quinta-feira, 10 de abril de 2008

Provocália, de Fábio Cesar
a “desmontagem”da língua e do real em favor de um “satori”

Coisa engraçada é essa de ainda ficar fazendo poesia nos dias de hoje. Enquanto a bolsa sobe ou desce, a gripe vem e vai, e os índices de pobreza aumentam ou diminuem, lá vai o poeta, descendo a ladeira. E não é como antes, e não será como depois: das cinzas renascerá o pássaro-poeta-fênix-flora-fauna-bananeira-tropical. E nada será como antes. O que foi nunca será esquecido. Assim, a missão do poeta, se é que podemos potencializar alguma, não está no gesto “esquecer”, simples adesão ao novo, nem no mero parto do “relembrar”, forjando para si um passado enciclopédico, um tanto quanto medíocre. Ah! Estamos chegando lá!

O livro Provocália, do Fábio César, sabe muito bem disso. Parece que Pound cutucou sua macumba PrOfÉTICA. Tanto é que um dos mais saborosos poemas do livro assume sem vergonha esse passado “sem vergonha”, não como resgate ou abandono, mas como produtividade: vinde orfeu com sua cítara / e cítolas e guitarras distorcidas / pra lembrar a essa gente esquecida / que ainda há aqui beleza / sob a máscara do grotesco escondida. Esse samba-rock-trágico só pode existir em forma de provocação. Impossível pensar a poesia sem provocá-la, ou provocar com ela “o coro dos contentes”. Lembremos a origem da palavra provocar: do latim provocáre: fazer brotar. E essa provocação, parece-me, só pode nascer de uma experimentação que não seja uma mera progressão da poesia brasileira no século XX, com ênfase na década de 60 e 70, onde o tropicalismo e o concretismo assumiram as contradições da nossa cultura por meio de um LIQUIDIFICADOR CULTURAL. Assim, a poesia do Fábio dialoga com esse passado (provocÁLIA – lembra tropicÁLIA), sem negá-lo ou segui-lo compulsivamente, o que por si já faz com que o seu gesto mereça uma atenção carinhosa por parte dos leitores. Essa experimentação é a sua transgressão e começa pela epígrafe, que é um ótimo começo. Gullar foi o eleito, nada mais significativo, ele que sempre foi um defensor ferrenho da experimentação: “estamos todos nós / cheios de vozes / que o mais das vezes / mal cabem em nossa voz” . Vale lembrar aqui que essa transgressão gera sempre uma angústia, mas quem quer viver sem ela? Já dizia o poeta timboense Lindolf Bell: “Palavras são seda, aço. /Cinza onde faço poemas / me refaço.

Lembro-me de Gullar, da sua luta corporal com a palavra para chegar em algum outro lugar, fazer um poema que bastasse a si próprio, como que inventando seu próprio mundo. Ele mesmo mudou de idéia. Era o medo de ser engolido pela palavra. A culpa era daquela hesitação entre o som e o sentido, de que nos fala Valery. Essa impossibilidade de atingir o Neutro, uma espécie de “satori” japonês, fez com que Gullar se voltasse novamente para a realidade. Fábio faz o caminho inverso. Não tem medo. Não destrói a realidade no poema. Mas assume esse “real” entre aspas. Quem é ele senão um efeito de superfície? A realidade não interessa em sua poesia. Ele inventa outra. E ela custa bem barato, talvez um picolé: “É UM REAL - SÓ PAGA É UM REAL”, diz o primeiro poema. Esse real é uma grande miragem, asssim como o “eu”: “alterando alter-egos / eu me faço / e me desfaço / me destruo / e construo / a poesia”. Poema este que me fez lembrar novamente de Lindolf Bell: “Sempre à beira das planícies. /Porque assim nasci /e assim cresci, /e continuo a crescer assim /jamais além de mim, /sempre ao lado de mim”. Como se esse eu fosse sempre também um outro. Essa é uma de suas principais imagens que se reiteram ao longo do livro, como que atirando dardos num "eu" impreciso, já que nossa realidade está em pedaços, e o sujeito em frangalhos.

Nesse sentido, a poesia do Fábio assume, ao meu ver, um grande compromisso com a poesia contemporânea: Com os cacos do passado, ele monta um artefato para o futuro, ora nos seus temperos marginais, ora no seu lance concretista. Mas dizer isso ainda é muito pouco, prefiro não trair a sua poesia, filiando-a em alguma tendência. Prefiro pensá-la assim como um jogo (um jeu tropical), que transcende essa idéia de tendências e características já que essa referência a alguma coisa, em sua poesia, pode ser sempre uma grande brincadeira, eis a rarefação da sua linguagem. Movimento que sempre nos leva para um outro lugar, eis o barato de sua poesia. Cuidado para não cair nas suas máscaras, ou ser engolido por elas. O poeta prefere devorar o livro antes que seja devorado: “coisa e tal assim e assado /disse o livro para mim / antes de ser devorado”. Aquele satori que Gullar não alcança, o Fábio, à maneira de um Leminski curitiboca, consegue: “o dia amanhece / e uma alegre tristeza / já me anoitece”. E aqui já não é o concretismo, nem o tropicalismo que fala mais alto, mas alguma coisa além, o ato mínimo da enunciação, o "satori". Só me resta dizer que ainda estou lendo o livro e me deliciando, tentando em vão adiar o final.

Caio Ricrdo Bona Moreira
publicado originalmente em
www.oescambal.blogsot.com

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