché il giudizio concerne uma sola persona, uma sola vita: quella,
appunto, e non altra. E in che modo quella vita, quella persona è stata colta,
afferrata, imortalata dall’angelo dell’Ultimo Giorno – che è anche l’angelo
della fotografia? Nel gesto piú banale e ordinario, nel gesto di farsi lustrare
le scarpe! Nell’istante supremo, l’uomo, ogni uomo, è consegnato per sempre al
suo gesto piú infimo e quotidiano. E tuttavia, grazie all’obiettivo
fotografico, quel gesto si carica ora del peso di un’intera vita,
quell’atteggiamento irrilevante, persino balordo compendia e contrae in sé il
senso di tutta un’esistenza (AGAMBEM, 2004, p. 8).
O que se coloca como fundamental nessa relação entre a fotografia e a
poesia é a relação que cada uma mantém como a realidade. A foto possui a
teimosia do referente, no dizer de Barthes. Insiste em “copiar” a realidade.
Nela, as coisas do mundo estão representadas com uma fidelidade não encontrada
nem mesmo nos melhores pintores renascentistas. Nela, os homens continuam
repetindo eternamente o gesto irrepetível, o Dia do Juízo, como diria Agambem.
Esse paradoxo com o qual convive a fotografia é indispensável para a sua
própria existência. E a poesia?
A
relação da palavra com a realidade é bastante difusa. A teimosia do referente
está exilada da palavra. E essa noção, parece-me, só pode ser entendida como um
jogo. A palavra hesita em copiar o real, funcionando como um distanciamento.
Esse fato é julgado desde a Antigüidade clássica com a cautela de quem tem medo
da palavra, da violência dessa linguagem, já que a palavra tem o poder de
distorcer a realidade. Não é à toa que os poetas são expulsos do paraíso da República,
em Platão. O que explica tal violência é a noção de Phármakon,
significando ao mesmo tempo o veneno da escritura e o seu remédio. A escritura
foi vista pela metafísica ocidental como um mero suplemento da fala, e na
maioria das vezes, entendida como um perigo. Convém lembrar que a expressão phármakon,
polissêmica por natureza, deve ser pensada além das oposições que se
constituíram no seio da metafísica. A carga polissêmica da palavra acabou
direcionando-se para a idéia de veneno. Nesse sentido, não seria um
remédio, pois a fala perderia seu poder mnemotécnico, sofrendo o jogo da
escritura, distanciando-se das verdades da alma. Por isso, a tentativa de
conter a escritura não conjurando-se o “ouvir-se falar”. Nesse olhar, a
fotografia parece ser menos “rebaixada” do que a escritura, pois nela o
referente marca a sua presença. Mas não seriam as fotografias também
mentirosas? No Dia do Juízo, foto e poesia parecem fazer um acordo. Já não
interessa discutir qual dos dois elementos melhor se relaciona com a realidade
já que tudo passou a ser um grande texto, que a princípio destrói a realidade
para então reconstruí-la no jogo das diferenças. Tudo agora parece se
transformar naquela faísca de que fala Leminski no prefácio de Quarenta
clics em Curitiba: “(...) aproximamos fotos e poemas como ideogramas
japoneses. Entre foto e poema – a faísca de uma nova poesia (LEMINSKI;
PIRES,1990).
Se o homem fotografado de Jack Pires insiste
em continuar existindo, o homem na poesia de Leminski é afastado por meio dos
jogos de linguagem que transformam as fotos em poesia. A foto faz da coisa uma
imagem. A palavra faz da imagem um texto e das coisas uma morte, julgando a
capacidade da imagem de “copiar” o real, como no dia do acerto de contas.
4 UM PONTO ENTRE
A POESIA E A FOTOGRAFIA
Os poemas de Quarenta clics em Curitiba aproximam-se muito da forma do
haicai, tipo de poesia japonesa muito explorada por Leminski. Os textos podem
ser caracterizados como fragmentos.
Roland Barthes dedicou grande parte do curso “A preparação do Romance”, mais especificamente todo o volume
1, na análise da importância do
fragmento no processo de criação de um romance. O haicai, fragmento poético por
excelência, clic fotográfico verbal, é bastante comentado pelo escritor francês.
A impressão causada por apenas três versos pode ser comparada, mesmo em
se tratando de códigos diferentes, à apreciação de uma fotografia.
No prefácio do livro A preparação do romance, em que foram
compiladas as aulas do curso homônimo ministrado por Barthes, no Collège de
France, Nathalie Léger observa que as análises expostas na aula de 17 de
fevereiro de 1979, que abordavam a relação entre a fotografia e o haicai,
motivaram o escritor a escrever A câmara clara (BARTHES, 2005, p. XVII).[4]
Na aula citada, o haicai e a fotografia foram comparados:
Minha proposta é que o haicai se aproxima muito do noema da fotografia:
“Isso-foi " cinema também; mas é uma aproximação mentirosa, que é muito diferente
da aproximação mediatizada por um significante heterogêneo, as palavras,
portanto não falsa, mas de uma outra ordem de credibilidade. (...) Portanto
mina proposta de trabalho é que o haicai dá a impressão (não a certeza: urdoxa,
noema da fotografia) de que aquilo que ele anuncia aconteceu, absolutamente (2005,
p. 148).
Esse é apenas um dos fatores que aproximam os dois tipos de texto.
Outros poderiam ser apontados. A proximidade entre eles pode ser observada
também na idéia de que em ambos nada pode ser acrescentado: “(...) o haicai não
pode se desenvolver (aumentar), a foto também não, não podemos acrescentar nada
a uma foto, não podemos continuá-la: olhar pode insistir, se repetir,
recomeçar, mas ele não pode trabalhar (...) (BARTHES, 2005, p. 151).
Barthes situa o exercício de anotação (prática de anotar) como uma
importante experiência na preparação de um romance. Ao considerar o haicai como
uma forma exemplar de anotação, elege este tipo de escrita como o “ato mínimo
de enunciação”.
Se o objetivo do curso era analisar o processo de confecção de um romance,
caminhando do primeiro gesto de representação de um momento até a caracterização
de um ponto final que transforma as anotações em um conjunto chamado romance,
nada mais justo do que partir do haicai. É nesse mesmo caminho que tento ler
nas linhas de Quarenta clics, e também em suas fotos, ecos da
manifestação desses átomos que concatenados disseminam no texto os sabores e
saberes daquilo que chamamos “fragmentos”.
Na tentativa de conceituar o haicai, deve-se levar em consideração
inicialmente que não se trata apenas de escrever três versos – dois deles com
cinco sílabas e um com sete. Esse esquema de metrificação nem sempre é seguido
pelos escritores. O haicai acabou por sofrer transformações e Leminski é um dos
poetas que criaram haicais fora desse esquema tradicional. No dizer de Barthes,
o haicai é “a conjunção de uma ’verdade’ (não conceitual, mas do Instante) e de
uma forma” (2005, p.52), o que Leminski representa num de seus poemas de Quarenta
clics:
1º dia de aula
na sala de aula
eu e a sala
(LEMINSKI; PIRES, 1990)
Os fragmentos, vistos sob esse aspecto da anotação que concatena verdade
e forma, almeja representar fortes impressões vividas num determinado instante,
imprimindo-as em poucas palavras, como uma espécie de clic fotográfico.
A abertura dos sentidos é um passo importante nesse estado de poesia
“estalo”. A imagem agora é a de um homem olhando para uma mulher que olha
talvez para lugar nenhum:
isso?
aqui
já?
assim?
(LEMINSKI, 2000, p. 171).
O poeta passa a ser o tradutor desse instante entre o pulo do sapo e o
barulho da lagoa – o próprio silêncio. Nesse poema, a foto mostrava uma mulher
sentada num banco de praça ao lado de uma sacola de compras :
Domingo
Canto dos passarinhos
Doce que dá pra por no café
(LEMINSKI; PIRES, 1990).
A presença do sujeito dá lugar a uma espécie de rarefação do ser na
linguagem. Talvez por isso Leminski tenha considerado o haicai como o melhor
meio de expressão do “satori”, uma espécie de momento de iluminação. O satori
seria uma das manifestações do neutro.
O “satori” está além do campo da racionalidade e é analisado por Barthes
como uma espécie de Insight, “aquilo que não pensamos (...) = o que não
está numa continuidade lógica prevista” (BARTHES, 2004, p.240). Logo, o haicai
transcende a lógica da cultura ocidental, preocupada com a abstração de
conceitos em busca de uma racionalização. O bom haicai seria uma experiência de
iluminação – um “satori” – “luz interior da superação dialética dos contrários”
(LEMINSKI, 1997, p.89).
Essas informações já bastariam para mostrar que a mesma atenção que Leminski
direcionava a mitologia grega poderia ser enfocada também na prática do haicai.
Vendo a poesia como bem mais do que somente palavras, Leminski, na
sessão kawa cauim – Desarranjos Florais – de Distraídos Venceremos
apresenta o ideograma kawa que sintetizaria para o poeta a experiência
do haicai: “o ideograma de kawa, ’rio’, em japonês, pictograma de um
fluxo de água corrente sempre me pareceu representar (na vertical) o esquema do
haicai, o sangue dos três versos escorrendo na parede da página” (LEMINSKI,
2001, p. 76).
O valor atribuído à cultura oriental pressupõe a disciplina e o rigor de
um “samurai”. Leminski, na adolescência, estudou no mosteiro São Bento, em São
Paulo. Lá, ele pôde entrar em contato com outras línguas, com a religião, com a
literatura clássica e toda a fonte de saber que jorrar dela e, que mais tarde,
seria base para a erudição de Catatau.
O silêncio do mosteiro serviria de inspiração para o aprimoramento.
A
impressão que esse momento causara seria tema de um de seus poemas (2000,
p.34):
(...) a ordem sabe que tudo é
santo
a hora a cor a água
o canto o incenso o silêncio
e no interior do mais pequeno
abre-se profundo a flor do mais imenso.
A disciplina praticada no mosteiro se estendeu ao longo de sua vida,
pelo menos no que se refere à prática poética: “Trabalho à noite. Todas as
noites. A disciplina de um copista beneditino. Até as cinco da manhã. Essas
horas da madrugada, quando escrevo as minhas coisas, eu não entregaria por
nada”. (LEMINSKI 1999, p. 06).
Esse
processo metódico que sempre moveu vários poetas serve como condição para o já
citado aprimoramento. Para Barthes (2005a, p.242), grandes escritores foram
“animados de uma vontade incessante: vontade de trabalho, de correção, de
cópia, exercendo-se em todas as condições possíveis: de saúde, de desconforto,
de miséria afetiva, energia verdadeiramente corporal”. Cada um, dentro de sua
“teimosia”, estabelece seus horários particulares. Leminski, assim como
Flaubert, adormecia geralmente depois das cinco horas da manhã. Essa teimosia,
para quem queria que tudo fosse poesia, não escapou à regra:
carrego o peso da lua,
três paixões mal curadas,
um saara de páginas,
essa infinita madrugada:
viver de noite
me fez senhor do fogo
A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego
(LEMINSKI, 2001,
p.40)
5
tentando fotografar uma conclusão
A caminho de um quase-método, a tentativa aqui é de abandonar, pelo
menos provisoriamente, as questões históricas e culturais, para perceber aquele
lugar onde poemas e fotos se transformam em poesia. Em Quarenta clics,
várias fotos que podem surpreender devido a sua capacidade de mostrar as chagas
sociais, mas é somente interagindo com o poema que surge aquela faísca citada
por Leminski.
O exercício de deixar de lado a cultura, a história, permite que, mesmo
momentaneamente, as páginas avulsas possam ser experimentadas em si
mesmas.
O que permite abandonar o olhar técnico sobre a fotografia é justamente
o “sentimento”: “(...) vejo, sinto, portanto noto, olho e penso” (BARTHES,
1984, p. 39). E é esse olhar que se estende aqui. O pensamento sobre a foto e o
poema não pode ser analisado sem olhar para o motivo da escolha: “gostei dessa
foto e não aquela”. Essa escolha, portanto, não está distante do sentimento que
elas podem provocar.
Uma marca que pode chamar a atenção numa cena captada pela experiência
de um fotógrafo que mira todos os horizontes possíveis e que serão captados
pela máquina é justamente a espontaneidade do cotidiano, fruto talvez de um
“satori urbano”. É aquela situação que é captada inocentemente pelo fotógrafo
que chama a atenção de Barthes: “Certos detalhes poderiam me “ferir”. Se não o
fazem é sem dúvida porque foram colocados lá intencionalmente pelo fotógrafo”
(BARTHES, 1984, p. 75).
O interessante entre esse misturar poemas e fotos, que acontece de uma
maneira quase mística, é o elo criado entre o mundo da foto e o mundo da
imagem, pois cada um criou seu texto na solidão de quem não sabe aonde esse
trabalho chegaria. As fotos parecem indicar para mim um certo apoio mágico para
os poemas e estes parecem interferir em meu olhar sobre a foto, como se o
poeta, mesmo sem saber, me assoprasse um sentido. Buscá-lo só pode ser uma
aventura.
6 REFERÊNCIAS:
AGAMBEM, G. Il Giorno del Giudizio. Roma:
Nottetempo, 2004.
BARTHES, R. A Câmara clara. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______ A preparação do romance I. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
______. A preparação do romance II. São
Paulo: Martins Fontes, 2005a.
______. Neutro.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
LEMINSKI, P. Anseios
Crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997.
______. DIÁLOGO. In: Série Paranaenses.
Curitiba: ed. UFPR, nº 2, 1994.
______. Distraídos Venceremos. São Paulo:
Brasiliense, 2001.
______. La vie em close. 5. ed. São Paulo:
Brasiliense, 2000.
LEMINSKI, P.; BONVICINO, R. Envie meu Dicionário. Cartas e alguma crítica. 2. ed. São Paulo:
editora 34, 1999.
LEMINSKI, P.; PIRES, J. Quarenta clics Curitiba.
2 ed. Curitiba: Etcétera, 1990.
POUND, E. ABC da Literatura. São Paulo,
Cultrix, 1970.
VAZ, T. Paulo
Leminski – o bandido que sabia Latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[1] A
primeira edição do livro é de 1976, contando com apenas 300 exemplares. A
segunda edição é de 1990 e patrocinada pela Secretaria de Estado da Cultura do
Paraná.
[2] Influenciado por Ezra Pound, Leminski
defendia que a vanguarda não se incompatibiliza com o velho, mas sim tem
melhores possibilidades de mostrar o que ela tem de novo (1999, p. 63). Advém
dessa perspectiva a noção de Paideuma. Ezra Pound, em ABC da Literatura (1970, p. 32), afirma que a
literatura é “linguagem carregada de significado”. Para ele, a literatura não
existe no vácuo: “os bons escritores são aquêles que mantêm a linguagem
eficiente” (1970, p. 36). O conceito de “paideuma”, enfocado como uma tradição
revisitada, pode ser mais facilmente compreendido se associado com algumas das
classes de pessoas que buscam “elementos puros”, trabalhadas pelo teórico. Ele
as classifica em: inventores, aqueles que descobriram um processo de
criação; os mestres, que combinam um certo número de processos; os diluidores,
que vieram depois dos dois primeiros e são capazes de realizar bem o processo; os
bons escritores sem qualidades salientes; os beletristas que realmente
não inventaram nada, mas se especializaram na arte de escrever; e os
lançadores de moda, que, para Pound, são incapazes de ordenar o seu conhecimento
sobre a arte. Enfocando a importância de alguns autores clássicos, Pound passa
a ser bastante revisitado pelos poetas que integraram o concretismo. A
valorização do conceito de paideuma demonstra que os concretistas estavam muito
preocupados com a questão histórica. Essas posições se delineiam como um
subsídio teórico no pensamento de Leminski sobre a produção literária. Na
década de 70, Leminski começa a defender o abandono da preocupação com o
Paideuma, é o que pode ser observado em Envie meu Dicionário (1999).
[3] As
imagens gravadas em daguerreótipo não registravam as pessoas em movimento. Era
necessário que o fotografado ficasse em repouso para que sua imagem pudesse ser
gravada.
[4] Em
A câmara clara, Barthes não desenvolve uma análise profunda entre a
relação haicai-fotografia, limitando-se a fazer alguns comentários. No entanto,
algumas das idéias presentes na aula do dia 17 de fevereiro foram prolongadas
no livro, como sua meditação sobre o tempo, o desvanecimento das formas e a
cintilação de algumas fantasias (BARTHES, 2005, p. XVII).
"Quarenta Clics em Curitiba: entre a poesia e a fotografia, o Dia do Juízo", publicado originalmente em "FACE em Revista", nº9, em 2006)
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