Há alguns anos, José Castello (2007), crítico-romancista-ensaísta-contista-jornalista, publicou na extinta revista EntreLivros - que circulava nas bancas de jornais -, uma leitura da novela Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar. A ideia era, a partir dela, analisar os motivos que levaram o autor de Lavoura Arcaica a desistir de escrever. Não nos interessa aqui esmiuçarmos a leitura do ensaio, que pode ser lido na integra na internet (texto aqui), mas apenas apontar para um curioso procedimento de leitura explorado pelo escritor/crítico. Ao invés de analisar meticulosamente o livro de Nassar, ou dos motivos que o levaram a deixar de escrever, Castello dissemina uma espécie de crítica criativa, logo ensaística, ao garantir as condições de inacessibilidade da obra. Vejamos.
Depois de considerar Raduan Nassar um
"escritor do não", inspirado na galeria de Bartlebys de Enrique Vila-Matas
- em diálogo com Herman Melville -, e de
se perguntar sobre os motivos que levaram o escritor a parar de escrever, o
crítico nos informa, explorando a primeira pessoa do singular (incomum no
universo da crítica, mas bastante presente no âmbito do ensaísmo) que, numa
terça-feira escura, em São Paulo, dedicou-se a reler Um copo de cólera, convencendo-se de que o livro guarda uma
resposta para os motivos que levaram o autor ao abandono da literatura.
Inicia-se aí uma breve narrativa. Com uma pergunta na cabeça, o crítico visita
a Pinacoteca Paulista e confessa se deter no conjunto dedicado ao século XIX,
concentrando-se em três telas de Almeida Júnior, a saber Leitura (1892), O Importuno
(1898) e Saudade (1899).
Saudade
O Importuno
Leitura
Castello
escreve que, enquanto observava os quadros, a novela de Raduan não lhe saía da
cabeça. Inicia-se, então, um processo crítico bastante curioso, pois, ao invés
de criticar, julgar ou interpretar o romance e/ou as telas, o ensaísta
contenta-se (e contentar-se implica sempre numa espécie de emoção e alegria) em
estabelecer relações curiosas entre as obras de Almeida Júnior e Raduan Nassar,
em imaginar associações inusitadas. Interessante perceber que essas relações
não estão dadas a priori. Em
princípio, não há nada em comum entre as pinturas do realista e a novela de
Raduan. É o crítico que inventa essas relações, que só passam a existir depois
de imaginadas. A obra se mantém para nós como enigma, ou seja, o crítico
garante as condições de inacessibilidade do objeto. Castello encerra o texto
apontando justamente para o aspecto inventivo necessário à leitura, ou seja à
crítica:
Saio da Pinacoteca certo
de que as telas de Almeida Júnior me ajudaram a ler Raduan. Leitores precisam,
sempre, experimentar novos caminhos (como picadas na mata, feitas a golpes de
facão) para, enfim, chegar a ler. Não, Almeida Júnior não me ajudou a entender
Um copo de cólera. Livros não existem para o entendimento, mas para a invenção.
Inventamos novas maneiras de ler os mesmos livros. Sobre livros, abrimos outros
livros, e nada mais. Mas, como o importuno que se esconde atrás da cortina,
como o retrato que não se deixa ver, como o livro que não podemos ler, os
livros continuam inacessíveis. Vem-me a sentença de Borges: “A literatura é um
eixo de infinitas relações”. Quando nega nosso desejo de sentido, e faz desse
Não um enérgico Sim, a literatura afirma sua grandeza (2007, s/p).
Inventar novas maneiras de
ler talvez seja a função mais importante da crítica hoje, um tempo no qual
promover o mero julgamento da obra parece não fazer mais sentido algum. Pensar
nas infinitas - ou pelo menos indefinidas -, relações que podem se estabelecer
por meio de um procedimento de (des)leitura criativa é uma forma de devolver
potência não apenas para a crítica, mas principalmente para o texto literário.
Nunca mais leremos Raduan com os mesmos olhos depois de mirar os quadros de
Almeida Júnior depois de mirados por José Castello. É nesse sentido que me encanta
o trabalho de críticos-criativos como José Castello, Alberto Pucheu, Raúl
Antelo, Alexandre Eulálio, Eduardo Portela, Sebastião Uchoa Leite, Affonso
Ávila etc. Cada um com uma perspectiva teórico-crítica bastante diferente, com
seu estilo, em seu tempo, mas todos exímios inventores de procedimentos.
Certamente, cada um mereceria um estudo aprofundado à parte. Poderíamos citar
também, a título de curiosidade, um teórico como Georges Didi-Huberman, que não
é um crítico avan la lettre, mas que
produz a todo momento hibridismos entre a teoria/crítica/filosofia e a
arte/literatura/poesia/dança. Tome-se como exemplo a relação entre a o flamenco
de Israel Galván, as Soledades
barrocas e o conceito de trágico nietzschiano, em El Bailaor de Soledades (2008).
A relação entre o cinema/pensamento de Pasolini com o gesto de resistência
que se depreende do voo (vaga)iluminado dos vaga-lumes numa noite de escuridão,
em Sobrevivência dos Vaga-lumes (2011).
O jogo de cores que se prolifera entre os vitrais religiosos e o trabalho
pictórico-fotográfico de James Turrel, em El
Hombre que Andaba en el Color (2014). O voo das borboletas com o saber
posto em movimento pelo cinema e pelas artes plásticas, em Falenas (2015); A sobrevivência do horror de Auschwitz nas lascas
de um tronco de bétula, no ensaio poético/fotográfico intitulado Cascas (2013); entre outros
textos-ficção desse historiador da arte que poderiam ser compreendidos como
poético/ensaísticos.
Lembremos que no texto
de Castello a crítica se dá justamente a partir de um passeio pela Pinacoteca
Paulista. Narrar, ensaiar e criticar são elementos, aqui, indiscerníveis. Como
não lembrar nesse falar-flanar crítico
do passeio de Gonzaga Duque evocado no texto "Salão de 1905" -
inserido posteriormente no livro Contemporâneos
(1929) - onde já se prefigura o conceito de crítica de arte tomada como
busca inquieta do objeto ausente. Não seria descabido
considerar a crítica de Castello como ensaística. Lembremos que, curiosamente,
ela se apresenta no universo da crítica cultural jornalística, ou seja, fora do
âmbito acadêmico. É esse tipo de experiência ao mesmo tempo crítica e poética
que parece hoje não ser mais exercitada no ambiente universitário. Os motivos
disso não conseguimos mapear com precisão: predomínio de uma concepção ainda
cientificista/positivista no exercício crítico? Heranças do Formalismo, da Nova
Crítica, do Estruturalismo? Falta de leitura ou de gosto pela poesia?
Cumpre observar que nessa
concepção crítico/poética, o leitor/crítico precisa alcançar em seus
procedimentos uma criatividade semelhante a do próprio poeta. Não que o crítico
necessite ser de fato um poeta, mas sem tino poético ficaria difícil ler a
literatura de forma literária. Resquícios conservadores poderiam considerar
essa experiência como um devaneio egotista, logo frágil e pouco eficaz como
fundamento crítico.
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