quinta-feira, 10 de abril de 2008

O FANTASMA DA ENCICLOPÉDIA OU A MAIOR HISTÓRIA DO MUNDO



Passou a infância lendo. Dizem que morava no interior do Espírito Santo. Na adolescência, previu que seria um escritor. Não um escritor qualquer. Seria o escritor de apenas um livro. Mas não seria um livro qualquer. Seria o livro dos livros. Como um astrólogo, adorava fazer previsões. Guiava-se pelos astros. E talvez tenha sido essa propensão para astrólogo que levou o jovem a adiar ao máximo o começo de sua escrita. Por onde deveria começar? Pela explosão dos astros? Pela exploração dos fatos? Ou pela formulação dos planos?Enquanto apenas convivia com tal idéia, lia muito. Talvez esse fosse um belo começo. Ele sabia que um livro era sempre um “livro de livros”, como diria Foucault, ou melhor, um fenômeno de biblioteca. Ele lia Foucault. Ele lia outros também. Sem parar. Ele não lia apenas por prazer. Lia por tarefa. Lia. E isso nem sempre dava prazer. Tinha consciência de que esse dever era parte do seu grande projeto. Mas só isso não bastava.
Quem sabe no futuro os pesquisadores também se laçariam a gastar os seus dias, tentando descobrir as relações implícitas, travadas entre os personagens de seu livro e os personagens de outros livros. Feito um monge copista, trabalhava metodicamente no esboço de seu grande livro. Era preciso planejá-lo.Os personagens eram desenhados e descartados. As folhas, com seus esquemas narrativos, logo iam para a lixeira. Partia de premissa de que só o que considerava realmente bom serviria para o seu enredo. Assim, durante muitos anos, várias histórias surgiram e foram embora, o que é lamentável. Alguns personagens que tinham sido enterrados na lixeira, ou queimados no porão da santa inquisição do autor, voltavam para assombrar os momentos da criação, como fantasmas insatisfeitos com a condição de uma estranha morte que nunca esperimentou a própria vida. Desenhava os cenários, pintava as cidades, colecionava objetos que serviriam para as suas descrições. Quanto mais próximo o mundo do livro estivesse do seu, mais fluidas seriam as cenas, mais verídicas as situações. Podemos dizer que inventou o seu próprio mundo a partir do mundo que pensava em criar com base naquele que deveria ser o seu próprio mundo.
O tempo foi passando e sua casa foi transformada numa espécie de laboratório literário. Inspirou-se em Balzac e escreveu nas paredes o nome de todos os personagens e as relações travadas entre eles. E as relações foram tão tamanhas que o escritor precisou construir mais algumas paredes. E quando sobrava parede e faltava personagem, ele inventava os secundários, e os secundários dos secundários. Tudo caminhava para o pleno gozo da mistificação da escritura. A façanha enciclopédica era o seu desejo. Ele buscava a completude.Sabia que agora faltava pouco tempo de vida. Era preciso começar a escrever o texto. Antes, já vinha escrevendo, mas era uma outra coisa. A sua casa era o seu livro. Um livro feito de casa, ou uma casa feita de livros? Precisava agora começar tudo de novo. E quando percebeu isso, foi fulminado pela conclusão de que não haveria tempo.
Precisaria de uma vida inteira, do tamanho daquela que gastou para esboçar toda a obra. Tudo era apenas plano e o plano virou piada. Descobriu que não era nada mais do que um de seus próprios personagens, o principal, aquele que desenhou na parede e que depois percebeu ser muito parecido com ele. Era um personagem que inventava a maior história do mundo. Eu já imaginava que isso acabaria assim. Talvez o escritor tenha previsto que a impossibilidade de escrever o levaria à morte, o que fez com que se ocupasse de uma “entre-escritura”. Forjava a história, rabiscando nas paredes o que seria o livro. No entanto, nunca escrevia. Seu livro era e não era. Apesar de estranhar esse fato, acredito que a história do mundo é e não é, ao mesmo tempo, história. Das estórias, restaram os ratos no porão da santa inquisição do autor e as ruínas das paredes com o rastro de seus personagens.

Caio Ricardo Bona Moreira
publicado originalmente em

Nenhum comentário: