quinta-feira, 10 de abril de 2008

NEM VAI DOER!



Mergulho no asfalto
Óleo sobre tela, 1,20 x 0,80
Acervo: família

Um jovem mergulha no asfalto de uma grande cidade. Os braços parecem estar colados no corpo, talvez para cortar o ar, dinamizando o salto. Quem vê o quadro, vê como quem vê o salto de uma vista privilegiada, do macadame próximo ao portão do prédio de dez andares.Quem aprecia o quadro, hoje exposto numa das principais galerias de arte de São Paulo, não hesita em espantar-se com a cena: “parece real, apesar do estilo cubista”. E nem imagina a verdadeira história do jovem que o pintou.Tudo começou quando ganhou dos avós um Curso de Desenho e Pintura, do Instituto Universal Brasileiro. A obsessão pela perfeição, ao invés de o levar ao paraíso da forma, levou-o ao inferno dos sonâmbulos. À medida que decifrava o método, aprimorando o traço de seu trabalho, estudava anatomia nos livros de medicina do irmão mais velho. Feito um pintor renascentista, almejava forjar um mundo real para tapar a sua própria irrealidade.Os pais admiravam cada vez mais a capacidade do jovem.

O gato vinha lamber o prato de leite pintado com tinta acrílica e corria assustado quando descobria o engano. Os admiradores afirmavam a precisão da cópia, porém o jovem pintor mergulhava numa angústia quando percebia que apenas o primeiro mundo é que tinha o poder o julgar o segundo mundo, sempre estranho ao primeiro. Seu mundo era só um simulacro sem sabor ou cheiro.Quando percebeu que a realidade tinha se transformado numa outra coisa, impossível de ser entendida com base no esquema conceitual alimentado ao longo de sua vida, a arte suprema deixou de ser o objeto de seu desejo, pura representação, e passou a ser o seu próprio real. Tudo que já tinha começado a ser um problema despencou de vez. Achava que nunca mais conseguiria pintar com “clareza”. Incapaz de copiar um rosto sem recortá-lo, imaginou estar possuído, não pela vontade de destruir sua realidade, mas pela vontade de traí-la. Foi, então, que descobriu que era a realidade que imitava a arte.

Seus quadros não eram frutos de seu talento, mas a sua loucura é que era fruto daquilo que chamavam de “realidade”. “Copiar uma nuvem é escapá-la”.Descobriu isso quando terminou de pintar “Mergulho no Asfalto”. Tinha sido um erro pintar um suicídio em que ele era o próprio modelo. Não podia mais mudar a ordem, ou a desordem das coisas. “Nem vai doer!”. Era preciso acreditar em algo. Foi bem mais real do que imaginara. Enterrou-se na avenida.

Caio Ricardo Bona Moreia
publicado originalmente em
www.oescambal.blogspot.com

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