quinta-feira, 10 de abril de 2008

PLATÃO, HORÁCIO, E O PROFESSOR GENÉSIO





Meu professor de literatura parecia ser um cara normal. Quando o ano letivo começou, ficamos animados com aquele velho barbudo, que entrava na sala sempre atrasado, suando como um padre no deserto. O professor Genésio Freitas, doutor em Literatura Comparada, apresentou-se como um “desconstrutor”. Cada vez que a aula esquentava, ele colocava em cheque toda a noção razão ocidental. Carregava sempre “The Cantos”, de Ezra Pound, e gostava de declamar Walt Whitman. Sempre tinha alguma frase para calar nossas construções conceituais, nossas grandes narrativas, a nossa inexorável ignorância.

Durante a semana, esperávamos ansiosamente pelas discussões que aconteceriam na aula do nosso miglior fabbro. Saíamos da aula e passávamos no Bar Quintino, próximo ao prédio da faculdade. Lá, as aulas continuavam.Tudo corria normalmente até o dia em que, depois de afirmar categoricamente que a escrita era um remédio, não um veneno, o professor Genésio caiu num transe espiritual, mudou a voz e, falando em grego, negou tudo o que havia dito anteriormente: “Pharmákon sempre será um veneno, não um remédio, eis a alétheia”, a tradução simultânea foi feita por Hermógenes, um descendente de grego, hábil na língua, que nunca faltava às aulas. Falava ele da escrita. No início, achávamos que se tratava de alguma doença. Estávamos errados. Era um caso raro de mediunidade. Ficamos sabendo alguns dias depois que o professor Genésio incorporara Platão.

Quem decifrou o oráculo foi Armindo, colega de classe, que era ligado a esses assuntos metafísicos e estudava o espiritismo.Numa outra feita, Genésio, que era tradutor de poesia latina, dissertava sobre a noção de “est modus in rebus” e “virtus in medio”, em Horácio. Quando começou a declamar suas traduções do poeta “Carpe Diem”, seu olho começou a virar. Era Horácio em pessoa, ou melhor, em espírito: “Eu nunca disse isso, velho miserável” – Hermógenes, que também era versado em latim, traduziu. Horácio esganava o professor Genésio, ou seja, Genésio batia em Genésio. Tivemos que intervir e apartar a briga. Horácio era forte como um cão.Depois daquela aula, nunca mais vi o professor Genésio, que foi afastado pelo departamento. Armindo contou que ele foi viver no campo: “fugere urbem”. O médico atestou impossibilidade para o magistério, causa desconhecida, talvez uma forte crise de depressão. Os alunos sabem: Platão desconstruiu o desconstrutor.


Caio Ricardo Bona Moreira
publicado originalmente em
http://www.oescambal.blogspot.com/

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