quinta-feira, 10 de abril de 2008

O senhor maravilha Uma biografia não autorizada de dois negros e um só blues





...O banzo das Américas é o banzo dos habitantes das margens do rio Mississipi. É blues que faz doer. O blues é universal, universal como a dor. O banzo brasileiro vem de Desterro, atual Florianópolis. Quando passo pelo Mercado, próximo à ponte Hercílio Luz, fico sentindo o cheiro de peixe e mar, pensando num poeta, dandy-iorubá, que transitava por aquelas cercanias.

Ele não conhecia o Mississipi, mas sentia “banzo”, o azul mais triste desse mundo, silencioso como um soluço. Já vejo um nego com uma “gaitinha” na boca. O velho com um banjo na mão. Esse banjo é banzo! Quer me dizer onde estou? É blues que faz doer. De onde vem essa tristeza?Num bar escondido, localizado atrás de uma fábrica velha de sapatos de couro, na periferia de New Orleans, David Howphey entra para trabalhar. Assim faz todas as noites. Todos o cumprimentam. David é o feiticeiro da noite. Andar sincopado como o ritmo da música que sente nos seus velhos ossos. Eles já fazem barulho.

Quando um bluesman fica velho é que tem maiores chances de conseguir alguns trocos a mais. É tristeza acumulada. Estojo de banjo na mão, unhas compridas e bem limpas, óculos com correntinha de prata para não perdê-los, e botas, daquelas fabricadas ali mesmo. David senta num banquinho e chora o banjo sem lágrimas. O velho agora é acompanhado por um pianista branco, e um trompetista quase negro, exímio como qualquer um que toca trompete por mais de vinte anos e que mora por ali. Nem precisa do violão. Toda noite, quando termina a última música, David se reúne com os jovens negros para tomar uma cerveja. O velho, que nunca ouviu falar de Cruz e Sousa, aconselha: “Cry, baby, cry...É preciso ser muito triste pra nunca se deixar chorar. Não basta técnica. Esse lamento é o mais triste dos choros, pode ter tristeza maior?”.

Os jovens saem satisfeitos com a performance do “senhor maravilha”, como costumam chamá-lo.Quando o navio negreiro atracou na costa americana, e os negros foram plantar algodão nas fazendas do sul, o espírito do banzo, além do spleen-burguês-capitalista-europeu, abateu o negro, que transformou seus nervos em aço, seus lamentos em blues. Depois vieram outras coisas. Mister Johnson, um saxofonista sexagenário de Geórgia, nem desconfiava que aquela música cantada nos campos de trabalho se transformaria num emblema da raça.O senhor Howphei lava as suas próprias roupas. Mora sozinho desde que a sua mulher Frannie foi assassinada por um membro dos Cavaleiros do Branco Camélia.

Ficou mais fácil cantar o blues e mais difícil viver. Frannie é agora motivo de blues e o nome do velho banjo. Ela costumava chamar o seu grande amor de “My Day”. Agora, a única companhia de David é um cachorro de treze anos, cego de um olho. David está quase cego dos dois. O velho senta na varanda, mira a vizinha gorda e negra que estende roupas no varal, e pega o banjo. Daniel, o cachorro mais rouco da redondeza, se aproxima. É banzo. Todas as almas se entendem na dor. E eles se consolam na música. Cry, baby, cry.Gavita enlouqueceu. Quem é o louco da imortal loucura? Sina de mágoa. Teria que ser assim? Será que ele gostava desse cheiro de peixe e mar? Deixe-me simbolizar. A Gavita enlouqueceu. O mulato tocou banjo e fez um soneto. Depois pegou um trem e morreu. Essa cruz era a do senhor maravilha. Já posso ouvir a música. Vem lá. Não posso chorar, mas estou quase chorando. Vem lá daquele navio. Era um sonho dantesco. Um de raiva chora, o outro enlouquece! É uma voz meio rouca. Chega em Desterro ou no Mississipi? Será a voz de Daniel? Ela traz o negro! Ela traz o blues! Cry, baby, cry.

Caio Ricaro Bona Moreira
publicado originalmente em
http://www.oescambal.blogspot.com/

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