segunda-feira, 14 de abril de 2008

O PRIMEIRO CHARUTO DA ÚLTIMA CAIXA



No dia 15 de janeiro de 1928, meu avô, o português Manuel Moreira, decidiu embarcar para o Brasil. Pela última vez, abriu a tabacaria, que tinha sido herdada de seu pai. O pai, por sua vez, também herdara de seu pai. No outro dia, o estabelecimento seria transformado numa confeitaria. O que se passou na tarde derradeira marcou profundamente a vida do velho Moreira.O último cliente, um senhor magro, com óculos de aro fino, chapéu preto e terno bem passado, comprou a última caixa de charutos. Meu avô, que não se dava facilmente a conversas triviais, demorou a responder a pergunta do homem. “Sim, estou triste”. Aos poucos, abriu o coração amargo, confessando a sua infelicidade. Portugal não era mais o país do futuro. A esperança tinha sido vencida pelo medo: “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada”.O cliente tentou consolar o velho Manuel. Em vão. “Tenho certeza de que este país está falido, pá!”. O freguês sorriu e falou: “Não tenha tanta certeza.
Em todos os manicômios há malucos com tantas certezas. Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?”. Meu avô frisou os olhos, como sempre fazia toda vez que queria enxergar melhor a falta de sentido das coisas, tentando descobrir se Estêves, que estava parado na sua frente, era um poeta, um filósofo, ou algo do gênero. Meu avô não acreditava em astrologia, quiromancia, filosofia, poesia, democracia.
Ele sabia que os homens precisavam acreditar em alguma coisa para que a vida pudesse ser mais do que uma pequena caixa de charutos. Tentou agarrar uma resposta para o cliente, que mais parecia alguém que usava máscaras só para esconder a sua grande melancolia. Por um instante, o velho Manuel pensou que o mundo era uma fumaça de charuto e que toda a vida, de uma hora para outra, poderia evaporar, perdendo-se na imensidão do abismo das horas.O cliente acendeu o primeiro charuto da última caixa. Pela primeira vez, o dono da tabacaria apreciou com prazer o cheiro do tabaco. Ele preferiu não presentear o cliente com uma resposta banal, como todos os seus dias em Portugal. Deu-lhe o troco.
O homem, que não tinha metafísica, mas filosofava, saiu da tabacaria. Sem se despedir, meteu o troco na algibeira das calças. Atravessou a rua e entrou no hotel, que ficava em frente à loja do meu avô.Manuel fechou pela última vez as portas do comércio. Como que atraído por um olhar distante voltou-se para uma das janelas do hotel e avistou um outro cliente, Fernando, o circunspeto. Acenou-lhe. Da janela, o cliente gritou-lhe adeus. No Brasil, a esperança seria reconstruída. Pela primeira vez, sorriu para o cliente. Os dois, ou três, tinham, naquele momento, todos os sonhos do mundo.

Caio Ricardo Bona Moreira
publicado originalmente em

Um comentário:

disse...

bacana Cáio! curti bastante!